terça-feira, dezembro 13, 2011
O Olhar Gnóstico de Kubrick
terça-feira, dezembro 13, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Recluso e avesso a jornalistas, o cineasta Stanley Kubrick revela em uma das suas poucas entrevistas um olhar bem particular para a vida: para ele, vivemos em um Universo indiferente e sem sentido que corrói a nossa vontade de viver. Nossa única saída seria desafiar essa indiferença ao suprir de Luz a "vasta escuridão" da existência. Esse olhar gnóstico pode ser a chave de compreensão da obra de Kubrick, principalmente da chamada "Trilogia Star Child": "Dr. Fantástico", "2001" e "Laranja Mecânica".
Semana passada li o livro "Stanley Kubrick Interviews". O diretor de clássicos como "Laranja Mecânica", "O Iluminado" e "Barry Lyndon" era avesso a entrevistas: preferia que os filmes falassem por ele. Esse livro reúne as poucas entrevistas do recluso cineasta falecido em 1999, abrangendo o período que vai de 1959 a 1987, revelando diversos interesses de Kubrick tais como a exploração espacial, psicanálise, efeitos da violência e religião.
O destaque é uma entrevista concedida a Eric Nordern para a revista "Playboy" em 1968. Na oportunidade Kubrick revelou uma surpreendente visão gnóstica da existência
cuja convicção pode ser a chave de entendimento na análise dos filmes do
diretor, principalmente das produções da trilogia dessa época iniciada com “Dr.
Fantástico” em 1964 e encerrada com “Laranja Mecânica” em 1971, a chamada trilogia
“Star Child”, como veremos abaixo.
Primeiro, vejamos esse trecho da entrevista de Kubrick a Eric Norden
onde discute uma especial forma de niilismo diante da existência: a maneira de
lidar com um Universo indiferente e sem sentido a partir do resgate do
“imaculado sentido de admiração das coisas simples” da infância, esquecido por
nós na medida em que desenvolvemos a consciência da morte na vida adulta:
domingo, dezembro 11, 2011
A Princesa não quer acordar em "A Bela Adormecida"
domingo, dezembro 11, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Concorrente à Palma de Ouro em Cannes, “A Bela Adormecida” (Sleeping
Beauty, 2011) da estreante diretora australiana Julia Leigh desconstrói o conto
de fadas clássico: e se a princesa não quisesse acordar? O cenário é o de uma
sociedade onde o trabalho foi precarizado e a “princesa” é uma “freelance” numa
roda-viva de subempregos marcada pela frieza emocional e onde príncipes foram
substituídos por um submundo de milionários sexualmente pervertidos em uma
mansão de “serviços à inglesa”.
Na versão original do francês Charles Perrault do conto “A Bela Adormecida” uma princesa é amaldiçoada a
dormir por cem anos até ser despertada pelo beijo de um belo e corajoso príncipe
que enfrentou uma floresta de espinhos venenosos para entrar no castelo. Cinquenta e dois anos depois da última releitura desse conto por Walt Disney em 1959, a
escritora australiana Julia Leigh ("The Hunter" e "Disquiet"), em sua estreia como diretora, revisita a
clássica estória de uma forma invertida: e se a princesa não quisesse acordar? Ela
não possui um reino, mas é solitária. E sempre visitada por homens que não são
mais príncipes, mas visitantes de uma só noite que se aproveitam sexualmente
dela enquanto está imersa no seu sono voluntário.
Indicado à Palma de Ouro
de Cannes nesse ano, o filme “A Bela Adormecida” reduz o clássico conto de
fadas ao seu núcleo mítico ou arquetípico: o sono e o esquecimento. Através de
uma narrativa estranha, espectral, etérea e fria narra a trajetória de uma “princesa”
contemporânea, Lucy (Emily Browning), uma estudante universitária em Sidney, Austrália,
de pele branca leitosa e cabelos de cor vermelho-ouro, onde, tal qual um
hamster correndo em uma roda de gaiola, vive em uma ciranda de subempregos e
identidades fragmentadas: cobaia remunerada de um laboratório, garçonete em um
café, operadora de uma fotocopiadora em um escritório e, ocasionalmente,
prostituta em pubs frequentados por yuppies.
Como pano de fundo, uma
relação complicada com a mãe alcoólatra e com um amigo chamado Birdman que também
está lentamente morrendo no alcoolismo e com quem Lucy, estranhamente, tem uma
relação de culpa. Aliás, também é estranha a roda-viva de subempregos à qual
Lucy se submete: tal como um zumbi, sem expressar sentimentos, automaticamente
exerce suas funções. Ela parece uma sonâmbula que voluntariamente quer se esquecer
de algo como forma de proteção emocional.
quarta-feira, dezembro 07, 2011
A "Religião das Máquinas" no Filme "13° Andar"
quarta-feira, dezembro 07, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
O sucesso de crítica e
de público de “Matrix” (1999) acabou, à época, eclipsando o filme “13° Andar”
(The Thirteenth Floor, 1999) , considerado muito superior. Embora guardassem aspirações
bastante similares (discutir a condição humana diante das tecnologias de
simulação e virtualização), “13° Andar” substituiu a profusão de referências e
diálogos filosóficos de “Matrix” (uma estratégia desesperada para justificar
lutas marciais, ação e bullet-times) por uma narrativa que por si mesma instigava
essas questões filosóficas. Porém, ambos os filmes se tornaram documentos do
imaginário tecnocientífico dominante no final de século XX onde associava a
tecnologia computacional com uma motivação mística por transcendência
espiritual, uma verdadeira “religião das máquinas”.
Se o historiador francês Marc Ferro estiver correto, todo
filme é uma representação da sensibilidade ou do imaginário de determinada
época, tornando, especialmente o cinema de ficção, um excelente caminho para a
história psicossocial, nunca atingida pela análise de outros tipos de
documentos (Veja FERRO, Marc. Cinema e História, São Paulo: Paz e Terra, 1992.
No final da década de 1990, dois filmes marcaram o ápice de
um ciber-imaginário marcado pelo crescimento especulativo da Internet,
tecnologias computacionais e realidade virtual: “Matrix” e o “13° Andar”, ambos
lançados em 1999.
