domingo, outubro 02, 2011

O Ceticismo Gnóstico de Jean Baudrillard (parte 2): os simulacros nada têm a esconder

Sucesso de público e de crítica, as palavras “simulacro” e “simulação” foram a parte mais mal compreendida do pensamento de Jean Baudrillard. Ele jamais procurou encontrar a “realidade” ou a “verdade” por trás das ilusões do mundo como faz a crítica ideológica tradicional. Seu projeto era de um ceticismo mais radical: denunciar os discursos que afirmam dizer sobre alguma coisa, mas que, na verdade, apenas escondem que nada têm a esconder, seja na Política, Economia ou na Mídia.

Simulacro e simulação tornaram-se os mais conhecidos conceitos dentro do pensamento de Baudrillard, chegando até ao mainstream hollywoodiano na célebre passagem do filme Matrix (1999) onde o protagonista, Neo, esconde programas piratas dentro de um livro oco cuja capa é do célebre livro “Simulacros e Simulações”. Talvez o sucesso de público desses conceitos se deva menos à compreensão dentro da teoria não materialista da linguagem defendida pelo autor e, muito mais, pela sua tradução feita pelo tradicional discurso da crítica da ideologia como falsa consciência. Muitos autores ignoram a idéia da simulação original, preferindo interpretar a bem conhecida três ordens do simulacro através de uma leitura ortodoxa como abaixo:
“Baudrillard argumenta que há três níveis na simulação, onde o primeiro nível é uma óbvia cópia da realidade e o segundo nível uma cópia tão boa que suspende as fronteiras entre realidade e representação. O terceiro nível é a da produção da realidade sem se basear em qualquer elemento do mundo real. O melhor exemplo é provavelmente a ‘realidade virtual’ onde um mundo é gerado por meio de linguagens ou códigos.”[1]
É como se, no início existisse a realidade e o signo que fizesse sua cópia por meio da representação.  A partir daí é como se a espiral dos simulacros e da simulação se apossasse dos signos, corrompendo-os, instaurando uma representação ideológica do mundo. O simulacro e a simulação, além de serem tomados como sinônimos, passam a ser interpretados como uma disjunção entre forma e conteúdo, infraestrutura e superestrutura. Ou seja, estes conceitos são aprisionados dentro da crítica da dissimulação, da manipulação,  da mentira, da denúncia contra todas as formas de falsa consciência.

Porém, como vimos até aqui, não existe uma teoria da representação em Baudrillard. Portanto, não há propriamente uma crítica ideológica, pelo menos não no sentido de crítica à falsa consciência.
“A ideologia é, de fato, todo o processo de redução e abstração do material simbólico numa forma – mas esta abstração redutora dá-se imediatamente como valor (autônomo), como conteúdo (transcendente), como representação de consciência (significado)”[2]
A crítica ideológica tradicional encontra-se no paradigma da dissimulação: denunciar que por trás do discurso que esconde existe algo real. Há algo para ser escondido. Ao contrário, a crítica ideológica baudrillardiana está no campo da simulação: denunciar os discursos que afirmam dizer sobre alguma coisa, mas que, na verdade, apenas escondem que nada têm a esconder. A simulação está nas próprias origens da linguagem, na sua própria abstração redutora da dimensão simbólica, negando a transitividade sujeito/objeto e instaurando a precessão do modelo e da binariedade do código.

O Duplo Sentido da Simulação

Os simulacros religiosos: a imagem é
reflexo de uma realidade profunda
Segundo Baudrillard a simulação, embora esteja a serviço do aniquilamento da dimensão simbólica e a favor da ordem do signo nos sistemas, testemunha a própria ilusão do signo e da representação. A representação tenta absorver a simulação ao rotulá-la como falsa representação, mas encobre o fato de que a simulação envolve todo o edifício da representação como um simulacro.

Para compreender este duplo sentido da simulação (estar a serviço da reprodução dos sistemas e, simultaneamente, testemunhar a miragem da representação) precisamos entender a sutil diferença entre simulacro e simulação. Simulação tem a ver com a sedução original do mundo e da própria linguagem. É o pressuposto Maniqueísta gnóstico de Baudrillard da luta e reversibilidade entre o Bem e o Mal. Já o simulacro envolve as diferentes maneiras ou fases dessa simulação se manifestar no transcorrer da história.


