O ator Jack Nicholson surpreso olha para trás onde está suspenso
um enorme telão, no fundo do palco da 85º cerimônia do Oscar 2013 em Hollywood.
Nele aparece a imagem de Michelle Obama em um link ao vivo direto da
Casa Branca. Ela tem em suas mãos o envelope com o vencedor da categoria Melhor
Filme, abre o envelope e anuncia: “E agora o momento que todos aguardavam... e
o Oscar vai para ‘Argo’”.
Obviamente, Jack Nicholson fingiu surpresa. Ele, como meio mundo
sabe, que desde que foi instituído o Código Hays (Código de Produção de Cinema
formado por um conjunto de diretrizes de autocensura aplicado aos filmes
produzidos no país entre 1934 e 1968), o governo estreitou suas relações
políticas com Hollywood. Para transformá-lo definitivamente em máquina de
propaganda patriótica na Segunda Guerra Mundial.
O tema de Argo era uma suposta bem-sucedida ação da inteligência
dos EUA durante a crise diplomática dos reféns norte-americanos no Irã em 1979,
em uma operação de resgate. Um filme que transformou em sucesso um retumbante
fracasso da CIA que não conseguiu detectar o início da revolução islâmica,
entregando funcionários e diplomatas da embaixada de bandeja como reféns.
Naquele momento em que Obama dava continuidade a “guerra ao
terror” contra o terrorismo islâmico pós atentados de 2001 nos EUA, tudo fazia
sentido.
Mas será que a conhecida máquina de propaganda hollywoodiana
apenas se resume a isso? Encomendar roteiros para produtores da indústria do
cinema para apoiar através da ficção a agenda geopolítica norte-americana?
Se você já viu Top Gun ou Transformers,
você pode ter se perguntado: Todos aqueles caças F-14, porta-aviões e blindados
na tela vieram de onde? Do próprio arsenal operacional das Forças Armadas? Se sim, com quais condições? Os militares
revisam os roteiros de Hollywood? Ou será que eles vão muito além dos roteiros,
tornando-se na prática produtores-executivos dos filmes?
O documentário Theaters of War (2022) nos mostra com farta
documentação esse controle editorial do exército dos EUA sobre milhares de
filmes e programas de televisão de Hollywood.
Theaters of War investiga
profundamente um vasto novo acervo de documentos internos do governo divulgados
recentemente para trazer as respostas a essas perguntas em foco nítido.
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Viajando pelos Estados Unidos, o cineasta e estudioso de mídia
Roger Stahl envolveu uma série de outros pesquisadores, veteranos de guerra
perplexos, especialistas em relações públicas e produtores da indústria
dispostos a conversar. Em detalhes inquietantes descobre como os militares e a
CIA empurraram narrativas oficiais enquanto sistematicamente apagavam roteiros
de crimes de guerra, corrupção, racismo, agressão sexual, golpes, assassinatos
e tortura.
De The Longest Day a Lone Survivor, Iron
Man a Iron Chef e James Bond a Jack Ryan, Theaters
of War descobre um "universo cinematográfico" alternativo
que se destaca como um dos grandes golpes de relações públicas do Pentágono de
nosso tempo. À medida que essas atividades ganham novo escrutínio público,
surgem novas perguntas: como conseguiram passar despercebidas por tanto tempo?
E para onde vamos a partir de agora?
Theaters of War é baseado em
milhares de páginas de documentos adquiridos pelo coprodutor e jornalista
investigativo Tom Secker por meio de pedidos através da FOIA (Freedom of
Information Act, lei de acesso à informação), e dezenas de milhares de outros
adquiridos por Stahl em vários sites de arquivo. O filme também se baseia em
análises do livro "National Security Cinema", de Secker e
do coprodutor Matthew Alford, e da obra "Operação Hollywood", de
David Robb.
Um documentário sobre as incursões da CIA e do Pentágono não exatamente
uma novidade. Porém, Theaters of War detalha a tão ponto que as relações
promíscuas entre ficção e realidade acaba se transformando em práticas
corriqueiras às estratégias comerciais de product placement – a
manipulação de roteiros para criar cenas de inserção de produtos, publicidade
disfarçada (ou subliminar) para torná-los sensuais, objetos-fetiches, símbolos
de status e diferenciação.
Pensar assim com pastas de dentes, relógios Rolex ou marca de um
terno italiano é uma coisa. Outra inteiramente outra é fazer product
placement com aviões caças, sistemas de mísseis e morteiros é totalmente
outra: fazer atores e atrizes atraentes e descolados usarem esses brinquedos
militares para tornar as armas menos sombrias e cruéis. E fazer o contribuinte
ficar orgulhoso com o que fazem com o dinheiro dos seus impostos, transformando
os filmes em grandes infomerciais.
Já o título do filme mantém a tradição dos trocadilhos: “Theaters
of War”, “Teatros de Guerras ou de Operações”, são, naturalmente, zonas de
combate. Desde a Segunda Guerra Mundial, com a ascensão do poder aéreo, teatros
de operações são tipicamente áreas civis: vilas, cidades, áreas industriais,
fazendas etc. "Combate" agora geralmente envolve bombardear essas
áreas a milhares de metros de altura com fortalezas voadoras, jatos e drones.
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Mas desde a década de 1970, CIA e Departamento de Defesa
expandiram esse conceito para abarcar a indústria do cinema e audiovisual: A
ordem original do Departamento de Defesa de consultar produções de
entretenimento para garantir autenticidade e dignidade mudou para impulsionar
mudanças no roteiro e na história com foco em marketing, incentivo e
recrutamento.