A partir do lançamento bombástico do Windows 95 toda a
imprensa especializada e produções acadêmicas foram tomadas por duas tendências
distintas: primeiro, pelo espírito messiânico que via nas tecnologias virtuais o
potencial para revolucionar a economia real e, ao mesmo tempo, o crescimento
das técnicas motivacionais ou de auto-ajuda explicitamente baseados em modelos
computacionais (o cérebro e o próprio Self como um software reprogramável). E,
segundo, o espírito distópico que via na virtualização do real uma armadilha na
qual a humanidade cairia ao esquecer as demandas da realidade.
Porém, essas duas visões distintas guardavam algo em comum:
o ciber-misticismo. Os filmes “Matrix” e o “13° Andar” representaram essa
síntese de final de século ao unir através do cibermisticismo esses dois
enfoques opostos dos mundos tecno-empresarial e acadêmico. Ambos os filmes aproximam
tecnociência e misticismo ao apresentarem a tecnologia computacional como
mediação possível para a transcendência espiritual.
segunda-feira, dezembro 05, 2011
"O Clube da Luta": a Busca da Gnose entre o Consumismo e a Violência
segunda-feira, dezembro 05, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
A atmosfera
distópica e niilista do filme “O Clube da Luta” (Fight Club, 1999) do diretor
David Fincher (“A Rede Social”) cria um cenário trágico, mas, principalmente,
ambíguo. O filme parece ter sido composto dentro de uma “zona cinza”, entre a
vida obscura e anônima onde alimentamos sonhos de consumo e a busca de alguma
saída messiânica, negativa e totalitária. A narrativa procura o meio termo: a
busca da iluminação espiritual por meio da busca de si mesmo através do
silenciamento do corpo e do pensamento, nem que seja através da violência.
Buscar a iluminação através do desprezo pelo “mísero composto universal” do
qual fazemos parte.
Incomunicabilidade, alienação e impossibilidade de
transformação são temas recorrentes na filmografia do diretor David Fincher:
entre o recente “A Rede Social” (onde um gênio em algoritmos de Havard com
grande dificuldade em se relacionar desconta sua ansiedade difamando pessoas em
um blog) e o mais antigo “Vidas em Jogo” de 1997 (um milionário frio e
solitário é submetido a um tratamento de choque por meio de um "roller play game" contratado pelo irmão na esperança de conscientizá-lo), temos o cultuado e
enigmático “Clube da Luta” com os mesmos temas, porém carregado de uma
ambiguidade explosiva como veremos abaixo.
Baseado no livro homônimo de Chuck Palahniuk de 1996, para
Fincher o grande tema de “Clube da Luta” era a emancipação assim como os filmes
“A Primeira Noite de um Homem” (The Graduate, 1969) ou “Juventude Transviada”
(Rebel Whithout a Cause, 1955), mas, dessa vez, para jovens adultos na faixa
dos 30 que vivem na sociedade atual que impede o amadurecimento: “fomos
projetados para sermos caçadores, mas vivemos em uma sociedade de shoppings.
Não há mais pelo que caçar, pelo que lutar, superar ou explorar. No interior
dessa sociedade da castração é que foi criado o protagonista do filme”, afirma
Fincher para completar: “para o protagonista encontrar a felicidade o único
caminho possível será viajar através de uma iluminação no qual mate seus
familiares, seu deus e seu professor” (VEJA Smith, Gavin (Sep/Oct 1999). "Inside Out: Gavin Smith Goes
One-on-One with David Fincher". Film Comment 35 (5): pp. 58–62, 65,
67–68.)
sexta-feira, dezembro 02, 2011
Será a Realidade um Filme Mal Produzido? (Parte 3) - Filmes "Mad City" e "Wag the Dog"
sexta-feira, dezembro 02, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Com essa postagem encerramos a
trilogia sobre as mutações na percepção da realidade. Na década de 1990 dois
filmes iniciam uma nova visão crítica da mídia e do Jornalismo: “O Quarto Poder”
(Mad City, 1997) de Costa Gavras e “Mera coincidência” (“Wag The Dog”, 1997) de
Barry Levinson. Em ambos os filmes a crítica não está mais na manipulação
política dos fatos por jornalistas e interesses econômicos, mas em uma denúncia
“metafísica” de que a realidade estaria tornando-se um “constructo” do próprio
aparato midiático que pretende representá-la como notícia e informação. A realidade
progressivamente assume aspectos de um estúdio de TV a céu aberto a tal ponto
que não mais se distingue a verdade e a mentira, a ficção e a realidade.
A década de 1990 foi marcada por uma safra de filmes
hollywoodianos que começam a tematizar as relações da mídia e jornalismo não
apenas com os fatos ou as notícias, mas com a própria realidade. Se em outras
décadas tivemos diversos filmes que denunciavam o caráter manipulador dos
interesses políticos e econômicos de repórteres e dos conglomerados midiáticos
(A Montanha dos Sete Abutres, 1951; Todos os Homens do Presidente, 1976;
Network: Rede de Intrigas, 1976 etc.), na década de 1990 acompanhamos produções
que vão além da denúncia da manipulação ao lançar uma estranha suspeita: o que
entendemos como “realidade” pode estar se tornando um gigantesco estúdio onde
acontecimentos são produzidos direta ou indiretamente pela presença dos
aparatos de captação do real (câmeras, microfones, repórteres etc.): Ed TV
(1999), Show de Truman (Truman Show, 1998), Herói por Acidente (Hero, 1992), O
Quarto Poder (Mad City, 1997), Mera Coincidência, (Wag the Dog, 1997) etc.
Vejamos o caso do filme “O
Quarto Poder”. Desde o filme “Z” (1969) sobre abusos da ditadura militar na
Grécia, Costa Gavras se notabilizou como adepto do cinema político, mas nesse
filme em particular o diretor abandona o campo da política institucional (o
Estado, o Poder, a Repressão Política etc.) para entrar no ambíguo tema do jogo
de mútuos reflexos entre mídia e realidade.
terça-feira, novembro 29, 2011
Será a Realidade um Filme Mal Produzido? (Parte 2) - Umberto Eco
terça-feira, novembro 29, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
O italiano Umberto Eco no seu livro "Travels in Hyperreality" de 1983 (no Brasil, “Viagens na Irrealidade Cotidiana”) fez uma série de observações extremas que, três décadas depois foram confirmadas e, em alguns casos, até superadas: imitações e réplicas ficarão tecnologicamente superioras à própria realidade a tal ponto iriam contaminar o real e a História. Isso Umberto Eco verificou no mundo dos museus e do turismo, mas é na TV que essa tendência seria mais dramática: de janela aberta para o mundo e testemunha ocular da História, a TV se transformaria em uma entidade autista e em um aparato criador de realidades: os chamados "eventos-encenação".