“Seriam essas as fases sucessivas das imagens que conduzem à formação dos simulacros: 
- ela [a imagem] é o reflexo de uma realidade profunda  
- ela mascara e deforma uma realidade profunda
- ela mascara a ausência de realidade profunda
- ela não tem relação com qualquer realidade: ela é o seu próprio simulacro puro”[3]
Na primeira fase temos o simulacro como boa aparência: a certeza de que um signo possa remeter para a profundidade do sentido, o partido da representação. Existe uma suposta equivalência do signo e do real. Alguma coisa serve de caução para essa troca: Deus, Realidade, Valor de Uso, etc. O realismo de uma fotografia baseia-se na certeza da troca entre a foto e a pessoa fotografada. O Real é a sua caução. Da mesma forma, se temos uma nota de um real (um signo monetário) sabemos que ela é verdadeira por possuir uma equivalência correspondente ao seu valor no Banco Central. O valor econômico é a caução.

A segunda fase corresponde ao simulacro como falsa aparência ou ao sortilégio. Ainda dentro do regime da representação, é o momento em que o signo dissimula, mente ou deforma uma realidade profunda. Uma fotografia pode ser manipulada através de processos de retocagem seja analógica ou digital. Uma nota de um real pode ser falsa. Nestes casos, pressupõem-se existir ainda uma realidade a qual se renuncia ao produzir uma falsa aparência. É como se ocorresse uma clivagem entre o signo e a realidade. Mas ainda existe a oportunidade de desmascarar esta mentira e revelar-se o segredo.

A terceira fase é a do simulacro como ilusão de aparência. O signo simula ter algum referencial ou estar ancorado em um objeto real quando, na verdade, tudo não passa de um blefe. Sua aparência é a da representação, mas nada consegue do que remeter-se a si mesmo. Não há profundidade, mas apenas um discurso metonímico: signos que espelham outros signos, cópias de cópias que se refletem mutuamente. A fotografia não consegue mais capturar o real a partir do momento em que a pessoa sabe que ali está a câmera e posa para ela, simulando personas ou atitudes. Quem representa o quê? O dispositivo fotográfico representa a pessoa diante dela ou aquela espelha a presença do próprio dispositivo? Ao mesmo tempo, qual a diferença entre uma nota de um real falsa e verdadeira em uma ordem econômica onde a riqueza não é mais produzida a partir da atividade produtiva, mas a partir de papéis ou títulos artificialmente valorizados em bolhas especulativas nas bolsas de valores e falcatruas contábeis em empresas? A nota falsa remete à nostalgia de um referente que não existe mais nas notas verdadeiras, e as notas verdadeiras remetem-se às falsas para afirmar, de forma negativa, a sua “realidade”.

A quarta fase é a do simulacro como pura aparência. Fase decisiva para Baudrillard por ser uma fase terminal a qual se refere como o “assassinato do real”, “o crime perfeito” ou à “greve dos acontecimentos”: é o regime dos simulacros puros, o momento em que a própria realidade é substituída pela sua contrafação, o simulacro substitui o real criando a hiper-realidade. Se na fase anterior o simulacro blefava (ou simulava), ou seja, ainda havia no horizonte a nostalgia de um referente real a que ele queria se assemelhar, agora o mundo torna-se cada vez mais parecido com modelos artificialmente produzidos, como os parques temáticos, por exemplo. De tanto o indivíduo posar para a câmera simulando atitudes ou personas cujos modelos vêm da mídia, tais modelos acabariam confundindo-se com a própria personalidade criando uma situação onde se esquece onde termina a realidade e começa a ficção, o Eu e o não-Eu. Distinção ociosa para o indivíduo que não se importa mais com isso: inconsciente ou imaginário são substituídos pela “brancura total” do modelo[4]

Ou, então, na infogenética onde o modelo algorítmico ameaça substituir o próprio processo evolutivo. O DNA humano poderá ser sequencializado para, a partir daí, criarem-se matrizes supostamente perfeitas para gerarem cópias ou clones. A replicação substituirá a evolução. O modelo que precede o real não necessita mais do antigo horizonte referencial para a simulação. Roga-se como o único princípio de realidade, sem mais o intercâmbio entre real e imaginário. Transparência absoluta: o simbólico e o imaginário são absorvidos pelo modelo e o seu código.

