sexta-feira, junho 20, 2025

'Theaters of War': como tornar armas e torturas menos sombrias e criminosas no cinema e TV

 


CIA, Pentágono e Ministério da Defesa dos EUA têm os “brinquedos” (aviões caça, porta-aviões etc.), soldados extras e locações de que Hollywood precisa para produzir seus filmes e garantir o sucesso de bilheteria pelo realismo. Em troca, exige o “controle de qualidade” dos roteiros, tornando-se um secreto produtor-executivo. É sob o álibi do “realismo” que começa a intervenção do complexo militar em Hollywood. Como revela o documentário “Theaters of War” (2022), do jornalista investigativo Tom Secker e do estudioso de mídia Robert Stahl. Que mostra como filmes de diversos gêneros se transformam em verdadeiros infomerciais para não só naturalizar a agenda militar geopolítica dos EUA, mas também tornar as armas e as torturas menos sombrias e criminosas para a opinião pública. E justificar aos distintos contribuintes o alto orçamento militar. Por outro lado, revela como Hollywood sempre esteve repleta de veteranos militares, como, por exemplo, Oliver Stone. Indústria do cinema e o complexo militar  norte-americano sempre andaram de mãos dadas.

O ator Jack Nicholson surpreso olha para trás onde está suspenso um enorme telão, no fundo do palco da 85º cerimônia do Oscar 2013 em Hollywood. Nele aparece a imagem de Michelle Obama em um link ao vivo direto da Casa Branca. Ela tem em suas mãos o envelope com o vencedor da categoria Melhor Filme, abre o envelope e anuncia: “E agora o momento que todos aguardavam... e o Oscar vai para ‘Argo’”.

Obviamente, Jack Nicholson fingiu surpresa. Ele, como meio mundo sabe, que desde que foi instituído o Código Hays (Código de Produção de Cinema formado por um conjunto de diretrizes de autocensura aplicado aos filmes produzidos no país entre 1934 e 1968), o governo estreitou suas relações políticas com Hollywood. Para transformá-lo definitivamente em máquina de propaganda patriótica na Segunda Guerra Mundial.

O tema de Argo era uma suposta bem-sucedida ação da inteligência dos EUA durante a crise diplomática dos reféns norte-americanos no Irã em 1979, em uma operação de resgate. Um filme que transformou em sucesso um retumbante fracasso da CIA que não conseguiu detectar o início da revolução islâmica, entregando funcionários e diplomatas da embaixada de bandeja como reféns.

Naquele momento em que Obama dava continuidade a “guerra ao terror” contra o terrorismo islâmico pós atentados de 2001 nos EUA, tudo fazia sentido.

Mas será que a conhecida máquina de propaganda hollywoodiana apenas se resume a isso? Encomendar roteiros para produtores da indústria do cinema para apoiar através da ficção a agenda geopolítica norte-americana?

Se você já viu Top Gun ou Transformers, você pode ter se perguntado: Todos aqueles caças F-14, porta-aviões e blindados na tela vieram de onde? Do próprio arsenal operacional das Forças Armadas?  Se sim, com quais condições? Os militares revisam os roteiros de Hollywood? Ou será que eles vão muito além dos roteiros, tornando-se na prática produtores-executivos dos filmes? 

O documentário Theaters of War (2022) nos mostra com farta documentação esse controle editorial do exército dos EUA sobre milhares de filmes e programas de televisão de Hollywood.

Theaters of War investiga profundamente um vasto novo acervo de documentos internos do governo divulgados recentemente para trazer as respostas a essas perguntas em foco nítido.



Viajando pelos Estados Unidos, o cineasta e estudioso de mídia Roger Stahl envolveu uma série de outros pesquisadores, veteranos de guerra perplexos, especialistas em relações públicas e produtores da indústria dispostos a conversar. Em detalhes inquietantes descobre como os militares e a CIA empurraram narrativas oficiais enquanto sistematicamente apagavam roteiros de crimes de guerra, corrupção, racismo, agressão sexual, golpes, assassinatos e tortura.

