sábado, janeiro 04, 2025

O horror de 'Nosferatu': o que você faz se o Mal beijar a esposa melhor que o marido?


O que você faz se o Mal beijar a esposa melhor que o marido? Certamente serão colocados em xeque toda racionalidade científica, a moralidade e a religião. Pode parecer grosseiro e simplista, mas este parece ser o argumento central de “Nosferatu” (2024), refilmagem do cineasta Robert Eggers (“A Bruxa”, “O Farol”) do clássico mudo “Nosferatu – Uma Sinfonia do Horror”, de 1922. Ao contrário do original, Eggers vai além de um conto sobre um vampiro: mais do que entidade das trevas, Nosferatu é o Mal puro capaz de distorcer a própria realidade. “Nosferatu” concentra-se no erotismo macabro e numa sexualidade melancólica e crepuscular que vai “além dos oceanos do tempo”. A representação ontológica do Mal e sua perturbadora conexão com o Erótico, o Orgasmo e a Morte - o erotismo como a afirmação da vida que se estende até a morte.

O que mais impressiona no filme Nosferatu (2024), do cineasta Robert Eggers (A Bruxa, O Farol), é que essa refilmagem do clássico de 1922, Nosferatu: Uma Sinfonia do Horror, de F.W. Murnau, vai além de um conto sobre sangue e vampiros. Não há metáforas e as profecias são reais. Eggers transformou Nosferatu em algo muito maior do que uma entidade das trevas: é o próprio Mal puro, capaz até de distorcer o tecido da realidade através da sua força - o vento, a chuva e a escuridão parecem seguir as ordens de Nosferatu.

Todos os clássicos subtemas de um conto gótico do século XIX estão presentes: a impotência da fé e de Deus diante da chegada do príncipe das trevas; a Ciência e a racionalidade incapazes de enfrentar o Mal por prepotência, por considera-lo apenas uma ilusão resultante de crenças e superstições originadas de algum lugar perdido do Leste europeu; a hipocrisia da moralidade vitoriana etc.

A certa altura, o vampiro Nosferatu chega a admitir: “Eu sou um apetite, e nada mais”. Para Eggars, Nosferatu é apenas uma persona, uma manifestação antropomórfica visível e compreensível para os mortais. Mas essa persona é apenas a manifestação do próprio Mal, que a “gasosa luz da Ciência” quer ignorar como uma simples sombra que irá embora ao ser iluminada.

Mas e se o Mal beijar melhor a esposa do que o próprio marido? Essa questão pode parecer grosseira e simplista, mas é esse enigma que Eggars propõe para o espectador. 

Enquanto a primeira refilmagem de 1979, Nosferatu: O Vampiro, Werner Herzog concentrava-se na questão da animalidade dominado o mundo humano, Robert Eggers concentra-se no erotismo macabro e numa sexualidade melancólica e crepuscular. O filme faz perturbadoras conexões entre o Mal, o Erótico, o Orgasmo e a Morte. 



Não querendo dar spoiler, comparando com o original de 1922, enquanto lá Nosferatu morre pelos primeiros raios do Sol da manhã, aqui os raios solares banham o ato sexual de sangue e orgasmo. Para desespero do próprio marido, incapaz de impedir através do amor romântico e a instituições vitorianas, a libertação de um amor mórbido aprisionado pelo tempo.

Esse parece ser o tema principal de Eggers, lembrando o insight do escritor George Bataille: “o erotismo é uma afirmação da vida que se estende até a morte” e, citando Marquês de Sade, emendava dizendo que “não há melhor maneira de se familiarizar com a morte do que associá-la a uma ideia libertina” – BATAILLE, George, “O Erotismo”.

Bataille aprofundava filosoficamente a expressão popular “pequena morte” (“La petite mort”) para descrever o instante do orgasmo – um momento tão transcendente como abandonar o tempo e o espaço, perder-se no outro e ligar-se ao Uno. Uma experiência paradoxal como se fosse possível morrer em vida, enquanto o corpo está vivo e pulsante.

Por isso, Nosferatu é um filme metafísico, atmosférico e gótico no sentido mais filosófico e transcendente do termo.

Esta versão de “Nosferatu” é na verdade uma fusão de três fontes: o filme mudo original de 1922; o romance Drácula de Bram Stoker e o filme Tod Browning de 1932 que o adaptou. E, certamente, a maior influência é o filme de 1992 de Francis Coppola, influenciado por filmes mudos, mas com aparência japonesa de ficção científica/fantasia, Drácula de Bram Stoker, que estranhamente tinha pouca relação com o livro de Bram Stoker, apesar do título. 

O principal empréstimo de Eggers do filme de Coppola é a história de amor obsessivo que "atravessa os oceanos do tempo" entre Nosferatu, também conhecido como Conde Orlak (Bill Skarsgard), e a jovem socialite Ellen Hutter (Lily-Rose Depp), a quem o monstro vê como sua alma gêmea, e cuja consciência adormecida e acordada ele invade com força crescente. 

Um amor tão além do tempo que explode os limites da racionalidade científica, da moralidade vitoriana e da religião: é o “Mal”, que nem o amor romântico consegue deter... afinal, o Mal beija melhor a esposa do que o marido fiel.