O “assassinato do real”

Guerra do Golfo (1992): o "não acontecimento"
Para demonstrar esta fase terminal do “assassinato do real” Baudrillard nos oferece os casos da cobertura televisiva da Revolução Romena em 1989 e da Guerra do Golfo em 1992 fatos que, para ele, se inscrevem no regime do virtual, dos “não acontecimentos”. Durante a cobertura televisão da revolução romena contra a ditadura de Ceausescu mostraram-se imagens da suposta descoberta de um ossário de mais de quatro mil vítimas da ditadura. Outros corpos teriam sido dissolvidos em ácido. O total de mortos chegaria a 60.000 ou 70.000. Tudo era uma encenação: os cadáveres em lençóis brancos não eram das vítimas dos massacres de 17 de dezembro de 1989, mas mortos desenterrados do cemitério dos pobres, oferecidos à necrofilia da TV.
“Desde logo, o próprio contágio das imagens, que se autoproduzem sem referência a um real ou a um imaginário, é virtualmente sem limite, e esse engendrar-se sem limite produz a informação como catástrofe”[5]
A mídia alimenta-se pela presunção da catástrofe. Esta natureza da informação midiática intoxica o próprio real que é como que adaptado às exigências televisivas. O objeto é aniquilado pela própria informação. Os fatos reais para tornarem-se “midiáticos”, “fotogênicos” ou “televisivos” são, na sua origem, simulações para aproximar-se daquela presunção da catástrofe e, portanto, atrair a atenção da mídia. Isso se distingue da pura dissimulação ou manipulação do real (o que corresponderia à segunda fase da imagem descrita acima). O próprio real se engendra como simulação como fosse um gigantesco prolongamento do estúdio da TV.
“Evidentemente, a partir do momento onde o estúdio torna-se a central revolucionária e a tela o único lugar de aparição, todo mundo acorre ao estúdio para figurar a todo custo na tela, ou ainda, se reagrupa de preferência na rua sob a mira das câmeras, que aliás filmam-se umas as outras. A rua inteira torna-se um prolongamento do estúdio, isto é, um prolongamento do não-lugar do acontecimento, do lugar virtual do acontecimento. A rua torna-se também um espaço virtual.”[6]
A Guerra do Golfo enquadrar-se-ia também neste não-lugar do acontecimento. Para além de toda racionalidade estratégica e militar, mesmo sabendo da derrota certa, Cedam Hussein declara guerra aos EUA invadindo o Kuait. Os motivos da deflagração da guerra nunca saíram do campo da especulação, mas, como primeira guerra transmitida ao vivo na história da mídia, Sadam sabia que o seu gesto via CNN se espalharia pelas redes de comunicação, tornando-se o novo líder da causa árabe. Do lado americano, a guerra foi propositalmente prorrogada pelo Pentágono, na medida em que os índices de audiência da CNN elevavam-se conjuntamente com a comoção da opinião pública e, mais importante, era ano eleitoral e George Bush buscava sua reeleição. É a auto-referência mortífera da informação: no final a mídia transmite um fato que ela própria criou. Auto-circularidade absoluta. Esta é a lição de Baudrillard: “a mais alta pressão da informação corresponde à mais baixa pressão do acontecimento e do real.”[7]

Neste cenário pós-moderno descrito por Baudrillard, os fatos não podem simplesmente acontecerem. Para efetivamente existirem devem ser “midiáticos” ou “televisivos” para transmutarem-se em imagem. Perdem a espontaneidade dos fatos históricos assim como um indivíduo cria um simulacro de si mesmo ao saber que está sendo filmado por uma câmera. Este é o momento da criação do simulacro: o signo passa a ser mais importante do que aquilo que ele representa. Mais do que existir os fatos devem tornar-se imagem para efetivamente acontecerem.

Segundo Baudrillard esta inversão na função semiótica dos signos está presente em três dimensões simultâneas criando a hegemonia dos simulacros no mundo contemporâneo:
“1) O capital se transcende e volta-se contra si mesmo no sacrifício do valor (ilusão econômica). Por assim dizer, ele salta por cima da própria sombra. 
2) O poder volta-se contra ele mesmo no sacrifício da representação (a ilusão democrática). 
3) O sistema inteiro volta-se contra ele mesmo no sacrifício da realidade (a ilusão metafísica)”[8]
A virtualização do capital através
da financeirização
Na primeira dimensão (a econômica) a produção de riqueza pelo capital se virtualiza com o fenômeno da financeirização no mundo econômico globalizado. A extrema liquidez dos fluxos financeiros permite uma produção de riqueza baseada pura e tão somente na especulação de títulos e papéis, sem mais nenhuma referência na produção real de valor a partir do trabalho humano. Signos financeiros tornam-se verdadeiras bolhas especulativas valorizadas por meio de notícias (sejam elas boatos, rumores ou informações oficiais) criadas para as mídias repercutirem. Da noite para o dia, empresas têm suas ações valorizadas produzindo enormes bonificações por meio de notícias habilmente plantadas no noticiário econômico para, mais tarde, serem desmentidas pelas mesmas fontes.  No espaço de tempo entre a divulgação e o desmentido, muita riqueza virtual acabou sendo produzida nas complexas transações financeiras. O valor-trabalho é substituído pelo valor-signo ou, por ser um signo sem possuir referência com a realidade, valor-simulacro.  