Ao lado do norte-americano Daniel Boorstin (discutido na
postagem anterior), o escritor e semiólogo italiano Umberto Eco foi um dos
primeiros teóricos da simulação. Nos anos 70 Eco empreendeu uma excursão pelos
EUA para obter, em primeira mão, um olhar para as imitações e réplicas que
estavam expostas em museus e parques temáticos e turísticos no país. O
resultado foi uma série de ensaios que resultou no livro clássico “Travels in
Hiperreality”.
Lendo hoje, percebemos no trabalho uma estranha qualidade: a combinação de filosofia pós-moderna com o estilo das colunas de turismo dos
jornais de final de semana, porém, cheio de descrições sardônicas.
Desempenhando o
papel simultâneo de crítico cultural e guia turístico, leva o leitor através da paisagem
americana que, ele diz, estaria recriando uma falsa História, uma falsa arte,
natureza e cidades. Ao longo do caminho, ele
examina uma reprodução do Salão Oval do ex-presidente Lyndon Johnson, e passa
por uma reconstrução do laboratório de uma bruxa medieval, onde gritos gravados
do que parecem ser de bruxas na fogueira podem ser ouvidos ao fundo. Ele visita museus de cera onde
obras de arte são recriadas e, muitas vezes, reinventadas de forma inesperada,
resultando em mutações culturais como uma estátua de cera da Mona Lisa e uma cópia
da Vênus de Milo "restaurada", com braços.
O mais notável nesses ensaios é que, três décadas
depois de publicados, muito das suas observações extremas foram confirmadas e,
em alguns casos, superadas.
O melhor exemplo é o do ensaio “Televisão: a
Transparência Perdida” onde cria dois conceitos hoje clássicos na Teoria da
Comunicação – Paleotevê e Neotevê.
domingo, novembro 27, 2011
Será a Realidade um Filme Mal Produzido? (Parte 1)
domingo, novembro 27, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Daniel Boorstin |
“(...) a sociologia, a análise econômica, a análise de poder
etc. Sem prejuízo do que todas essas veneráveis ciências são capazes, incorrem
elas num erro fundamental. Não consideram a possibilidade de que a própria
realidade, inclusive toda a sociologia, a ciência econômica etc., possa ser um
filme mal produzido.” (GROYS, Boris. “Deuses Escravizados”).
E se considerarmos
que a própria realidade, cercada por um ambiente altamente midiatizado pelas tecnologias
de comunicação e informação, estivesse se tornando, ela própria, um campo de eventos
cada vez mais artificiais? Explicando melhor, e se a própria estrutura dos
acontecimentos fosse cada vez mais moldada ou influenciada pela presença
massiva dessas tecnologias ao ponto de que os eventos progressivamente se
esvaziassem em seu estatuto ontológico, isto é, como fatos fechados em si
mesmo, espontâneos, históricos?
O “erro fundamental” a que se refere a citação acima do teórico de mídia e filósofo Boris Groys seria o de que as metodologias das ciências humanas ainda
não perceberam esta espécie de paradoxo quântico na relação das mídias diante
da própria realidade: o olhar do observador altera o transcorrer dos próprios
fenômenos que ele quer observar. E se o social, o político e o econômico
tiverem o seu vir-a-ser determinado pela existência das mídias que os observam?
Ao Consumir as imagens dos eventos através das mídias ainda as tomamos pela
tradicional noção ontológica de realidade, mas, ao contrário, há muito tempo deixaram
de serem imagens da realidade para se tornarem cada vez mais representações de
representações (simulacros) que tomamos como o próprio real. O que chamamos de
realidade já teria se reduzido a uma fina interface gerada pelos códigos
midiáticos.
Essa dúvida
epistemológica levantada por Groys em relação às ciências sociais de que o próprio
objeto de estudos estaria perdendo o status ontológico se insere em toda a
discussão dos pós-modernos sobre os conceitos de Simulacro e Simulação e a
suspeita de que a realidade é um “constructo” ao melhor estilo “Show de Truman”
ou “Matrix”.
sábado, novembro 26, 2011
Alquimia e Morte em "Perfume: a História de um Assassino"
sábado, novembro 26, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Considerado inadaptável à linguagem cinematográfica,
o livro “Das Parfum” de Patrick Süskind foi finalmente roteirizado para o
cinema em 2006. O resultado foi o filme “Perfume:
a História de um Assassino” (Das Parfum) pelo diretor Tom Tykwer
de “Corra, Lola, Corra” (1998). O filme narra como a busca alquímica da
quintessência dos perfumes (a soma das flagrâncias das mais belas mulheres do
mundo) pode resultar em uma série de assassinatos. O anseio pela experiência do
sublime e do espiritual pode se converter no seu oposto: a morte e o horror.
“Perfume:
a história de um assassino” é um filme baseado no livro "Perfume" de Patrick
Süskind de 1985. Vendeu mais de 15 milhões de cópias e foi traduzido para
quarenta línguas. Süskind acreditava que somente dois diretores de cinema
poderiam fazer justiça ao seu livro: Stanley Kubrick e Milos Forman. Mas o livro
foi considerado inadaptável para a linguagem cinematográfica. No depoimento do
roteirista do filme Bernd Eichinger: “o protagonista da estória não se
expressa. Um escritor pode usar a narrativa para compensar isso; mas não é
possível em um filme. O espectador só pode ter algum sentimento por um
personagem se ele fala.”
Isso porque o protagonista (Jean-Baptiste Grenouille) é a própria encarnação do
Absoluto no sentido metafísico.