De The Longest Day a Lone SurvivorIron Man a Iron Chef e James Bond a Jack Ryan, Theaters of War descobre um "universo cinematográfico" alternativo que se destaca como um dos grandes golpes de relações públicas do Pentágono de nosso tempo. À medida que essas atividades ganham novo escrutínio público, surgem novas perguntas: como conseguiram passar despercebidas por tanto tempo? E para onde vamos a partir de agora? 

Theaters of War é baseado em milhares de páginas de documentos adquiridos pelo coprodutor e jornalista investigativo Tom Secker por meio de pedidos através da FOIA (Freedom of Information Act, lei de acesso à informação), e dezenas de milhares de outros adquiridos por Stahl em vários sites de arquivo. O filme também se baseia em análises do livro "National Security Cinema", de Secker e do coprodutor Matthew Alford, e da obra "Operação Hollywood", de David Robb.

Um documentário sobre as incursões da CIA e do Pentágono não exatamente uma novidade. Porém, Theaters of War detalha a tão ponto que as relações promíscuas entre ficção e realidade acaba se transformando em práticas corriqueiras às estratégias comerciais de product placement – a manipulação de roteiros para criar cenas de inserção de produtos, publicidade disfarçada (ou subliminar) para torná-los sensuais, objetos-fetiches, símbolos de status e diferenciação.

Pensar assim com pastas de dentes, relógios Rolex ou marca de um terno italiano é uma coisa. Outra inteiramente outra é fazer product placement com aviões caças, sistemas de mísseis e morteiros é totalmente outra: fazer atores e atrizes atraentes e descolados usarem esses brinquedos militares para tornar as armas menos sombrias e cruéis. E fazer o contribuinte ficar orgulhoso com o que fazem com o dinheiro dos seus impostos, transformando os filmes em grandes infomerciais.

Já o título do filme mantém a tradição dos trocadilhos: “Theaters of War”, “Teatros de Guerras ou de Operações”, são, naturalmente, zonas de combate. Desde a Segunda Guerra Mundial, com a ascensão do poder aéreo, teatros de operações são tipicamente áreas civis: vilas, cidades, áreas industriais, fazendas etc. "Combate" agora geralmente envolve bombardear essas áreas a milhares de metros de altura com fortalezas voadoras, jatos e drones.



Mas desde a década de 1970, CIA e Departamento de Defesa expandiram esse conceito para abarcar a indústria do cinema e audiovisual: A ordem original do Departamento de Defesa de consultar produções de entretenimento para garantir autenticidade e dignidade mudou para impulsionar mudanças no roteiro e na história com foco em marketing, incentivo e recrutamento. 

O Documentário

O diretor Roger Stahl (Departamento de Estudos de Comunicação da Universidade da Geórgia) se propõe a determinar até onde esse controle alcança e descobre que milhares de roteiros foram adulterados sob contratos do Pentágono e da CIA para comercializar e glorificar as forças armadas americanas. De produções esperadas como Top Gun e Pearl Harbor a Curtindo a Vida Adoidado e A Escolha Perfeita 3, as produções são comercializadas como puro entretenimento sem reconhecimento claro de influência governamental significativa.

A profundidade da colaboração entre a indústria do entretenimento e as forças armadas dos EUA e seus muitos ramos — e mais adiante no documentário, também a CIA — é sugerida nos primeiros minutos de Theaters of War, quando aprendemos como o Pentágono desempenha o papel de um poderoso produtor de cinema: seus operadores em Hollywood revisam roteiros, "inserem pontos-chaves de discussão", apresentam projetos originais para estúdios de cinema e TV e, mais importante, detêm um veto de fato sobre ideias de filmes que não atendem às suas demandas de Relações Públicas.

Esse poder de veto se baseia na propriedade monopolista dos "brinquedos" indispensáveis ​​à produção de alguns filmes, aumentando significativamente suas chances de sucesso comercial e reconhecimento na indústria. Um segmento do documentário intitulado "Venda Branda" demonstra até mesmo como os filmes de Hollywood são frequentemente usados ​​para exibir novos caças, veículos blindados e todos os tipos de tecnologia de guerra (produzidos por fabricantes privados de armas e vendidos a governos em todo o mundo).