Mesmo indo para além do plano da circulação financeira do capital, ou seja, indo para o plano da produção real de bens e serviços, mesmo aí está presente o valor-simulacro. As inovações estéticas das mercadorias (design, embalagem, conceito de marca etc.) criadas e divulgadas pela publicidade e marketing produzem mais valor ao capital do que inovações propriamente concretas referentes ao valor de uso do próprio produto (inovação tecnológica, redução de preço, etc.). No final, consome-se não mais o produto mais o seu signo. Por isso temos uma verdadeira inversão metafísica: é mais caro dizer ao mercado que o produto existe do que fazê-lo efetivamente existir. A aparência antecede a essência, o efeito é anterior à causa.

O Terrorismo e a crise da Política

Na segunda dimensão (a política), o poder volta-se contra ele mesmo na sua espetacularização midiática. 

Uma estranha deflação começa a atingir a política, principalmente porque o seu objeto principal, o Poder, entra num acelerado processo de esvaziamento simbólico. Há algo de peculiar no comportamento do Poder nos tempos atuais: a necessidade de tornar‑se visível para a mídia, de chamar todos à participação. Para Baudrillard, há algo de irônico no Poder atual: se no passado essa apatia das massas seria positiva para a gerência tranqüila­ da política pelas classes dominantes, hoje ela é perigosa, pois pode denunciar a sua própria inutilidade:
“Durante muito tempo a estratégia do poder pôde parecer se basear na apatia das massas. Quanto mais elas eram passivas, mais ele estava seguro. Mas essa lógica só é característica da fase burocrática e centralista do poder. E é ela que hoje se volta contra ele: a inércia que se fomentou tomou‑o sigilo de sua própria morte. É por isso que o poder procura inverter as estratégias: da passividade à participação, do silêncio à palavra. Mas é muito tarde. O limite da “massa crítica”, o da involução do social por inércia, foi transposto. Em toda parte se procura fazer as massas falarem, se as pressiona (sic) a existir de forma social eleitoralmente, sindicalmente, sexualmente, na participação, nas festas, na livre expressão, etc.”[9]
Através da mídia a política simula-se a si mesma (a ilusão democrática, a simulação da vontade política, da representatividade do voto – o signo político) encobrindo uma única realidade: a morte do Poder.

O terrorismo é o sinalizador da crise do Poder
O terrorismo internacional e as formas de violência não‑anômicas são o primeiros sinalizadores desta crise do poder. O terrorismo recusa o sentido do poder. Ele é imediatamente destinado às ondas concêntricas dos meios de comunicação. A morte de um presidente ou o assassinato de um líder pacifista não conduz à queda de um regime ou de um sistema político. Seus autores sabem disso. Facções terroristas não visam, muito menos, à conscientização nem a uma representação ideológica. Seu único objetivo é marcar um lugar na mídia pela fascinação e pelo pânico. Pichações, violência de gangues e greves perdem sua natureza anômica (desestabilizar a ordem, contestar o poder, etc.), para adquirirem um alcance minimalista.
“É conhecido o fato, por exemplo, de algumas pessoas, reunidas para um protesto, numa demonstração ou manifestação política, estarem totalmente desorganizadas, difusas, dispersas até o momento em que lá aparecem as câmaras de tevê. No momento em que são acionados esses aparelhos, organiza‑se a passeata como se tivesse sido detonada pela claquete da filmagem e todo mundo sai pela rua representando a passeata. A televisão capta as imagens e, no momento em que as câmeras vão embora, as pessoas também se dispersam”[10].
O campo de enquadramento da câmara passa a ser o novo tempo forte do social em torno do qual os agentes sociais gravitam, inclusive o próprio Poder.
Além disso, o Poder dilui-se na própria diminuição do papel do Estado e seus governantes com a globalização. Os complexos fluxos financeiros em tempo real no planeta e a hegemonia dos interesses das empresas transnacionais superam em muito o alcance institucional dos Estados-Nação. O Estado passa apenas a homologar ou facilitar por meios legislativos e jurídicos as decisões supranacionais. Resta ao Poder gerenciar crises e demandas. Por isso, ele começa a abandonar os discursos ideológicos para incursar no pragmatismo. Seja de qual partido ou ideologia for, seu governante deverá dar respostas imediatas à crise, gerir o endividamento e as demandas não atendidas. Não é à toa que, cada vez mais, o parlamento e a representação política perdem força diante da centralização do poder no executivo. 