Jean-Baptiste nasceu com um poder espacial: o sentido do olfato apuradíssimo,
capaz de distinguir flagrâncias as mais refinadas e etérias em meio ao caos de
percepções do cotidiano. Ele tinha um olfato extremamente desenvolvido, o que
lhe permitia reconhecer os odores mais imperceptíveis. Conseguia cheirá–los por
mais longe que estivessem e armazenava–os todos em sua memória, também
excepcional para relembrar aromas. Nascido em um fétido mercado de peixes de
Paris e jogado pela mãe, ainda recém-nascido, no meio de vísceras e escamas
apodrecidas, o poder do protagonista é dotado de um simbolismo: a necessidade
da transcendência do humano em meio ao caos disforme da matéria bruta.
quinta-feira, novembro 24, 2011
No Filme "Zelig" Woody Allen faz uma Fábula sobre a Psicologia de Massas do Século XX
quinta-feira, novembro 24, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Woody Allen conseguiu transformar o seu filme “Zelig” (1983)
em uma narrativa que se mantém sempre atual: por meio do humor sardônico do gênero
pseudo-documentário conseguiu didaticamente apresentar as origens da cultura narcísica das celebridades contemporâneas e, através da personagem da doutora Eudora
Fletcher (Mia Farrow) descrever as principais teses do século XX sobre a
Psicologia de Massas.
“Zelig” talvez seja o primeiro filme do gênero "mockmentary" ou pseudo-documentário. Satírico por natureza, nesse gênero o diretor tem a
liberdade de construir argumentos baseando-se em falsas premissas para, dessa
forma, criar um fato hipotético. O semiólogo italiano Umberto Eco chamaria isso
de “verdade parabólica”: criar uma relação indireta com o real por meio de
simbolismos, paródias, paráfrases etc. É um gênero que ganha cada vez mais
força como o controverso “Borat” (2006), “Cloverfield: Monstro” (Cloverfield, 2008)
e “A Bruxa de Blair” (The Blair Witch Project, 1999).
Mas o filme “Zelig” estava à frente do seu tempo. O pseudo-documentário
é ambientado na década de 1920 e 30 e fala sobre Leonard Zelig (Woody Allen),
um homem pacato e desinteressante que passaria anônimo na história, não fosse a
estranha capacidade de transformar sua aparência na das pessoas que o cercam
(na presença de chineses adquire traços orientais, na presença de judeus
transforma-se num rabino etc.). É o “camaleão humano”, estranho caso que
intriga psicólogos, psiquiatras e neurologistas que não conseguem chegar a um
diagnóstico. Com o auxílio da técnica do “croma key” Woody Allen inseriu seu
personagem e outros atores em imagens reais de cinejornais da época,
antecipando técnicas usadas em filmes como “Forrest Gump” (1994).
Para diluir ainda mais os limites entre realidade e ficção,
o filme conta ainda com a participação de figuras reais do mundo acadêmico como
a ensaísta Susan Sontag, o psicólogo Bruno Bettelheim e o escritor vencedor do
prêmio Nobel Saul Bellow, entre outros.
quarta-feira, novembro 23, 2011
O Futuro como Profecia Auto-Realizadora no filme "O Pagamento"
quarta-feira, novembro 23, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Embora seja a pior adaptação no cinema de uma obra do escritor norte-americano de sci fi Phip K. Dick, o Pagamento (Paycheck, 2003) propõe a discussão de um interessante paradoxo temporal: a profecia auto-realizadora como tática de engenharia de opinião pública para que futuros alternativos sejam induzidos e manipulados. Mentiras ou boatos podem paradoxalmente se auto-realizarem como verdades. Isaac Assimov chamava isso de "Psicohistória".
Desde o filme “O Caçador de Andróides” (Blade Runner, 1982),
Hollywood descobriu o escritor de ficção científica assumidamente gnóstico
Philip K. Dick. A maioria das adaptações de seus contos ou livros completos
obtiveram sucesso comercial ou crítico: “O Caçador de Andróides”, “O Vingador
do Futuro”, “Screamers”, “Minority Report”, “Scanner Darkly” e o recente "Agentes do Destino". Porém, o
filme “O Pagamento” foi certamente a pior das adaptações.
Logicamente, a culpa não foi de K. Dick mas dos produtores
por convidarem John Woo, diretor que se notabilizou pela prioridade às cenas de
ação em seus filmes (“A Outra Face” e “Missão Impossível 2”). Para quem está
familiarizado com a obra e filmes baseados em Philip K. Dick facilmente reconhecemos em “O Pagamento” alguns dos seus temas mais caros: perda da memória e paradoxos
temporais. Mas John Woo, ao adaptar a estória de ficção científica
transformou-a, no final, em uma mera narrativa de ação.
Por isso, vamos resgatar nessa postagem o tema que acreditamos
seja o principal na obra “Paycheck” e que foi pouco desenvolvido pela direção
de John Woo: o paradoxo do tempo recursivo.
Primeiro vamos fazer uma breve sinopse: Michael Jennings
(Ben Affleck) é um especialista em engenharia reversa: analisa o produto da
empresa concorrente e desenha uma nova versão que excede as características
originais. Ao finalizar esse trabalho, suas memórias correspondentes ao período
de tempo em que trabalhou são apagadas com a ajuda técnica do seu amigo Shorty
(Paul Giamatti) para proteger a propriedade intelectual de seus clientes.
James Hethrick (Aaron Eckhart), CEO da empresa Allcom,
oferece um misterioso trabalho que envolve um projeto ultra-secreto da área de
ótica, com uma duração de no mínimo três anos. Em troca do apagamento das
memórias desse período, Hethrick oferece participação nas ações da empresa. Ele
completa o trabalho e descobre que desistiu dos milhões de dólares em ações em
troca de um enigmático envelope contendo uma série 20 diferentes objetos,
aparentemente sem nenhum nexo: chave, um maço de cigarros, óculos de sol, uma
bala de revólver.
Por que desistiu de uma fortuna em ações por um envelope
contendo esses prosaicos objetos? Perplexo, Jennings se vê numa situação onde a
Allcom tenta matá-lo, ao mesmo tempo em que agentes do FBI tentam capturá-lo
por suspeita de um crime que não lembra ter cometido.
sábado, novembro 19, 2011
O Western Espiritual "Dead Man"
sábado, novembro 19, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
De todos os subgêneros
e revisionismos criados a partir do western clássico, o que mais chama a
atenção é o “acid western” pelo seu caráter “underground” místico e messiânico:
todos os personagens do gênero estão lá (caçadores de recompensas, prostitutas,
cowboys errantes etc.), porém eles não lutam mais por vingança, conquista ou
justiça: buscam a iluminação espiritual. “Dead Man” (1995) do diretor Jim
Jarmuch se insere nesse subgênero ao rechear as linhas de diálogos com inúmeras
referências ao poeta e pintor inglês místico e herético William Blake e construir uma narrativa
hipnótica como um mantra ao som da guitarra de Neil Young.