O Documentário
O diretor Roger Stahl (Departamento de Estudos de Comunicação da
Universidade da Geórgia) se propõe a determinar até onde esse controle alcança
e descobre que milhares de roteiros foram adulterados sob contratos do
Pentágono e da CIA para comercializar e glorificar as forças armadas
americanas. De produções esperadas como Top Gun e Pearl
Harbor a Curtindo a Vida Adoidado e A Escolha
Perfeita 3, as produções são comercializadas como puro entretenimento sem
reconhecimento claro de influência governamental significativa.
A profundidade da colaboração entre a indústria do entretenimento
e as forças armadas dos EUA e seus muitos ramos — e mais adiante no
documentário, também a CIA — é sugerida nos primeiros minutos de Theaters of
War, quando aprendemos como o Pentágono desempenha o papel de um poderoso
produtor de cinema: seus operadores em Hollywood revisam roteiros,
"inserem pontos-chaves de discussão", apresentam projetos originais
para estúdios de cinema e TV e, mais importante, detêm um veto de fato sobre
ideias de filmes que não atendem às suas demandas de Relações Públicas.
Esse poder de veto se baseia na propriedade monopolista dos
"brinquedos" indispensáveis à produção de alguns filmes, aumentando
significativamente suas chances de sucesso comercial e reconhecimento na
indústria. Um segmento do documentário intitulado "Venda Branda"
demonstra até mesmo como os filmes de Hollywood são frequentemente usados
para exibir novos caças, veículos blindados e todos os tipos de tecnologia de
guerra (produzidos por fabricantes privados de armas e vendidos a governos em
todo o mundo).
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Em suas próprias palavras, o resultado ideal da influência do
Pentágono sobre Hollywood é um filme que se assemelhe a um "infomercial de
duas horas sobre a participação das Forças Especiais do Exército em uma de suas
muitas... missões". E a razão pela qual as pessoas assistiriam a
"infomerciais" militares secretos com horas de duração, novamente
retirados dos documentos desclassificados por esses pesquisadores, é que a tela
prateada "não é inflada com conotações negativas sobre propaganda".
Usando o filme Top Gun (1986) e os feitos impossíveis e
imprudentes do piloto Tom Cruise como exemplo, Stahl e seus entrevistados
facilmente descartam a justificativa preferida dos clichês conspiratórios. Em
outras palavras, "realismo e precisão" não estão tão no topo da lista
de prioridades quando o Pentágono analisa roteiros de filmes. E é aí que o
documentário se torna ainda mais interessante: ao listar os tópicos que o
Pentágono considera "impactantes". De fato, o documentário de Stahl
sugere que o que o establishment militar teme é o excesso de precisão e
realismo.
Meta-manipulação e controle de qualidade
“Fragging” — o assassinato de oficiais pelos seus próprios
soldados —, incompetência, racismo sistêmico, cultura do estupro, suicídio e
assassinato de civis inocentes são todos temas proibidos quando se trata de
roteiros e projetos de filmes de guerra que esperam obter a simpatia e o acesso
do Pentágono.
Mas esses são apenas os "termos gerais". Quando chegamos
aos detalhes, descobrimos que o establishment militar e a comunidade de
inteligência também precisam encobrir certos incidentes vergonhosos,
impulsionar o recrutamento e cimentar uma série de " ilusões
necessárias " na mente do público, como a utilidade da tortura.
O documentário apresenta os exemplos em filmes como Falcão Negro em Perigo e A Hora Mais Escura. O primeiro é inspirado em um erro militar real ocorrido em 1993 em Mogadíscio, Somália, e o transforma em uma história de heroísmo. O segundo — neste caso mais relacionado à espionagem e ao terrorismo do que à guerra tradicional — tenta dar credibilidade à ideia de que a tortura "salva vidas" e que foi crucial para a captura de Osama bin Laden.
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Está claro no documentário que a ingerência explícita do Ministério
da Defesa e Pentágono como produtor em Hollywood vem da escolha temática de
roteiristas e produtores: filmes de guerra, thrillers de ação e espionagem etc.
Forças Armadas oferecem os “brinquedos”, soldados como extras e locações reais.
Tornando a produção fílmica um sucesso de bilheteria garantido. “Não há almoço
grátis”, reza a sabedoria pragmática americana.
Até mesmo em franquias de comédias como Entrando Numa Fria (2000),
onde o personagem interpretado por Robert de Niro é um espião aposentado da
CIA, sofreu ingerência e correções de roteiro pelo Pentágono.
Então, por que Hollywood insiste em filmar temas relacionados a
guerras e espionagens? Ora, porque os EUA são uma nação bélica, o Império
hegemônico do planeta.
O que vemos em Theaters of War, portanto, é uma espécie de
meta-manipulação política: por si mesmo Hollywood produz filmes patrióticos e até
mesmo de crítica ao belicismo, mas uma crítica feita de maneira diluída – como até
aponta o documentário.
Hollywood está repleto de ex-combatentes e veteranos das Forças
Armadas. Como o próprio Oliver Stone (diretor de filmes como Nascido em 4 de
Julho e Platoon e entrevistado no documentário), na juventude um
herói condecorado na Guerra do Vietnã. Temáticas militares são recorrentes na
indústria cinematográfica dos EUA. O que fazem, portanto, Pentágono, CIA e
Ministério da Defesa é tão somente manter o controle de qualidade.
Documentários como Theaters of War também deve ser assistido
com crítica e distanciamento. Podem induzir a ideia maniqueísta de que Hollywood
é simplesmente a vítima de uma ardilosa conspiração governamental.
A máquina do cinema e o Império sempre andaram de mãos dadas.
Ficha Técnica |
Título: Theaters
of War |
Diretor: Roger Stahl |
Roteiro: Roger Stahl |
Elenco: Oliver Stone, Matthew Alford,
Robin Andersen |
Produção: Chiasmus Films |
Distribuição: Scorpion TV |
Ano: 2022 |
País: EUA |