terça-feira, janeiro 07, 2025

'Ainda Estou Aqui' e a cordial luta de classes brasileira


Estamos acostumados (eu diria “treinados”) a considerar um filme apenas pelo seu conteúdo, ignorando a linguagem, o contexto e as relações sociais e de classe que envolvem a fabricação do produto cultural. É a necessidade de termos o olhar materialista histórico, coisa fora da moda na atualidade. Mas é essencial para entendermos o filme “Ainda Estou Aqui” (2024), que guarda paradoxos e ironias que revelam como a cordialidade marca a luta de classes brasileira: de um lado, um cineasta herdeiro de um banqueiro fiador e beneficiário do golpe militar de 1964; e do outro, a Globo – golpista de primeira hora em 1964 e num momento em que, através da plataforma Globoplay, co-produtora do filme, tenta ir além da TV aberta, de olho no mercado internacional. O campo progressista celebra o filme. Por supostamente proporcionar a oportunidade de contar a história da ditadura. Mas porque uma Sony Pictures e outras distribuidoras internacionais se interessaram pelo filme e não por outros sobre o mesmo tema? A resposta está no contexto da luta de classes e da linguagem internacional-popular esperada pelas distribuidoras.

Ainda Estou Aqui é o trabalho mais pessoal do cineasta Walter Salles, marcando seu retorno às telonas 12 anos depois de Na Estrada (2012). Salles conhecia a família Paiva, tendo feito amizade com a filha do meio Ana Lúcia (retratada no filme por Bárbara Luz) quando adolescente no Rio de Janeiro no início dos anos 1970.

Baseado nas memórias de 2015 de Marcelo Rubens Paiva, o filme traça os efeitos que o sequestro e assassinato sancionados pela ditadura militar 1971 do pai do autor, Rubens Paiva (Selton Mello), têm na família. Especialmente em sua esposa, Eunice (Fernanda Torres), que estava parcialmente inconsciente das atividades na resistência do marido Rubens, deputado trabalhista cassado pelo golpe militar de 1964. 

Ainda Estou Aqui figura as engrenagens repressivas da ditadura militar brasileira como um pano de fundo (a cena de Eunice na praia vendo caminhões do Exército passando na orla da praia carioca enquanto a família se diverte indiferente é emblemática), além de cenas em que apenas sugerem as relações de Rubens Paiva com a resistência clandestina. 

Isso porque a perspectiva do filme é permanecer firmemente alinhada no drama familiar de Eunice – sempre no fio da navalha entre a desesperada busca do marido desaparecido nos porões da repressão, tortura e desaparecimento das vítimas, e continuar mantendo a rotina da casa numa aparência de normalidade, criando seus cinco filhos Vera, Eliana, Marcelo, Ana Lúcia e Maria Beatriz.

É a partir desses pressupostos que o filme deve ser analisado: primeiro, como um produto – primeiro filme original Globoplay e distribuição multinacional pela Sony Pictures. 

Segundo, um filme lançado e repercutido (cuja premiação da atriz Fernanda Torres no Globo de Ouro é até aqui o ápice promocional do filme) num contexto político tão conveniente que parece até proposital – atos solenes pelos dois anos da tentativa de golpe por militares no 8/1, num momento em que a extrema-direita faz pressões pela anistia dos envolvidos no episódio. Principalmente, a anistia do ex-presidente, capitão da reserva e defensor da repressão e torturas da ditadura militar, Jair Bolsonaro, até aqui inelegível e sem cargo.

O contexto político que involuntariamente ajuda a promover a atualidade da produção de Walter Salles.

Ainda Estou Aqui vem às telas depois dos quatro anos da “corda esticada” do governo Bolsonaro vendendo diariamente a ameaça de uma possível intervenção militar (o “golpe dentro do golpe”) ou, após Lula ganhar a eleição em 2022, um verdadeiro golpe militar no melhor estilo “Old Scholl”. Sempre cantado em prosa e verso, desde que o filho Eduardo Bolsonaro falou, em 2018, que bastava um cabo e um soldado para fechar o STF.



