Se os gêneros ficção científica e Terror exploram principalmente os temas do Pós-Humano e do Desumano, em "A Centopéia Humana" do holandês Tom Six temos uma novidade: o tema do Inumano, poucas vezes trazido para as telas do cinema pela sua maneira radical e perturbadora de encarar o Mal. Não se trata mais de impingir o horror, sofrimento e a morte final à vítima. Mas retirar dela toda sua humanidade ao fazê-la regredir à condição animal por meio dos próprios intrumentos da evolução humana: Ciência, Técnica e Razão.
O tema do Pós-humano é recorrente no cruzamento
entre ficção científica e terror: desde a estória de Frankenstein, passando por
filmes como “Robocop” (RoboCop, 1987) para chegarmos aos pesadelos do diretor
Cronenberg como em “Videodrome” (1983) e eXistenZ (1999) : fantasias
cabalísticas onde o homem quer ser Deus e tenta produzir vida a partir de um “golem”;
seres híbridos de carne, sistemas eletrônicos e servomecanismos para superar as
limitações corporais humanas; interfaces biológicas com redes digitais onde o
Eu transcenda o corpóreo etc. No
pós-humano há o desejo gnóstico-cabalístico da superação das limitações
existenciais e corporais humanas (finitude, temporalidade e senso de
fragilidade corporal). O elemento do horror é a presença da ambiguidade do
pós-humano, a diluição das fronteiras entre homem e máquina, espírito e matéria
e orgânico e inorgânico. E horror de vermos o inorgânico e sem vida ganhar
consciência e dominar o espírito humano.
Já o Desumano está no campo da moralidade
e da “hermenêutica do mal”. Torturas, humilhações e assassinatos são impingidos
por um serial killer, um monstro sobrenatural ou um psicopata. Pense num filme
como “Jogos Mortais” (Saw, 2004): o vilão aprisiona pessoas em elaborados
dispositivos e jogos para punir atos pregressos imorais ou anti-éticos das vítimas. Ou
ainda, sanguinário personagem Alex do
filme “Laranja Mecânica” (Clockwork Orange, 1971) que sabe que suas atrocidades são puníveis pelo Estado e
Polícia. Teme a lei e foge para não ser preso. Alex e o Jigsaw são, portanto,
imorais.
Portanto, podemos denominar a condição da vítima como
“desumana” porque há ainda no horizonte referências como o Humanismo, a Ética e
a Moral.
A novidade do filme “A Centopéia Humana” (The Human Centipede - First Sequence, 2009) é trazer para o
gênero terror o tema do Inumano: não se trata mais de subjugar,
humilhar ou destruir o psiquismo da vítima pelo horror, medo ou tensão. E,
muito menos, se trata de querer punir a vítima com o sofrimento e a morte
final. Trata-se muito mais de anular qualquer humanidade ao fazer a vítima
retroceder ao estágio animal, morficamente falando e não no sentido figurado.
O
homem e a humanidade retrocedida à forma de centopeia! E o que é mais radical:
não há mais uma hermenêutica, mas uma reversibilidade irônica do Mal: tudo é
levado a cabo justamente por instrumentos resultantes da evolução humana: a
Ciência, a Razão e a Técnica.
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Em questão de minutos são postas para dormir e acordam
amarradas a camas juntas com outro homem preso em uma aparente sala de
cirurgias.
Eis que surge na sala o homem sinistro: Dr Heiter (Dieter
Laser), cirurgião de renome internacional e especialista em separações de
gêmeos siameses. Didaticamente e com uma frieza profissional, com ajuda de
transparência em um retroprojetor, ele explica o seu projeto em meio a choros e
gritos de horror das vítimas: pretende juntar aquelas três pessoas formando um
único tubo digestivo, parte “A”, “B” e “C”, cabeça, corpo e calda, para criar a
primeira centopeia humana. Ah! E ainda com um mórbido detalhe: o osso da
patela, no joelho, será retirado para que eles não consigam ficar eretos e,
dessa maneira, caminhem tal como uma centopeia.
Uma produção com orçamento baixíssimo e filmada em vídeo
digital, mas com um tema talvez inédito no gênero terror (o Inumano). Dessa
maneira, o filme entra para o hall de filmes “sadianos” como “Saló – 120 Dias
de Sodoma” de Pasolini. E por que não utilizar a palavra “sádico”?
A palavra “sádico” sempre foi mal aplicada, sempre usada
para designar vilões desumanos. Pelo contrário, os libertinos cruéis e
assassinos de Sade são seres amorais e, portanto, muito mais associados ao
universo do Inumano. Por isso, pelo desgaste que a palavra “sádico” acabou
sofrendo, vamos usar o termo “sadiano” para nos referir ao Dr. Heiter.