O Filme

Em Nosferatu fica evidente em todos os enquadramentos as influências do início de carreira de Eggers como designer de produção na construção de mundos e cenários obsessivamente detalhados nas suas histórias como A Bruxa O Farol

Eggers mergulhou na história e no folclore antes de escrever o roteiro do filme. Como resultado, há uma boa chance do espectador ver elementos da mitologia de vampiros que não encontrou em um filme anteriores, principalmente porque muitos filmes de vampiros são baseados principalmente em outros filmes de vampiros, em vez de em livros ou artigos acadêmicos. 

Por isso, há um desenho da essência da coisa que os heróis estão enfrentando que tem pouca relação com a face do mal que Nosferatu assume ao falar com os mortais. Você verá a essência como o Mal e o Tempo. Sua aparência para os mortais é profundamente grotesca, um mamífero predatório com qualidades humanoides. A forma “humana” que Nosferatu assume aqui é algo novo, não como a encarnação com presas, careca e com garras mostrada em outras versões do original de Murnau. Mas um ser que está se decompondo pelo Tempo, cuja única saída é a redenção através da cópula final com o seu amor “além dos oceanos do tempo”.

Lily-Rose Depp está fenomenal e fisicamente comprometida como a problemática recém-casada Ellen Hutter. A encontramos com o seu coração sombrio e torturado. 

Em um prólogo eroticamente carregado, acompanhado por música que soa como os sinos de uma caixa de joias amaldiçoada, vemos a jovem Ellen involuntariamente convocando um mal antigo. O conde Orlok (Bill Skarsgård, revestido de próteses e com uma voz tão assustadora que soa como uma voz profunda da carne podre) é acordado de séculos de sono em seu castelo nas montanhas dos Cárpatos pelo chamado psíquico de Ellen. 



Por um tempo, ele invade seus sonhos, lançando sua sombra maligna sobre seu corpo em sonhos e pesadelos. O casamento de Ellen com seu amado, Thomas Hutter (Nicholas Hoult), traz a ela uma pausa temporária dos pesadelos febris e ataques que a possuíam. A vida deles juntos em uma pequena cidade na Alemanha em 1838 é empobrecida, é feliz.

Mas a lua de mel mal acaba antes - Thomas, ansioso para sustentar sua nova noiva, acei ser enviado pelo seu empregador Herr Knock (Simon McBurney) em uma viagem à Transilvânia para levar os papéis da compra de uma mansão em ruínas a um cliente “muito velho e excêntrico” que, Knock brinca alegremente, tem “um pé na sepultura”. 

Para não ficar só, Ellen vai morar com sua pálida e recatada amiga Anna Harding (Emma Corrin) e seu marido pragmático e profissional, Friedrich (Aaron Taylor-Johnson).

À medida que os terrores noturnos e as convulsões de Ellen retornam, ela é atormentada por premonições de um horror que se aproxima. Numa cena bem freudiana, seus anfitriões tratam sua doença como sintomas de histeria, amarrando-a à cama e apertando seu espartilho (“Isso acalma o útero”, aconselha o especialista psiquiátrico local Dr. Wilhelm Sievers, interpretado por Ralph Ineson). 

À medida que os sintomas de Ellen se intensificam, Sievers acaba recorrendo à experiência heterodoxa de seu ex-professor expulso pela universidade: Albin Eberhart von Franz (Willem Dafoe), um pesquisador excêntrico que relativiza a “gasosa luz da Ciência” e tenta reabilitar em pleno iluminismo as teses ocultas da alquimia e esoterismo medieval.



Mas já é tarde. O Conde Orlok já está a caminho em um navio amaldiçoado que trará a peste tanto física (representada pela horda de ratos) e psíquica (horror e loucura) para a localidade. 

O Mal que chega à cidade exigindo luxúria e devoção. 

É simbólico a sutil crítica social em Nosferatu: a empresa imobiliária (cujo proprietário, o sr.  Knock, virou um atormentado servo do Conde Orlok, que acaba aprisionado num hospício comendo cabeças de pombas e gritando “Ele está a caminho!”) vende uma velha mansão abandonada para o Mal – a especulação imobiliária como destruidora de qualquer esforço de trazer racionalidade urbana.

Assim como o monstro Nosferatu, totalmente indiferente aos marcos civilizatórios da era vitoriana.

Como de costume, não há redenção na filmografia de Eggars – em A Bruxa, a mente é o verdadeiro combustível do horror, capaz de criar bruxas e demônios; em O Farol, a humanidade como um faroleiro engolido pela escuridão oceânica por ter roubado o fogo dos deuses.

E em Nosferatu, nem Ciência ou religião são capazes de dar algum conforto ou segurança – só há transcendência no Mal, no Orgasmo e na Morte.


 

 

Ficha Técnica

Título: Nosferatu

Diretor: Robert Eggers

Roteiro: Robert Eggers, Henrik Gallen, Bram Stoker

Elenco:  Lily Rose-Depp, Nicholas Holt, Bill Skarsgård

Produção: Focus Features

Distribuição: Universal Pictures (Cinemas)

Ano: 2024

País: EUA 

 

 

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