O gênero western é um produto tipicamente norte-americano
que passou por uma série de renovações, sempre com a preocupação da indústria
do entretenimento universalizá-lo para torná-lo um produto com um mercado
globalizado: do western clássico desde a era do cinema mudo que retrata a luta
do homem para conquistar a natureza infestada por índios e animais selvagens,
passando pelo diretor John Ford (culturalmente mais neutro onde os nativos
passam a ter um melhor tratamento) que vai construir aprofundamentos
psicológicos em toda a galeria dos personagens do gênero (caçadores de
recompensas, cowboys errantes etc.) até chegar a autoconsciência paródica do
chamado “spaghetti western”de Sérgio Leone e o revisionismo de Sam Peckinpah
onde pretendia arrancar poesia da violência representada em câmera lenta.
Para além dessa trajetória “mainstream”, o crítico de cinema
Jonathan Rosenbaun aponta para um subgênero underground: o “acid western”subgênero
que se inicia com o filme “El Topo” (The Mole, 1970), um western místico Cult recheado
de referências ao tarot, messianismo e referências bíblicas em linguagem
lisérgica. “Dead Man” de Jim Jarmuch se insere claramente nessa linha ao criar
um protagonista que não busca mais conquista, vingança ou justiça, mas
iluminação espiritual através de uma “poesia escrita com sangue”.
É a estória de um jovem homem que realiza uma jornada espiritual em uma
terra estranha para ele, nas fronteiras extremas do oeste americano, em algum
momento da segunda metade do século XIX. William Blake (Johnny Deep) é um
contador que recebe convite para trabalhar em uma metalúrgica em uma cidade
chamada Machine. Em seus bolsos alguns dólares e a carta de promessa de emprego
na metalúrgica. Chegando lá, descobre que outro homem já ocupava a vaga de
contador e que ele, Blake, chegou com um mês de atraso.
Deprimido, vai para um saloon, onde encontra com uma mulher,
ex-prostituta, Thel (Mili Avital). Defende-a da agressividade dos homens do
local, sendo convidado por ela para ir até seu quarto. Lá, ambos são flagrados
pelo noivo Charlie Dickinson (Gabriel Byrne) que dispara um revólver, atingindo
os dois. Em legítima defesa, Blake o mata e foge, depois de constatar que Thel
estava morta. A partir desse ponto, começa o purgatório de Blake: Charlie era,
na verdade, filho do proprietário da metalúrgica, que contrata três pistoleiros
para matá-lo em vingança.
sábado, novembro 12, 2011
Editor do Blog “Cinema Secreto: Cinegnose” sofre acidente
sábado, novembro 12, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Vejam o estado do capacete |
Esse blog ficará temporariamente sem atualizações devido a
acidente ciclístico sofrido por mim neste último domingo. Treinava, como de
rotina, no Rodoanel aqui da Grande São Paulo. Na saída de um túnel que dá
acesso ao Rodoanel Sul e a Régis Bittencourt fui pego de surpresa com um
desnível entre as placas de concreto do pavimento (alías, placas que estão
progressivamente se deteriorando com o peso dos caminhões, em todo Rodoanel). A
roda dianteira travou e fui projetado para frente em cambalhota.
Um dia após a cirurgia, internado |
Resultado: uma fratura grave na coluna sob risco de ficar
paraplégico. Fui submetido a cirurgia ontem (11/11) no Hospital Leforte, em São
Paulo. A cirurgia foi um sucesso e estou no quarto onde digito essas mal
traçadas linhas.
Portanto, leitores e seguidores, as atividades do blog estão
temporariamente suspensas. Segundo o prognóstico da junta médica, uma semana;
Abraços e até a volta, porque o pior já passou.
quinta-feira, novembro 03, 2011
A Ilusão do Mundo e o Mundo da Ilusão no filme "O Fundo do Coração"
quinta-feira, novembro 03, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
À época do seu lançamento o filme "O Fundo do Coração" (One From the Heart, 1982) foi fracasso de crítica e de público e a falência do diretor Coppola. Ninguém entendeu nada. Não é para menos, pois o filme estava à frente da sua época: um musical romântico hiper-estilizado e metalinguístico reproduzindo Las Vegas em estúdio com um assombroso número de cenários antevia a sensibilidade atual onde, com a proliferação das tecnologias das imagens e virtualização do real, passamos a conviver com a suspeita de que o mundo possa ser uma ilusão fabricada, como um gigantesco estúdio. Parece que Coppola anteviu "Show de Truman" e "Matrix".
segunda-feira, outubro 31, 2011
Confirme o Seu Exemplar do Livro "Cinegnose"
segunda-feira, outubro 31, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Esses são os nossos leitores que receberão um exemplar do livro "Cinegnose":
01- Cristiano Ferreira
02- Fabrício Franco
03- Victor de Oliveira Iemini
04- Thiago Lima
05- Felipe Monteiro Vazami
06- Conrado Moreno
07- Fábio Hofnik
08- Henrique A. Conti
No formulário abaixo de envio de comentários insira os dados de destinatário para o envio do exemplar do livro e... VALEU PELA PARTICIPAÇÃO!
Enviaremos o livro pelo correio em até 7 dias úteis.
Sorteio de Aniversário: 10 exemplares do livro "Cinegnose" para nossos Seguidores
segunda-feira, outubro 31, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Bom Ano Novo para nossos seguidores e leitores!!!
Para comemorar o segundo aniversário do “Cinema Secreto:
Cinegnose” e mais um ano que se inicia estamos lançando o sorteio de 10 exemplares do livro “Cinegnose: A Recorrência de
Elementos Gnósticos na Recente Produção Cinematográfica Norte-americana 1995 a
2005” da Livrus Editora (clique aqui para um resumo e conteúdo do livro).
