Mesmo com toda
a atmosfera de festas de final de ano que supostamente inspira nas pessoas generosidade e
reflexão, a grande mídia não perdeu tempo e sinalizou de forma bem clara o que
nos espera para o próximo ano:
(a) Em uma
matéria de fatos diversos no último bloco no telejornal SPTV da TV Globo no dia
27/12 sobre rituais e supertições populares para atrair sorte no ano novo, um
pai de santo é consultado pela repórter sobre as perspectivas para 2014. Os búzios
são jogados e ele adverte: “esse ano foi de antagonismos e conflitos e o próximos
será a mesma coisa, mas haverá transformações. E uma nuvem negra se afastará da
cidade de São Paulo...”;
(b) uma enquete
foi feita com colunistas do jornal O Globo para saber o que eles esperam para
2014: Carlos Alberto
Sardenberg, Míriam Leitão e Zuenir Ventura torcem por mais protestos –
“protestos vigorosos”, salienta Sardenberg;
(c) Jornais e emissoras de TV passaram os
últimos dias antes do Natal fazendo acrobacias matemáticas para provar que,
apesar das vendas terem aumentado 2,7% em relação ao mesmo período do ano
passado, foi o Natal mais fraco em 11 anos;
(d) Elio Gaspari em sua coluna publicada
em pleno dia de Natal na Folha
e O Globo lembra que o próximo ano
será de eleições, mas também lembra que nesse ano aprendemos que existe “uma
forma mais direta de expressão”, e exorta: “vem pra a rua você também!”.
O Script
Desde que Maria
Judith Brito, na época presidente da Associação Nacional dos Jornais (ANJ), afirmou
em 2010 que diante de uma oposição politicamente fragilizada os meios de
comunicação seriam o verdadeiro partido de oposição, a grande mídia criou
rapidamente um script dentro qual
qualquer evento ou notícia deveria ser encaixado. Um script simples, composto basicamente por três plots:
(a) o país está à beira do colapso econômico pela inflação galopante e perda de credibilidade dos investidores externos porque não faz a “lição de casa”;
(b) Todos os escalões do Governo estão contaminados por uma corrupção endêmica cuja origem está no PT. Essa corrupção produz uma administração pública ineficiente e serviços públicos caros;
(c) Por esse motivo, a escalada de protestos nas ruas que é sinalizador do caos e baderna em um país à beira do descontrole e em estado pré-insurrecional.
E pelo que
acompanhamos nesse ano a declaração da presidenta da ANJ não foi mera bravata
ou elogio à liberdade de imprensa: em cada redação de veículo de grande
imprensa e em cada ilha de edição das grandes emissoras de TV foi mobilizado um
incrível arsenal de recursos retóricos, linguísticos e semiológicos, tão
sofisticados que certamente só mais tarde pesquisas acadêmicas transformarão esses
momentos pelos quais estamos passando em objetos de dissertações e teses e
serão analisados de uma forma mais profunda em seu alcance e natureza.
Paul Lazarsfeld: o fator predisposição e
memória seletiva nos receptores
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Essa
mobilização resultou em intervenções pontuais da grande mídia na opinião pública
através do que denominamos como “bombas semióticas”: conjunto de artefatos que
foram detonados na opinião pública ao longo do ano (mais precisamente após as
grandes manifestações de rua em junho) – travestidos de informação através de
mídias impressas, digitais ou audiovisuais, seu objetivo não é a persuasão ou
convencimento, mas a criação ondas de choque ou disseminação estilhaços de
signos na esfera pública. São bombas cujo alvo não é a razão, mas a emoção.
Transmitidos
como informação (notícia, opinião, imagens etc.) escondem construções
arbitrárias de significados sob a saturação retórica (figuras de linguagem) que
escondem complexas operações semióticas (regressão sígnica, contiguidades,
similaridades, composições, simbolismos de cores etc.).
Como pudemos
perceber ao longo dos meses, o objetivo não é o convencimento
político-partidário dos receptores. Nesse aspecto, as teses do pesquisador Paul
Lazarsfeld (líder de estudos empíricos de recepção nos EUA na década de 1940)
continuam bem atuais: há um fator predisposição muito forte nos receptores –
eles só veem o que querem ver, ou compreendem apenas o que querem compreender.