Nesse contexto, principalmente para a esquerda, o filme traria uma mensagem urgente: nos manter alertas para evitar que aquela realidade dos anos de chumbo não volte mais.

Veremos adiante como, sobrepondo o filme como um produto desenhado para o mercado internacional (com todos os interesses mercadológicos da Globo) ao contexto que envolve as relações sociais de produção, resulta é uma série de ironias e paradoxos. Mas, principalmente, emerge questões sobre a luta de classes brasileira, revelando a profunda hipocrisia da elite brasileira – a cordialidade como o frágil curativo que não consegue dar conta das duas feridas psíquicas da Nação: e escravidão e o militarismo que fundou a própria República.


O Filme: a linguagem internacional-popular


Ainda Estou Aqui é faz parte de um esforço mercadológico da Globo em atrair as grandes distribuidoras de cinema e audiovisual internacionais.

Embora, ao longa da sua história, tenha alcançado relativo sucesso com suas telenovelas editadas e moduladas para diferentes países, o mercado internacional cinematográfico e audiovisual ainda é uma barreira para o grupo que, através da plataforma Globoplay, tenta se reinventar para além da TV aberta.

O filme foi formatado dentro daquilo que chamamos de linguagem internacional-popular: hoje para atrair o interesse das distribuidoras, o produto audiovisual de qualquer país deve ser formatado dentro de rígidas categorias abstratas da produção cultural mercadologicamente bem-sucedida – a adaptação do produto cultural às exigências de uma linguagem globalizada (fotogenia, estilização, signalização, estereotipagem, estandartização etc.).

Por exemplo, Ainda Estou Aqui segue um esquema narrativo abstrato que chamamos de “quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem”.  



O filme gasta meia hora para descrever a ordem idílica familiar da zona sul carioca. Abre com Eunice emergindo do mar, na praia, tendo o Corcovado ao fundo. Os filhos da família Paiva jogando vôlei na areia, cena de uma proverbial mesa de jantar, a unidade familiar, a bricolagem de pôsteres e discos, a perfeita reconstituição dos móveis da época, o escritório do engenheiro Rubens Paiva imerso em plantas e croquis etc.

Emergem sonhos da família em meio as festas: fazem planos para uma nova casa que estão construindo.

Mas paira sobre a perfeita dona de casa e o perfeito pai de família as sombras que rondam aquela ordem harmoniosa: caminhões do exército que cruzam a orla da praia e as rápidas conversas de Rubens Paiva com amigos que comentam o cenário de fechamento político do país.

Até o momento em que quatro capangas do Batalhão da Polícia do Exército invadem o lar e quebram a ordem empaticamente descrita no primeiro ato, levando Rubens Paiva num carro e Eunice e sua filha, encapuzados, no outro. Para averiguações, dizem. 

Mas sabemos que o destino foi selado e Eunice emerge como a protagonista do filme depois de 12 dias no cárcere ouvindo gritos de torturados em celas ao redor. Com a raiva e angústia contidas, ela luta para manter uma aparência de rotina diante dos filhos, enquanto busca informações sobre o marido desaparecido. A polícia sequer admite que Rubens Paiva foi preso.

E o filme termina com o restabelecimento da ordem, repetindo a mesma cena que abre o filme: a foto do ano da família Paiva, agora com Eunice idosa rodeada pelos filhos e netos. Depois da admissão legal da morte de Rubens Paiva, a volta de Eunice à faculdade para se tornar uma advogada ativista da causa indígena.

Estamos diante de um clichê narrativo abstrato: aqueles capangas poderiam ser substituídos por qualquer tipo de vilão: Fred Krueger, aliens, terroristas internacionais, mafiosos etc. O Mal que irrompe justamente após os planos e sonhos do casal Paiva ter se manifestado – como nos filmes hollywoodianos, a primeira flecha dos índios atingirá sempre aquele cowboy que na cena anterior ousou falar de seus sonhos e planos.