Essas são as regras de participação do sorteio:
Essas são as regras de participação do sorteio:
1 - Os exemplares serão entregues pelo correio em até 7 dias úteis após o sorteio que será realizado às 18h do dia 17 de janeiro
de 2012;
2 - Poderão participar do sorteio somente os seguidores do blog. Portanto, participe blog "Cinema Secreto: Cinegnose" e torne-se um seguidor (clique no botão "participar desse site" na segunda coluna do blog, aí ao lado desse post);
3 – Para o seguidor iniciar a participação, faça um comentário no formulário deste
post de divulgação do sorteio deixando seu nome e e-mail de contato;
4 - As inscrições poderão ser realizadas até as 12h da
data do sorteio (17/01/2012). Após este horário todas as inscrições serão descartadas;
5 - Cada participante receberá um numero em ordem
crescente de comentários e o sorteio será realizado pelo gerador online de
sorteio RANDON ORG. Oportunamente será divulgada a lista de participantes e seus números correspondentes para o sorteio;
6 - Cada participante poderá realizar apenas uma
inscrição. Comentários duplicados serão excluídos;
7 - Após a realização do sorteio o ganhador terá 3 dias
para recorrer ao prêmio, realizando um comentário no post de divulgação do
resultado do sorteio, para que todos vejam que ele recorreu ao prêmio dentro do
prazo estipulado. Caso o mesmo não entre em contato no tempo
estipulado realizaremos novo sorteio entre as pessoas inscritas.
sexta-feira, outubro 28, 2011
Um Manual de Manipulação no Filme "Como Fazer Carreira em Publicidade"
sexta-feira, outubro 28, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Em plena era triunfal do Neoliberalismo de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, o filme "Como Fazer Carreira em Publicidade" (How to Get Ahead in Advertising, 1989) foi muito mais do que uma voz dissonante. Apresenta de forma didática um verdadeiro manual de táticas de manipulação e de engenharia de opinião pública.“Porque sou aquele que tira o fedor de tudo, exceto da merda”. Essa é uma das definições dadas para a Publicidade nessa provocadora comédia de humor negro. Um filme obrigatório para ser visto e discutido em qualquer curso de Comunicação Social.
sábado, outubro 22, 2011
A mitologia pop de aliens, sexo, drogas e euforia no filme "Liquid Sky"
sábado, outubro 22, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Em meio a euforia da onda Punk e New Wave no mundo da Moda do começo dos anos 1980, turbinada pela heroína e cocaína, um pequeno disco voador pousa na cobertura de um prédio em Nova York. Aliens invisíveis estão em busca de uma substância única liberada pelo cérebro humano durante a euforia lisérgica. Mas descobriram que a mente humana também produz a mesma substância durante o orgasmo. Sexo torna-se mortal naquele pequeno mundo de artistas e modelos. Após cinco anos nos EUA, o russo Slava Tsukerman decidiu fazer um filme independente que explorasse a mitologia pop contemporânea sobre sexo, euforia, drogas e alienígenas do espaço sideral. É "Liquid Sky" (1982), um filme sobre exilados e estrangeiros, assim como ele. Um olhar sobre a condição humana contemporânea dominada pelo sentimento de desamparo e alienação em um mundo governado por novos Demiurgos: alienígenas e a indústria do entretenimento.
quarta-feira, outubro 19, 2011
China proíbe "Viagem no Tempo": a experiência cinematográfica pode ser "perigosa"
quarta-feira, outubro 19, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Autoridades chinesas de mídia proíbem filmes com o tema "viagem no tempo" e exigem que produtores e escritores lançem "produções realistas da Revolução Chinesa". Falta aos chineses abandonar a truculência estalinista para compreender os sutis mecanismos hollywoodianos de controle onde se é capaz de oferecer uma grande liberdade temática, porém confinada pelas rígidas normas de forma e conteúdo. Mecanismos sutis que convergem para o mesmo objetivo das preocupadas autoridades chinesas: evitar que a experiência fílmica produza no espectador uma ruptura com o princípio de realidade.
No ano da comemoração do 90° aniversário
do Partido Comunista da China, as autoridades de mídia do país resolveram
proibir quaisquer filmes ou seriados que tenham como tema viagens no tempo. Em
um país com a maior audiência de televisão do mundo e o mercado de cinema em
franca expansão, a decisão foi justificada pelo “desrespeito histórico” que
esse tema de ficção científica mostraria (leia notícia aqui).
Um dos maiores sucessos na China, o seriado "Jade Palace Lock
Heart" (onde oa protagonista volta à época da China antiga onde encontra o amor
e a felicidade - veja imagem acima) é avaliado pela Administração Estadual de Rádio, Filme e
Televisão como uma representação da história “frívola e que não pode ser mais
encorajado”. E transmitiu a seguinte mensagem para os produtores e escritores
do país: “Sigam o espírito do Partido Comunista para celebrar o seu 90o
aniversário. Todos os níveis devem se preparar para lançar reproduções
realistas da Revolução Chinesa.” Em outras palavras, as autoridades cobram das produções
audiovisuais e cinematográficas maior realismo, seja no campo ficcional ou
documentário.
Em primeiro lugar, encontramos nessa notícia ecos do chamado
realismo socialista de orientação comunista ortodoxa e de inspiração stalinista
que dominou a arte e estética soviéticas onde as produções deveriam ser
instrumentos de exaltação do regime ao representar de forma “realista” o
heroísmo proletário. Por exemplo, diretores russos como Tarkovsky com temas
metafísicos e espirituais dentro do gênero sci fi em filmes como “Solaris” (1972) e “Stalker” (1979) sofreram forte repressão do Estado, obrigando o diretor a sair da URSS em 1983.
Mas há algo a mais nessa proibição sobre “viagens no tempo” no
cinema e audiovisual chineses. Acredito que a justificativa do “desrespeito
histórico” é um mero pretexto para exercer um controle que há muito tempo
Hollywood já fez ao enquadrar suas produções desde o final da fase dos filmes “slapstick”:
a imposição da verossimilhança ou “realismo cinematográfico” na narrativa para impedir que a experiência cinematográfica possa produzir o “acontecimento comunicacional”,
isto é, uma experiência que produza a transformação do espectador, a transcendência ou a possibilidade de
ruptura psíquica com a rotina do dia-a-dia após sair do cinema.
sábado, outubro 15, 2011
A Transparência do Mal em "Saló ou os 120 Dias de Sodoma" de Pasolini
sábado, outubro 15, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
A primeira vez que assisti ao filme “Saló ou os 120 dias de
Sodoma” de Pasolini foi dentro da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
no extinto cine Paramount (hoje Teatro Abril) lá pela década 1980. Naquela
noite, enquanto o filme era exibido, vi espectadores correndo para o banheiro
com as mãos levadas à boca, aparentemente com ânsia de vômito; muitos
simplesmente se levantando e indo embora e os demais com os rostos crispados de
horror e repugnância (o meu, inclusive). Resultado: restaram ao final das quase
duas horas de projeção eu e mais quatro espectadores.