Em geral, os conteúdos midiáticos apenas reforçam predisposições já existentes
por meio da seletividade da recepção e da memória. Por exemplo, as imagens dos
“mensaleiros” sendo levados como prisioneiros pela Polícia Federal a Brasília
não tiveram qualquer efeito pedagógico: as
imagens apenas reforçaram e acirraram tanto posições anti-petistas
quanto petistas já consolidadas.
Então, para
quem falam as “bombas semióticas”? Falam para a maioria indiferente (Lazarsfeld
falava em nove em cada dez receptores) cuja relação com os conteúdos midiáticos
é a de desfrute, gozo, de ver “o mundo em marcha” (Ramonet) através da
dinâmica, ritmo e cores nos telejornais. Para eles, a relação com a mídia é de
consonância, assimilando ondas de choque que periodicamente tornam-se “a” moda
dominante, “o” tema do momento, “a” onda da que envolverá a todos nas próximas
semanas.
Bombas
semióticas não operam por convencimento ou argumentação, mas por percepção e
sedução. Por isso esses artefatos bélicos seriam muito mais sofisticados do que
slogans publicitários que trabalham por repetição e condicionamento. Bombas
semióticas são intervenções pontuais que operam por choque para criar uma
consonância e um “clima de opinião”.
Para compreendermos o seu funcionamento é
necessária uma engenharia reversa, pois até agora só conseguimos estudá-las
após as suas detonações através dos seus registros impressos, digitais ou
audiovisuais. Vamos fazer uma retrospectiva das principais descobertas conseguidas
através da aplicação das ferramentas da Semiótica, a ciência dos signos, na
desmontagem reversa dessas bombas liguísticas.
Depois das semanas
iniciais em que a mídia acompanhou as primeiras manifestações de rua com
perplexidade taxando os manifestantes de criminosos e politicamente burros,
descobriu-se que elas poderiam ser encaixadas no script do abismo político-econômico-institucional descrito acima.
As manifestações passaram, então, a ser reportadas como sinais inequívocos da
confirmação dos três plots do script.
No dia 29/06
analisamos dois exemplares de bombas semióticas: a capa autodenominada como
“histórica” da revista Veja e outra do Portal Terra – veja “Bombas
Semióticas Explodem na Mídia”. Descobrimos o primeiro mecanismo de
funcionamento: a regressão do símbolo ao índice (dessimbolização) tanto da
figura da bandeira nacional quanto dos manifestantes. Tanto a bandeira quanto a
imagem dos manifestantes têm um forte símbolo de agregação, união e força. Mas
o significado geral a ser transmitido pelas matérias deve ser de abandono e
impotência diante do caos. A bandeira é mostrada jogada, esgarçada, abandonada
na penumbra; enquanto os manifestantes são mostrados sempre isolados como que
perdidos, observando a tudo impotentes. A força simbólica é esvaziada para ser
reduzida a índice (sinal) de evidente descontrole e instabilidade.
Retoricamente
verificamos que são peças carregadas, em composições que remetem ao cinema
(plano inclinado como nos filmes de perseguição para expressar instabilidade e
violência), figuras em contra-luz, tudo explicitamente posado, cênico, teatral.
Curioso é que, mesmo tendo perdido a natureza espontânea de flagrante, ainda os
leitores as tomam como fotojornalismo. Talvez porque o senso comum ainda toma
as imagens como decalques da realidade, e não um exercício arbitrário de
intencionalidade do repórter ou do fotógrafo.
Essa foi uma
bomba de difícil desmontagem por não ser uma simples manipulação ou
encobrimento de fatos, mas por envolver um elemento “meta”: a simulação. Mais
precisamente, programas que pretendem ensinar lições de moral e
cidadania através de simulações. Mais precisamente através de “pegadinhas”,
dessa vez “do bem” e na TV. Sob o pretexto de nobres propósitos programas como
o “Fantástico” da Globo e “CQC” da Band criaram uma “bomba semiótica” sob a
forma do “infotenimento” (informação + entretenimento), com situações do
cotidiano simuladas para flagrar contraventores da ordem, da moral e dos
princípios de cidadania para nos ensinar que o bem sempre compensa. Ambos os programas
alinham-se ao plot (b) do script geral descrito acima: a pauta do
moralismo e do combate à corrupção – veja o post “A
bomba semiótica das pegadinhas do “Fantástico” e “CQC””.