Em suas próprias palavras, o resultado ideal da influência do Pentágono sobre Hollywood é um filme que se assemelhe a um "infomercial de duas horas sobre a participação das Forças Especiais do Exército em uma de suas muitas... missões". E a razão pela qual as pessoas assistiriam a "infomerciais" militares secretos com horas de duração, novamente retirados dos documentos desclassificados por esses pesquisadores, é que a tela prateada "não é inflada com conotações negativas sobre propaganda".

Usando o filme Top Gun (1986) e os feitos impossíveis e imprudentes do piloto Tom Cruise como exemplo, Stahl e seus entrevistados facilmente descartam a justificativa preferida dos clichês conspiratórios. Em outras palavras, "realismo e precisão" não estão tão no topo da lista de prioridades quando o Pentágono analisa roteiros de filmes. E é aí que o documentário se torna ainda mais interessante: ao listar os tópicos que o Pentágono considera "impactantes". De fato, o documentário de Stahl sugere que o que o establishment militar teme é o excesso de precisão e realismo.

Meta-manipulação e controle de qualidade

“Fragging” — o assassinato de oficiais pelos seus próprios soldados —, incompetência, racismo sistêmico, cultura do estupro, suicídio e assassinato de civis inocentes são todos temas proibidos quando se trata de roteiros e projetos de filmes de guerra que esperam obter a simpatia e o acesso do Pentágono.

Mas esses são apenas os "termos gerais". Quando chegamos aos detalhes, descobrimos que o establishment militar e a comunidade de inteligência também precisam encobrir certos incidentes vergonhosos, impulsionar o recrutamento e cimentar uma série de " ilusões necessárias " na mente do público, como a utilidade da tortura.

O documentário apresenta os exemplos em filmes como Falcão Negro em Perigo e A Hora Mais Escura. O primeiro é inspirado em um erro militar real ocorrido em 1993 em Mogadíscio, Somália, e o transforma em uma história de heroísmo. O segundo — neste caso mais relacionado à espionagem e ao terrorismo do que à guerra tradicional — tenta dar credibilidade à ideia de que a tortura "salva vidas" e que foi crucial para a captura de Osama bin Laden.


Está claro no documentário que a ingerência explícita do Ministério da Defesa e Pentágono como produtor em Hollywood vem da escolha temática de roteiristas e produtores: filmes de guerra, thrillers de ação e espionagem etc. Forças Armadas oferecem os “brinquedos”, soldados como extras e locações reais. Tornando a produção fílmica um sucesso de bilheteria garantido. “Não há almoço grátis”, reza a sabedoria pragmática americana.

Até mesmo em franquias de comédias como Entrando Numa Fria (2000), onde o personagem interpretado por Robert de Niro é um espião aposentado da CIA, sofreu ingerência e correções de roteiro pelo Pentágono.

Então, por que Hollywood insiste em filmar temas relacionados a guerras e espionagens? Ora, porque os EUA são uma nação bélica, o Império hegemônico do planeta.

O que vemos em Theaters of War, portanto, é uma espécie de meta-manipulação política: por si mesmo Hollywood produz filmes patrióticos e até mesmo de crítica ao belicismo, mas uma crítica feita de maneira diluída – como até aponta o documentário.

Hollywood está repleto de ex-combatentes e veteranos das Forças Armadas. Como o próprio Oliver Stone (diretor de filmes como Nascido em 4 de Julho e Platoon e entrevistado no documentário), na juventude um herói condecorado na Guerra do Vietnã. Temáticas militares são recorrentes na indústria cinematográfica dos EUA. O que fazem, portanto, Pentágono, CIA e Ministério da Defesa é tão somente manter o controle de qualidade.

Documentários como Theaters of War também deve ser assistido com crítica e distanciamento. Podem induzir a ideia maniqueísta de que Hollywood é simplesmente a vítima de uma ardilosa conspiração governamental.

A máquina do cinema e o Império sempre andaram de mãos dadas.


 

 

Ficha Técnica

Título:  Theaters of War

Diretor: Roger Stahl

Roteiro: Roger Stahl

Elenco: Oliver Stone, Matthew Alford, Robin Andersen

Produção: Chiasmus Films

Distribuição: Scorpion TV

Ano: 2022

País: EUA

 

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