“O fonógrafo de paraquedas, a mais nova arma da América jogado do céu com música pró-americana. O toca-discos pode ajudar a vencer a guerra fria”. O jornal NYT estampava essa manchete em 1955, celebrando a mais nova arma na Guerra Fria: o Jazz. O documentário belga “Trilha Sonora para um Golpe de Estado (Soundtrack to a Coup d'Etat, 2024, em cartaz no cinema) revela como a CIA e Departamento de Estado utilizavam os chamados “Embaixadores do Jazz”, músicos como Louis Armstrong, Nina Simone, Duke Ellington e Dizzy Gillespie, como cavalos de Tróia – junto com eles desembarcavam no país anfitrião espiões e mercenários para prepararem golpes de Estado. Como em 1961, na ex-colônia belga República Democrática do Congo: a chegada apoteótica de Louis Armstrong encobriu a operação de assassinato de Patrice Lumumba, ex-primeiro-ministro e líder africano. O urânio do Congo foi decisivo para fazer a primeira bomba atômica dos EUA. E o Ocidente queria mais. Hoje, em busca de lítio e metais raros, as Big Techs não precisam mais do Jazz. Têm as redes sociais. Será que as lendas do Jazz estavam conscientes do seu papel na Guerra Fria?
“Vamos dar golpe em quem quisermos. E lide com isso!”, provocou o bilionário Elon Musk no Twitter (ainda se chamava assim) em 2020 diante dos protestos sobre o seu interesse em impedir que o ex-presidente Evo Morales voltasse ao poder, para ter em suas mãos o controle de lítio boliviano.
De olho em metais raros e nobres em todo o planeta para as suas baterias e microchips, as Big Techs contam com redes sociais e mídias locais lenientes para colocar no poder governos “amigáveis”.
Retrocedendo ao século XX, descobrimos que golpes político e minério estão muito próximos - “Os interesses dos grandes monopólios empurraram a Bélgica a tomar o estado mais rico, Katanga. Fornece matéria-prima para armas nucleares, urânio, cobalto, titânio, mão de obra barata... É por isso que eles conspiram contra o Congo... Uma trama que se estende desde Bruxelas às principais capitais da OTAN”, denunciava na ONU, em 1961, Nikita Khrushchov, então Primeiro-ministro da União Soviética.
De olho principalmente no urânio, para o arsenal nuclear do Ocidente na corrida armamentista da Guerra Fria, secretamente EUA e OTAN conspiravam um golpe de Estado na recém-independente ex-colônia belga, a República Democrática do Congo.
O mesmo modus operandi para garantir metais raros. Porém, se hoje as Big Techs têm as redes sociais e a grande mídia, lá na virada da década de 50 e 60 os EUA e OTAN tinham ... O JAZZ.
O denso, enciclopédico e furioso documentário Trilha Sonora para um Golpe de Estado (Soundtrack to a Coup d'Etat, 2024), do belga Johan Grimonprez, é uma jornada de duas horas e meia de tirar o fôlego que tece as conexões entre o jazz americano e as maquinações geopolíticas da CIA na África nas décadas de 1950 e 60.
Sobre como a CIA e o Departamento de Estado norte-americano utilizavam os chamados “Embaixadores do Jazz”, músicos como Louis Armstrong, Nina Simone, Duke Ellington e Dizzy Gillespie, como softpower - enviados para se apresentarem ao redor do mundo como “embaixadores” da boa vontade e liberdade americanas, enquanto a segregação racial ainda era a realidade em casa.
Enquanto os músicos pregavam o evangelho do jazz, junto com o seu entourage aportavam no país anfitrião espiões e mercenários. O Jazz funcionava como um cavalo de Tróia, oferecendo distrações para criar uma eficiente cortina de fumaça – três meses após as apoteóticas apresentações de Louis Armstrong na capital congolesa Leopoldville, Patrice Lumumba, o ex-Primeiro-ministro do país, era assassinado em meio a uma guerra civil. E com ele morreu o sonho de um “Estados Unidos da África” livre de seus colonizadores.