Em meio a “snuff movies”, “slasher movies”, “pornôs hardcore”,
“nazi-exploitation” etc. atuais que acabaram moldando uma sensibilidade mais
fria e apática diante do Mal, Saló permanece um filme instigante, provocativo e
chocante. Por que? Olhando em perspectiva o conteúdo das diversas cenas,
encontramos até muitos cenas que se tornaram clichês presentes nos gêneros
cinematográficos citados acima. Mas, mesmo assim, as sevícias, torturas e
mutilações em “Saló” ainda horrorizam, mas de uma forma radical: certamente
este filme de Pasolini foi o que melhor soube representar a radicalidade do Mal
proposta pela obra de Marquês de Sade – a reversibilidade do Mal e o Inumano.
Isto é, o Mal que não pode ser racionalizado, explicado,
deduzido, porque originado da própria Razão e dos seus instrumentos que
deveriam impedi-lo de existir.
O filme segue fielmente a obra “Os 120 dias de Sodoma” de
Marquês de Sade, associando a narrativa sadeana ao momento histórico da criação
de uma nova república fascista na cidade setentrional de Saló em 1943 por
Mussolini após sua deposição do governo do país com a invasão das tropas
aliadas e a revolta popular.
Em Saló, quatro poderosos (o Duque, representando a nobreza;
o Bispo, a Igreja; o Presidente, o Estado laico; o Magistrado, a corrupção e a
parcialidade da Justiça) decidem juntar sua fortunas para realizar a maior
orgia já concebida pela mente humana: em um castelo isolado é formado um grupo
de 8 garotos, 8 garotas, 4 narradoras, 4 putas velhas, 8 garanhões, 4 criadas,
6 cozinheiras e as 4 filhas dos libertinos, casadas entre eles.
quarta-feira, outubro 12, 2011
O "Inumano" no Filme "A Centopeia Humana"
quarta-feira, outubro 12, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Se os gêneros ficção científica e Terror exploram principalmente os temas do Pós-Humano e do Desumano, em "A Centopéia Humana" do holandês Tom Six temos uma novidade: o tema do Inumano, poucas vezes trazido para as telas do cinema pela sua maneira radical e perturbadora de encarar o Mal. Não se trata mais de impingir o horror, sofrimento e a morte final à vítima. Mas retirar dela toda sua humanidade ao fazê-la regredir à condição animal por meio dos próprios intrumentos da evolução humana: Ciência, Técnica e Razão.
O tema do Desumano conta ainda com uma “hermenêutica do
Mal”: psicopatas como Jason e Fred Krueger são assassinos seriais e cruéis por
decorrência de traumas do passado que marcaram para sempre suas personalidades.
As narrativas procuram racionalizar o Mal buscando uma explicação no psiquismo
humano.
O tema do Pós-humano é recorrente no cruzamento
entre ficção científica e terror: desde a estória de Frankenstein, passando por
filmes como “Robocop” (RoboCop, 1987) para chegarmos aos pesadelos do diretor
Cronenberg como em “Videodrome” (1983) e eXistenZ (1999) : fantasias
cabalísticas onde o homem quer ser Deus e tenta produzir vida a partir de um “golem”;
seres híbridos de carne, sistemas eletrônicos e servomecanismos para superar as
limitações corporais humanas; interfaces biológicas com redes digitais onde o
Eu transcenda o corpóreo etc. No
pós-humano há o desejo gnóstico-cabalístico da superação das limitações
existenciais e corporais humanas (finitude, temporalidade e senso de
fragilidade corporal). O elemento do horror é a presença da ambiguidade do
pós-humano, a diluição das fronteiras entre homem e máquina, espírito e matéria
e orgânico e inorgânico. E horror de vermos o inorgânico e sem vida ganhar
consciência e dominar o espírito humano.
Já o Desumano está no campo da moralidade
e da “hermenêutica do mal”. Torturas, humilhações e assassinatos são impingidos
por um serial killer, um monstro sobrenatural ou um psicopata. Pense num filme
como “Jogos Mortais” (Saw, 2004): o vilão aprisiona pessoas em elaborados
dispositivos e jogos para punir atos pregressos imorais ou anti-éticos das vítimas. Ou
ainda, sanguinário personagem Alex do
filme “Laranja Mecânica” (Clockwork Orange, 1971) que sabe que suas atrocidades são puníveis pelo Estado e
Polícia. Teme a lei e foge para não ser preso. Alex e o Jigsaw são, portanto,
imorais.
Portanto, podemos denominar a condição da vítima como
“desumana” porque há ainda no horizonte referências como o Humanismo, a Ética e
a Moral.
A novidade do filme “A Centopéia Humana” (The Human Centipede - First Sequence, 2009) é trazer para o
gênero terror o tema do Inumano: não se trata mais de subjugar,
humilhar ou destruir o psiquismo da vítima pelo horror, medo ou tensão. E,
muito menos, se trata de querer punir a vítima com o sofrimento e a morte
final. Trata-se muito mais de anular qualquer humanidade ao fazer a vítima
retroceder ao estágio animal, morficamente falando e não no sentido figurado.
sábado, outubro 08, 2011
Em "Contraponto" a "Alice" de Lewis Carroll se encontra com "Psicose" de Hitchcock
sábado, outubro 08, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
"Contraponto" (Tideland, 2005) é uma mistura de "Alice no País das Maravilhas" de Lewis Carroll com "Psicose" de Hitchcock. Com uma atmosfera sombria, agressiva e crua com a tradicional câmera inquieta com ângulos delirantes, o ex-Monty Python Terry Gilliam parece querer fazer um acerto de contas com a sua geração:se um dia os jovens de Maio de 1968 pretendiam que a imaginação chegasse ao poder, agora a imaginação pode criar monstros e pesadelos numa geração marcada pela "ausência dos pais".