Os
quadros “Vai Fazer O Quê?” do Fantástico da TV Globo e o “Olho Por Olho” do CQC
da Band são bombas complexas por primeiro criar efeitos de realidade para a
simulação parecer real (imagens granuladas, planos inclinados etc.) e, ao mesmo
tempo fazer constante metalinguagem – mostrar ao espectador como a pegadinha é
produzida.
Observamos
na época que essa moralização por meio de pegadinhas poduziria uma cidadania
esquizofrênica: Enquanto no “Fantástico” o prazer sádico é
envergonhado porque jogado para trás de camadas de discursos de cidadania e
virtude, no “CQC” sadismo, desejo de vingança e princípios de cidadania são
colocados no mesmo plano. Pensando de forma freudiana, o “Fantástico” nos
apresenta uma cidadania neurótica, enquanto o “CQC” constrói uma cidadania
esquizofrênica.
A produção de
bombas semióticas passou a ser tão emergencial para a grande mídia que parecer
ter começado a contaminar o senso dos repórteres. A
ansiedade em corresponder a uma pauta pré-estabelecida fez uma repórter da
rádio CBN detonar precipitadamente uma bomba semiótica que estava sendo montada
na cobertura de uma greve dos estudantes no Departamento de Letras da USP.
Graças a uma “barrigada jornalística” (a repórter confundiu a mensagem “Alemão
no Campus” de uma professora do Departamento com uma mensagem cifrada da
malandragem ao enfrentar inimigos), a repórter expôs sem querer o mecanismo de
funcionamento e a técnica de montagem de mais uma das bombas semióticas – veja o
post “Tem
alemão no campus? Repórter sofre acidente com bomba semiótica na USP”.
Nesse momento,
as manifestações de rua já haviam entrado em declínio, mas a grande mídia tinha
que fazer seus repórteres irem a campo para encontrar sinais ou evidências de
que “manifestações genéricas” (não importa se
contra o poder municipal, estadual, federal, contra uma entidade privada ou
autarquia) pipocando por todos os lados seriam índices de um País que
estava à beira do abismo
.
Nesse
acidente com a repórter foram expostos em um só golpe os mecanismos
semiológicos e retóricos de uma clássica bomba semiótica: professores corruptos
da USP envolvidos em táticas de guerrilha ajudando bárbaros favelados
infiltrados em uma instituição pública; e a mensagem “tem alemão no campus”
como índice inequívoco do caos que se manifesta no cotidiano, até no local onde
nossos filhos estudam...
Um
outro acidente com outro ansioso repórter que queria confirmar a pauta entregue
pelos seus editores. Mas esse acidente que acabou nos fazendo descobrir uma
possível arma contra às bombas semióticas: o simulacro.
Um
aluno do curso de Ciências Contábeis da USP simulou diante de fotógrafos e
jornalistas ser um candidato atrasado na prova do Enem. A foto dele
dramaticamente tentando escalar as grades da Uninove, na Barra Funda, São
Paulo, saiu em portais da Internet e primeira página do jornal Folha de São Paulo ao lado de uma
sombria manchete: “Quase um terço dos candidatos não faz Enem”. Aqui, a
bomba semiótica pretendida era, por atração metonímica, registrar qualquer
episódio, imagem ou declaração como uma comprovação de que o Enem é uma
catástrofe sempre à beira da fraude. Um serviço público ineficiente e
essencialmente corrupto – dessa forma a bomba semiótica atenderia ao fator (b)
do script orientador da programação
das bombas semióticas – veja o post “Estudante
implode bomba semiótica do Enem”.
Essa
simulação do estudante da USP abriu uma nova perspectiva na guerrilha semiótica
atual: combater a manipulação com a simulação. Como fizeram um grupo de
manifestantes em Lisboa em outubro desse ano: para furar o bloqueio midiático,
através de redes sociais fizeram uma simulação de uma manifestação supostamente
a favor da política de austeridade imposto pela “Troika” (Banco Central
Europeu, FMI e Comissão Europeia) a Portugal. Os jornalistas foram na onda e,
depois, descobriram que se tratava de uma estratégia irônica de atrair a
atenção dos portugueses para o verdadeiro manifesto: “Que se lixe a Troika!”.
A
grande mídia recebeu os black blocs com um misto de acusação e fascínio. Da
condenação de “baderneiros” (dentro do clichê narrativo de todo telejornal que
começava: “a manifestação começou pacífica, mas baderneiros...”), aos elogios
de Caetano Veloso no jornal O Globo
sobre “os lindos olhos amendoados do anarquismo” referindo-se à foto de uma
líder black bloc publicada em revistas semanais de notícias. Certamente, a
grande mídia viu nos black blocs mais munição para as bombas semióticas: eles
seriam promovidos índices vivos do estado pré-insurgência que dominaria o País –
veja o post “A
bomba semiótica da Black bloc goog-bad girl”.