Mas para que isso funcionasse, eram necessários ouvintes para que corações e mentes serem conquistados. Ou seja, era necessário criar a demanda por jazz.
E o Ocidente não poupava esforços: o documentário nos mostra imagens de fonógrafos e aparelhos de rádio sendo jogados em vilarejos africanos por meio de paraquedas.
O FONÓGRAFO DE PARAQUEDAS, A MAIS NOVA ARMA DA AMÉRICA JOGADO DO CÉU COM MÚSICA PRÓ-AMERICANA. O TOCA-DISCOS PODE AJUDAR A VENCER A GUERRA FRIA... New York Times, 11/11/1955
Trilha Sonora para um Golpe de Estado mostra imagens de personagens fazendo declarações tão explícitas como a de Elon Musk. Como, por exemplo, o presidente dos EUA Dwight Eisenhower (1953-1961) declarando que “podemos alcançar nosso objetivo na maior de todas as batalhas: a conquista de corações e mentes”.
Através de fragmentos de imagens publicitárias de automóveis da Tesla e Iphones que se alternam com imagens históricas de arquivos, o documentário sugere essa conexão entre século XX e a atualidade – os interesses colonialistas e imperialistas não conquistam nações apenas com tiros e bombas, mas através de estratégias elípticas, diversionistas e sedutoras. No passado, com o rádio e o toca-discos. Hoje, com smartphones e redes sociais.
Além disso, Trilha Sonora para um Golpe de Estado descreve o paradoxo da política dos “Embaixadores do Jazz”: criar para o mundo a imagem de uma América democrática e igualitária, enquanto no país aumentavam as tensões raciais e, principalmente, a crescente politização do movimento negro.
Cujo estopim foi o assassinato de Lumumba e o fim do sonho de uma África livre e unida. Enquanto a CIA instrumentalizava músicos negros para destruir ideais que eles próprios defendiam.
O Documentário
O contexto geopolítico narrado pelo documentário é explosivo. Líderes de países africanos e asiáticos, recém-admitidos nas Nações Unidas, formavam um bloco de votação que ameaçava influência de potências mundiais como os Estados Unidos e a União Soviética. Líderes de nações africanas recém-independentes falavam em formar um Estados Unidos da África.
E enquanto Eisenhower pedia em discursos na ONU uma não interferência estrangeira na política africana, ele e a CIA tinham outros planos nos bastidores.
O principal tópico do documentário é o uso de músicos negros pela CIA, para não apenas espalhar o softpowerno exterior durante a Guerra Fria, mas também, potencialmente, fornecer uma cortina de fumaça para inside jobs do Departamento de Estado americano: desembarcar mercenários, espiões e agentes negociadores.
Imagens de arquivo e áudio de entrevistas com agentes e membros da Inteligência britânica, belga e americana, ainda vivos ou falecidos, sublinham o ponto: o Jazz era arte, mas também era uma ferramenta útil para maquinações contra as quais os artistas se opunham publicamente. Inadvertidamente, colaboravam com a destruição dos próprios sonhos que idealizavam.
Esse é o paradoxo no centro do argumento que Trilha Sonora para um Golpe de Estado faz: o poder assume muitas formas, algumas das quais são invisíveis a olho nu, e o que você não pode ver pode ser o mais perigoso.
Por exemplo, oficialmente declarado “Embaixador Americano do Amor” pelo governo Eisenhower, ao descobrir que foi usado como cortina de fumaça para ocultar da nação que Lumumba estava exilado em seu próprio país (em uma prisão domiciliar) Armstrong ameaçou abandonar a sua cidadania americana e se mudar para Gana.
Quando Lumumba foi executado, Armstrong não estava mais lá e, provavelmente, não associou a sua turnê pelo Congo com o assassinato do líder africano. Mas o documentário traça essa conexão.