Ex- integrante do histórico grupo inglês de humor o Monty Python,
Terry Gilliam é de uma geração cujo senso de humor estava sintonizado com a
cena vivida à época: contracultura, movimentos estudantis e utopias
revolucionárias na década de 60. Seu humor anárquico e “non sense” trazia a
pretensão secreta de a arte e a estética desmontar o poder e todos os pilares
conservadores da sociedade. Em outras palavras: a “imaginação no Poder”,
palavra de ordem da geração da Revolução Estudantil de Maio de 1968 na França.
Com a extinção do Monty Python, a carreira cinematográfica
como diretor continuou a levantar essa bandeira em filmes como “Brazil – O Filme”
(Brazil, 1985)” e “As Aventuras do Barão de Munchausen” (The Adventures of
Baron Munchausen, 1988), sempre com personagens e temas recorrentes: o herói
proveniente de um universo onírico que consegue, a partir da força dos sonhos e
fantasias, enfrentar uma realidade opressiva e derrotar demiurgo e sistemas
autoritários.
Mas tudo isso acaba com o filme “Contraponto” (Tideland,
2007) onde Gilliam parece fazer um acerto de contas com a sua geração ao
mostrar que os sonhos e fantasias podem se transformar no contrário, isto é,
escapismo e negação da realidade. O psicodélico universo onírico pode se transformar
em sombrios pesadelos. Algo em torno da atmosfera que inspira o filme
“Contraponto”: um cruzamento entre “Alice no País das Maravilhas” de Lewis
Carroll com “Psicose” de Hitchcok.
Ao apresentar como um conto de “terror poético” a estória de
uma menina que vive num mundo escapista de fantasias para negar a realidade de
pais negligentes e viciados em heroína, Terry Gilliam insere o filme no
contexto de discussões sociológicas sobre a chamada “geração sem pais”, os
chamados “baby boomers”, e os reflexos em gerações posteriores.
quarta-feira, outubro 05, 2011
O ceticismo gnóstico de Jean Baudrillard (parte 3): a "Pura Aparência" em "Show de Truman"
quarta-feira, outubro 05, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Certa vez em um Simpósio Internacional de Comunicação na USP, lá pelo final da década de 1980, após uma palestra de
Baudrillard, a comissão organizadora quis levá-lo para um almoço e posterior
passeio pela cidade. Sabendo que Baudrillard já havia visitado São Paulo
anteriormente, perguntaram-lhe o que gostaria de
conhecer dessa vez. Perguntado, Baudrillard falou: “Quero ver bundas!”. Todos
ficaram atônitos, sem saber bem o que o francês queria dizer, enquanto ele ria
de todos. Reformulada a pergunta, Baudrillard foi ainda mais enfático: “Quero
ver bundas, bundas do tamanho de um prédio!!!”
Depois dele se divertir da cara de espanto de todos,
Baudrillard explicou que queria fotografar (a fotografia era uma das suas
paixões) os outdoors que ocupavam laterais inteiras de prédios ao lado do
chamado “minhocão” (o imenso elevado “Costa e Silva” no centro da cidade).
Literalmente viam-se bundas do tamanho de um prédio em diversos outdoors de
roupas íntimas femininas. As fotos dessas paisagens urbanas bizarras de São Paulo eram famosas na Europa e Baudrillard queria realizar suas próprias fotos delas.
Esse exemplo demonstra a obsessão de Baudrillard em refletir
sobre o que ele chamava de “profundo abismo das aparências", isto é, e como as imagens ocultam o
fato de que elas não têm nada a esconder: por trás daquelas bundas nada
encontramos, a não ser um “dublê de corpo” que talvez nem seja do sexo
feminino. As imagens nada revelam, a não ser de que o real é tão ilusório
quanto as aparências que ele produz .
domingo, outubro 02, 2011
O Ceticismo Gnóstico de Jean Baudrillard (parte 2): os simulacros nada têm a esconder
domingo, outubro 02, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Sucesso de público e de crítica, as
palavras “simulacro” e “simulação” foram a parte mais mal compreendida do
pensamento de Jean Baudrillard. Ele jamais procurou encontrar a “realidade”
ou a “verdade” por trás das ilusões do mundo como faz a crítica ideológica
tradicional. Seu projeto era de um ceticismo mais radical: denunciar
os discursos que afirmam dizer sobre alguma coisa, mas que, na verdade, apenas
escondem que nada têm a esconder, seja na Política, Economia ou na Mídia.
Simulacro e simulação
tornaram-se os mais conhecidos conceitos dentro do pensamento de Baudrillard,
chegando até ao mainstream
hollywoodiano na célebre passagem do filme Matrix (1999) onde o protagonista, Neo, esconde programas piratas dentro de
um livro oco cuja capa é do célebre livro “Simulacros e Simulações”. Talvez o
sucesso de público desses conceitos se deva menos à compreensão dentro da
teoria não materialista da linguagem defendida pelo autor e, muito mais, pela
sua tradução feita pelo tradicional discurso da crítica da ideologia como falsa
consciência. Muitos autores ignoram a idéia da simulação original, preferindo
interpretar a bem conhecida três ordens do simulacro através de uma leitura
ortodoxa como abaixo:
“Baudrillard argumenta que há três níveis na simulação, onde o primeiro nível é uma óbvia cópia da realidade e o segundo nível uma cópia tão boa que suspende as fronteiras entre realidade e representação. O terceiro nível é a da produção da realidade sem se basear em qualquer elemento do mundo real. O melhor exemplo é provavelmente a ‘realidade virtual’ onde um mundo é gerado por meio de linguagens ou códigos.”[1]
É como se, no início existisse a
realidade e o signo que fizesse sua cópia por meio da representação. A partir daí é como se a espiral dos
simulacros e da simulação se apossasse dos signos, corrompendo-os, instaurando
uma representação ideológica do mundo. O simulacro e a simulação, além de serem
tomados como sinônimos, passam a ser interpretados como uma disjunção entre
forma e conteúdo, infraestrutura e superestrutura. Ou seja, estes conceitos são
aprisionados dentro da crítica da dissimulação, da manipulação, da mentira, da denúncia contra todas as formas
de falsa consciência.
Porém, como vimos até aqui, não existe
uma teoria da representação em Baudrillard. Portanto , não há propriamente uma
crítica ideológica, pelo menos não no sentido de crítica à falsa consciência.
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