Outro exemplo é o filtro amarelo persistente na fotografia – uma das exceções é a sequência do interrogatório e a prisão de Eunice, em azul e preto.

  Sabemos que o tom amarelado é um efeito cinematográfico intencional para filmes hollyoodianos ambientados no México ou América Latina. Um estereótipo visual para evocar uma sensação de calor, aridez ou um clima "exótico" – o estereótipo norte-americano para a AL com paisagens áridas e quentes. O tom amarelado também sugere um contraste com os tons mais neutros ou azulados, como são quase sempre representados os Estados Unidos e Europa. O amarelo como o signo de um clima sujo, perigoso ou "fora da lei". 

O efeito dessa linguagem internacional-popular é a uma neutralização ou esvaziamento do conteúdo – da denúncia para o mundo sobre os horrores da ditadura militar brasileira e como a repressão política impactou o cotidiano de uma família real, a narrativa esquemática reduz todo o peso político a um drama pessoal e uma história de persistência e superação individual. 

Em outras palavras, a história ganha uma universalidade de mercado. E perde o impacto do horror do arbítrio e da paranoia coletiva que tomou conta de uma nação – para os americanos, nada mais do que um drama de algum lugar abaixo do Equador.

Para encerrar esse tópico, é marcante a diferença de classe social na utilização da linguagem para tratar das mazelas sociais. Nas produções fílmicas e audiovisuais sobre vítimas da violência (política ou social) das classes médias, há uma opção pelo viés da sensibilidade, do afeto, da leveza e da emoção pungente. 

A coisa muda de figura quando a vítima está na favela ou bairros periféricos: é bala, bomba e porrada! Thrillers de ação com trilhas musicais pesadas, gente suada de ódio e medo, além da gritaria. Como, por ex., em produções audiovisuais como a atual série Globoplay Arcanjo Renegado ou o filme premiado Cidade de Deus.



O contexto: hipocrisia burguesa e cordialidade


Ainda Estou Aqui apenas signaliza a ditadura militar (vemos uma ditadura apenas indicial ou como pano de fundo, já que o foco é o drama pessoal de Eunice). Por isso, é impossível não colocar o filme na perspectiva dos produtores.

Leonardo Sacramento, em seu artigo “‘Ainda estou aqui’ e a hipocrisia burguesa” coloca que filmes, livros ou qualquer produto cultural não devem ser analisados exclusivamente pelo conteúdo, mas pela relação entre conteúdo e relações sociais e políticas de seu contexto. O conteúdo só faz sentido em um contexto – clique aqui.

Sacramento levanta o “paradoxo escondido no filme”: “além de diretor nas horas vagas, que são todas dos seus dias, Walter é um dos herdeiros da família Moreira Salles, dona do Itaú-Unibanco, o maior banco do país, com os maiores lucros proporcionais do planeta”.

Em outras palavras, o diretor é herdeiro de uma fortuna iniciada com negócios da escravidão do patriarca João Moreira Salles, migrando depois para os negócios bancários (a Casa Bancária Moreira Salles) com a abolição da escravatura.

O golpe empresarial-militar (o golpe militar de 1964 como demanda política dos interesses multinacionais-associados) teve como os grandes fiadores banqueiros dentre eles as famílias do Itaú (Setúbal e Vilela) e o pai do cineasta Walter, o banqueiro Walther Moreira Salles. Cujos negócios foram ainda impulsionados pela reforma bancária, imediatamente depois do golpe. Além de investir em nióbio em Minas Gerais, após dica do almirante da Marinha norte-americana Arthur W. Radford e conselheiro da mineradora Molucorp Inc.




Ou seja, o diretor Walter Salles, herdeiro de uma fortuna familiar fruto do apoio à ditadura militar, faz uma adaptação do livro do filho de uma vítima da repressão militar, cujo pai do cineasta foi o fiador.