Nina Simone visitando a Nigéria em 1961 em nome da Sociedade Americana de Cultura Africana, um grupo cuja conexão com a CIA era desconhecida por Simone, demonstra as maneiras sorrateiras como esses artistas foram instrumentalizados pelos interesses imperialista por urânio, cobalto, titânio e outros metais raros.
Golpes no ritmo do Jazz
A marca especial do documentário é a utilização criativa do jazz como a trilha musical do próprio filme. Por exemplo, aproximação metonímica entre a batida da música “Lullaby of the Leaves” de Ella Fitzgerald com as batidas com o sapato na mesa feitas provocativamente por Khrushchov na plenária da ONU.
Também obtemos uma amostra ampla e eletrizante das jams jazzísticas pregando a liberdade e os direitos civis dos negros na época, seja nas rádios e TVs americanas ou nas cenas da rumba africana. Abbey Lincoln uiva na suíte “Freedom Now” de Max Roach, além do som urgente de Nina Simone, ouvido por toda parte e em partes significativas do documentário.
Além de pontuações musicais de Thelonius Monk, Coltrane, Duke, Dizzy e Miles Davis, muitas vezes em justaposição significativas com eventos e emoções despertadas pela narrativa.
A música torna o ritmo de Trilha Sonora para um Golpe de Estado propulsivo, urgente, uma colagem deslumbrante e cheia de músicas, imagens, palavras e sons, contando o momento durante a Guerra Fria quando a independência congolesa, o jazz e as tensões geopolíticas fizeram um som ouvido em todo o mundo.
Mas também, como o assassinato de Lumumba, após meses de conspiração por agentes dos EUA, belgas e congoleses (e tacitamente aprovado pelo presidente Eisenhower), representou o fim da fachada Ocidental da suposta defesa intransigente da paz e liberdade – cujas bandas de jazz, e seus músicos multirraciais, criavam uma boa imagem de relações públicas.
O documentário termina com a invasão de ativistas negros, liderados pelos músicos de jazz Abbey Lincoln e Max Roach, em plena reunião do Conselho de Segurança da ONU, em protestos contra o assassinato de Lumumba. E o início da crescente politização do movimento negro e a radicalização da luta pelos direitos civis nas ruas do país.
Ao final fica a questão. Será que todas essas grandes lendas do Jazz de fato não sabiam que estavam sendo instrumentalizados pelo Governo? Não estavam conscientes da Guerra Fria e de toda histeria anticomunista? Ou acreditavam mesmo que eram embaixadores da arte e da boa vontade americana? Ou mesmo, se viam como defensores da liberdade individual contra a ameaça dos regimes comunistas totalitários?
Ou simplesmente artistas que apresentam sintomas daquilo que esse humilde blogueiro chama de “Síndrome de Vida de Inseto”?
O leitor deve lembrar da animação da Pixar Vida de Inseto (A Bug’s Life, 1998) - um empresário embusteiro chamado P.T. Flea mantinha um circo de insetos que os explorava.
Indignado com o oportunismo do patrão, o louva-deus mágico chamado Manny protestou: “Como ousa! O senhor é o charlatão nessa história. Aproveitando-se das almas de artistas infelizes, sedentas por atenção...”.
Com salários atrasados, os pobres artistas insetos se submetiam a P.T. Flea unicamente por carência de reconhecimento e atenção de pequenos públicos.
Será que todas essas lendas do Jazz estavam conscientes e viam nas turnês a rara oportunidade de terem reconhecimento internacional da sua arte?
Ficha Técnica |
Título: Trilha Sonora para um Golpe de Estado |
Diretor: Johan Grimonprez |
Roteiro: Johan Grimonprez, Daan Milius |
Elenco: Patrice Lumumba, Nikita Khruschov, Louis Armstrong, Malcom X, Abbey Lincoln, Nina Simone, Fidel Castro |
Produção: Warboys Films, Onomatopee Films |
Distribuição: Pandora Filmes (Brasil) |
Ano: 2024 |
País: Bélgica, França |