O Sadiano
Adorno e Horkheimer no livro “Dialética do Esclarecimento” no capítulo “Juliete e o Esclarecimento Moral”
apontam para uma característica de Sade que o faz juntar-se aos escritores
sombrios do primórdio da burguesia como Maquiavel, Montaigne, Hobbe e
Mandeville: descrever os subterrâneos do Iluminismo cartesiano da ciência e das
virtudes morais. Isto é, se o esforço da ciência cartesiana foi o de fugir da
barbárie, o gênio de Sade foi demonstrar que a violência pode ser cometida com
os mesmos instrumentos que deveriam debelá-la.
O que mais chama a atenção na obra de Sade é a monotonia, a
apatia e o estoicismo dos libertinos (valores associados à virtude na
moralidade burguesa). A narrativa dos crimes e depravações não é construída por
cenas dominadas pela paixão ou horror. Pelo contrário, são longas dissertações
monótonas onde, por meio de tiradas eruditas, paradoxos e filosofia lógica, o
libertino procura uma espécie de distanciamento científico. As narrativas são
repletas de mensurações. Às vezes em meio ao ato perverso, o libertino gosta de
tomar medidas, os membros viris são medidos em polegadas ou linhas...
O libertino não é um louco, possesso ou demoníaco. Tal como
o Dr. Heiter no filme, ele é frio, dominado pelo cálculo científico. Capaz de
fazer uma apresentação didática para as suas vítimas, como se estivesse aculturando
os selvagens, trazendo a luz da ciência para a humanidade idiota.
A violência não seria o outro lado da Razão, praticada com
os mesmos instrumentos da racionalidade? Dr. Heiter fala a certa altura: “não
gosto de seres humanos”. A Ciência e a Razão falam em nome da Totalidade, do
Universal. Diante do sofrimento da cobaia, do indivíduo ou do particular,
Ciência e Razão são indiferentes. O particular é imperfeito porque não tem
consciência da perfeição do Todo. O indivíduo tem que ser liquidado em nome das
leis universais, da Religião até a Ciência.
Enquanto os vilões desumanos são loucos, apaixonados,
obcecados, o vilão inumano ou sadiano é um estoico. O ego do Dr. Heiter pouco
importa: o fastio e a monotonia da bizarra cirurgia que unirá os três seres por
um único tubo digestivo parecem demonstrar que ele está ali para cumprir um
desígnio, uma missão na qual ele é mero executor.
Tanto é verdade que para ele pouco importa o seu destino.
Ele deixa pistas fáceis para que os policiais cheguem até sua casa à procura
das vítimas desaparecidas. Os policias entram na sua casa e, ao invés de o Dr.
Heiter procurar um ardil para se desvencilhar da Lei, ao contrário, vê neles novos espécimes para seu projeto de aumentar a centopeia humana. O cirurgião é
um mártir da Ciência, assim como Hitler acreditava que pouco importava a
derrota do III Reich: os escombros da Alemanha seriam como uma nova arquitetura
que representaria o estoicismo e sacrifício do povo alemão, mártires dos
secretos desígnios da História.
Será apanhado e preso? Morrerá? Dr. Heiter parece ser
indiferente tanto com as vítimas quanto com ele mesmo. Está ali apenas para
cumprir um propósito do Universo: exterminar toda e qualquer humanidade, porque
imperfeita diante do design do Todo. A humanidade merece voltar à natureza para
ser mais facilmente dominada pela Ciência.
Ciência e Nazismo
Não há como ver o filme e, através dos simbolismos
espalhados pela narrativa (Alemanha, referências ao nazismo e a indumentária do
Dr Heiter que lembra a dos médicos das SS), não se lembrar das experiências
bizarras de médicos alemães, como as de Joseph Mengele, em campos de
concentração da Segunda Guerra Mundial: unir veias de gêmeos, injetar tinta azul nos olhos de crianças
judias etc.
As conexões entre Ciência, Técnica e extermínio em massa
mostrou o Mal na sua essência: a sua reversibilidade. O irracional parece estar
no interior da própria razão que se converte em violência histórica. A fria
formulação algébrica dos conceitos e finalidades faz a Razão perder suas
finalidades humanas. A racionalidade transforma as coisas vivas em coisas
úteis.
Através de um filme de baixo orçamento, bizarro e asqueroso,
Tom Six consegue fazer uma exposição do Mal na sua radicalidade, como o
Inumano: a secreta aliança entre Razão e Irracionalidade, Ciência e Técnica
capazes de criar tamanha frieza que expulsam a própria humanidade dos seus
desígnios metafísicos.
De forma estranha, Tom Six mostra que nas luzes da Razão
escondem-se sombras. E numa dessas sombras está à nossa espera o Dr. Heiter.
Ficha Técnica
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Ficha Técnica
- Título: A Centopeia Humana (Human Centipede - First Sequence)
- Diretor: Tom Six
- Roteiro: Tom Six
- Elenco: Dieter Laser, Asheley Williams, Ashlynn Yennie
- Produção: Six Entertainment
- Distribuição: IFC Midnight, Six Entertainment
- Ano: 2009
- País: Holanda
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