Com o esvaziamento do poder de decisão o Poder e a Política temem o seu esvaziamento simbólico. Por isso, precisam simular para a mídia que ainda têm um poder real. De que o voto e a democracia são ainda signos de representatividade. Se outrora o poder dissimulava sua essência (a dominação, a manipulação, as tramas, etc.), hoje corre atrás da mídia para simular que ainda possui um sentido, que ainda detém um tempo forte para o social. É o surgimento do “Estado­-espetáculo”. 

Que o poder sempre teve um caráter cênico‑teatral não é novidade desde Maquiavel. Porém, a novidade atual é que a encenação se desloca do campo da dissimulação para o da simulação. Precisa produzir fatos, programas, expor a vida privada de políticos e autoridades, criar choques econômicos, dar amplitude midiática às intrigas palacianas, isto é, munir os meios de comunicação de simulacros da sua realidade.

O Sacrifício da Realidade

Na terceira dimensão (a metafísica) está o sacrifício da realidade, ou seja, a consolidação de uma cultura neoplatônica caracterizada pelo primado do virtual e da simulação sobre a realidade. E a espinha dorsal deste neoplatonismo está na própria natureza da tecnologia digital. Diferente dos avanços tecnológicos anteriores (como a tipográfica, por exemplo) onde ocorreram verdadeiras revoluções com a criação de novas mídias, paradigmas e culturas, a tecnologia digital resume-se a digitalizar mídias já existentes no mundo analógico. 

Em outras palavras, apenas transpõem para ambientes ou interfaces digitais mídias, sons e imagens que já eram manipuladas no mundo analógico. Apenas com uma diferença: a infinita possibilidade de interferir na representação até transformá-la em signo vazio de referência. Chats ou salas de bata-papo na Internet substituem os contatos face-a-face, mas com um acréscimo: a possibilidade de o indivíduo simular diversas personas a cada contato virtual, eliminando qualquer rastro de alteridade ou ruído proveniente das relações humanas concretas (timidez, ansiedade, etc.). 

A manipulação completa das imagens digitais nega a própria alteridade do tempo como o envelhecimento físico. O crescimento vertiginoso das cirurgias plásticas significa o sacrifício do corpo real em nome do simulacro digital eternamente renovado pelo Photoshop. É o que Baudrillard refere-se como o “êxtase da comunicação”. O domínio destas verdadeiras próteses digitais de comunicação como telefones celulares, e-mails, voice-mail, faxes, pagers e palm pilots fazem o indivíduo estar continuamente plugado na rede de informação global. Isto cria uma descontinuidade temporal entre o mundo on line em tempo-real das redes com o velho mundo cronológico do dia-a-dia corporal. Esta descontinuidade cria verdadeiras desordens psicológicas como a “tele-pressão” onde o tempo virtual que, de tão acelerado, entra em choque com a cronologia temporal. O resultado é o sacrifício da cronologia da realidade (o envelhecimento, a reflexão, a maturação etc.) pela aparente perfeição das próteses digitais.

NOTAS


[1] LANE, Richard. Jean Baudrillard. London: Routledge, 2.000, p. 30.
[2] BAUDRILLARD, Jean. Para Uma Crítica da Economia Política do Signo. Lisboa: Martins Fontes, s.d., p. 180-181.
[3] Idem. Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio d’Água, 1991, p.13.
[4] Veja, por exemplo, as terapias de fundo cognitivo e comportamental, além de toda literatura de auto-ajuda, que prometem a transparência total do Eu por meio da eliminação dos “ruídos” provenientes do inconsciente ou dos traumas do passado.
[5] BAUDRILLARD, Jean, “Televisão/Revolução: o Caso Romênia”, In: PARENTE, André (org) Imagem Máquina, Rio de Janeiro, Editora 34, p. 147.
[6] Idem, Ibid., p.148-9.
[7] Idem, Ibid., p. 149.
[8] BAUDRILLARD, Jean, “O Poder Canibal” IN: Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 15/05/2005, p.7
[9] BAUDRILLARD, Jean. À Sombra das Maiorias Silenciosas. São Paulo, Brasiliense, 1985. p.24.
[10] MARCONDES Filho, Ciro. Sociedade Técnológica. S. Paulo, Scipione, 1995. p.68.

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