Mas
acrescenta-se o elemento feminino como uma estratégia retórica de não só trazer
sex-appeal e simpatia (afinal, são
jovens que parecem ser de classe média!) como também ressaltar o aspecto de
fragilidade e vitimização diante da força bruta policial. Simplesmente a grande
mídia adora mulheres vitimadas pela repressão, como a militante brasileira do
Green Peace presa na Rússia ou as roqueiras da banda Pussy Riot presas também
na Rússia por ridicularizar publicamente Vladimir Putin.
No
caso da bomba semiótica dos cães beagles resgatados de um laboratório em São
Roque (SP), a tática retórica associou manifestantes femininas a lindos cães
típicos de classe média, conferindo um aspecto misto de indignação e
identificação com os protagonistas – veja o post “A
bomba semiótica do resgate dos cães de laboratório”.
E
mais índices de insegurança, dessa vez criminógenos, com depoimentos de pessoas
que não queriam se identificar, dando depoimentos em contra-luz ou de costas
com a voz alterada por filtros. Imagens de ativistas encapuzados para reforçar
ainda mais uma atmosfera assustadora de crime organizado.
Perspectivas para 2014
Desde
que a grande mídia se auto-nomeou como partido de oposição, logo percebeu que
nenhum batalhão de Jabores e Mervais poderia convencer os receptores através do
simples discurso ou pelo simples bombardeio de notícias negativas ao Governo
Federal. A reeleição de Lula em 2006 no meio da avalanche do escândalo do mensalão,
dólares na cueca e imagens de uma pilha de dinheiro descoberto pela Polícia
Federal para suposta compra de dossiês do adversário pelo PT e, depois, a
eleição de Dilma foi um duro golpe.
Um Arnaldo Jabor serve, no máximo, para arregimentar e manter alta a moral da tropa |
Comprovou
as teses de Paul Lazarsfeld sobre as predisposições e memórias seletivas da
recepção. Ou seja, um Arnaldo Jabor ou um Merval servem, no máximo, para
arregimentar e manter alta a moral da tropa – isto é, reforçar convicções já
existentes nos líderes de opinião da esfera pública que os seguem. De nenhuma
forma conseguem convencer, converter ou fazer inculcação político-partidária.
Porém,
a grande mídia continua ótima na sua função de criar um “clima de opinião”, no sentido dado
pela teoria do agendamento como um efeito de acumulação, consonância e onipresença
de uma pauta de temas, criando uma percepção de realidade para a opinião
pública.
A
grande mídia também percebeu que redes sociais e blogs podem facilmente
desmontar argumentos e discursos de seus formadores de opinião de plantão nas
colunas impressas e editoriais de telejornais. Porém, blogueiros e usuários das
redes digitais ainda têm suas postagens pautadas pelo “clima de opinião”
imposto pela grande mídia através das bombas semióticas. Em outras palavras, a
grande mídia ainda possui a capacidade de criar um horizonte de eventos diante
do qual são trabalhadas as expectativas, debates, choques e conflitos.
Tudo
leva a crer que 2013 foi um campo de teste para o aprimoramento da tecnologia
bélica semiótica. Hoje, os formadores de opinião como Merval, Sardenberg,
Miriam Leitão, Jabor etc. tornaram-se meras cortinas de fumaça para atrair com
seus discursos a ira ou os aplausos dos respectivos líderes de opinião na
sociedade.
O
jogo mais importante está sendo jogado no contínuo midiático, na detonação de
bombas que criam ondas na percepção pública do “clima de opinião”. O script simples de três plots que é a base da programação das
bombas semióticas não é para ser “argumentado”: isso é deixado para os
formadores de opinião da grande mídia. O mais importante é a criação de
impactos que moldem a percepção de que
o cotidiano está cada vez mais tão inseguro e caótico que não saberemos o que
nos espera no dia seguinte. E ainda mais em um esperado ambiente supracondutor
de ondas de choque com a realização de megaeventos midiáticos no próximo ano
como Copa do Mundo e eleições.
Isso
se chama comunicação espectral. Preparem-se: para o ano que vem tem chumbo
grosso!
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