A Globoplay, produtora e distribuidora do filme, cujo grupo empresarial comemora seus 100 anos, levou quase mais da metade desse tempo para (a) admitir que houve um golpe e uma ditadura militar no Brasil e (b) admitir o erro do “apoio em editorial” de O Globo, em 1964, ao golpe militar.

Mas jamais admitiu o apoio extensivo do Grupo O Globo ao regime. Tanto que no filme, a questão da mídia na ditadura é rarefeita (embora a contextualização cultural seja riquíssima com capas de discos da época, vinis em vitrolas com discos com selo da Som Livre (gravadora do Grupo Globo) e referências a artistas como Gilberto Gil) – uma das filhas de Rubens Paiva está em Londres e somente através dos jornais de lá soube do desparecimento do pai. Enquanto no Brasil, nada se sabia. 

“Os jornais dão o que o governo quer”, informa uma linha de diálogo ambígua que não explicita o apoio editorial (ou até operacional na repressão, como o jornal Folha de São Paulo) e empresarial dos monopólios midiáticos.

“Opção do diretor Walter Salles”, dizem muitos em defesa do cineasta sobre críticas ao foco exclusivo no drama pessoal e familiar de Eunice Paiva. 



De fato, é uma opção. Quando sabemos que a adaptação de um livro no cinema ou audiovisual não necessariamente deve ser fiel – muitas vezes é o ponto de partida para a expansão de um determinado tema.

Mas uma opção condicionada pelo viés de classe de um cineasta que é um legítimo herdeiro da fortuna familiar acumulada ao longo do tempo pelas duas chagas nacionais: a escravidão e o militarismo.

Mas o que mais marca nesse contexto que, como coloca Leonardo Sacramento, deve ser levado em consideração (para além do conteúdo do produto cultural) é a espécie de cordialidade que marca a luta de classes brasileira.

Da relação pessoal de Walter Salles com a família Paiva à celebração da esquerda por um filme que “denuncia” o horror da ditadura militar, culminando (para mim) na maior ironia de todas: é a máquina de entretenimento americana (determinante para o cimento ideológico do american way life da classe média brasileira apoiadora do regime militar) que dará o reconhecimento máximo internacional através do Globo de Ouro de melhor atriz para Fernanda Torres... e quem sabe o Oscar. 

Comemorado pela esquerda, adoecida que está pelo conteudismo: a doença infantil da comunicação – apenas consegue enxergar o conteúdo de um produto cultural, esquecendo-se do contexto e das relações sociais e de classe que envolvem a fabricação do produto.

Quanto à esquerda compreende-se: foi abduzida pela agenda da “defesa da Democracia” e o filme acontece como a cereja do bolo no “Abraço à Democracia”, ato em Brasília para lembrar o 8/1 – enquanto em favelas e periferias, o drama da família Paiva continua exponencialmente. Não é algo que “pode voltar”. A continuação híbrida da ditadura militar elegeu um novo inimigo interno, não mais os “comunistas” das classes médias: agora são os pobres, negros e periféricos que tomam bala, bomba e porrada.

Esse certamente é a maior mais-valia semiótica dessa linguagem internacional-popular: transformar a luta de classes num drama pessoal universal.

É o segredo de como Hollywood eliminou a perspectiva político-ideológica do primeiro cinema, como aponta o historiador Steve Ross: a construção da hegemonia das narrativas baseadas em fantasias que transcendem as classes sociais, a “cross-class fantasies”, eliminando a luta de classes do horizonte cognitivo – leia ROSS, Steve J., Working Class Hollywood, Princeton: Princenton University Press, 1999.


 

 

Ficha Técnica

Título: Ainda Estou Aqui

Diretor: Walter Salles

Roteiro: Murilo Hauser, Heitor Lorega, Marcelo Rubens Paiva

Elenco:  Fernanda Torres, Selton Mello, Fernanda Montenegro

Produção: Video Filmes, RT Features, Globoplay

Distribuição: Sony Pictures

Ano: 2024

País: Brasil 

 

 

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