sexta-feira, janeiro 24, 2025

Não existe perdão, só esquecimento no filme 'Pisque Duas Vezes'


O terror racial e o terror de gênero se encontram numa zona de combate brutal e sangrenta. É o filme “Pisque Duas Vezes” (Blink Twice, 2024, disponível na Prime Video) em que a assustadora mensagem de Jordan Peele em “Corra!” se combina com o terror da masculinidade tóxica de “Men”, de Alex Garland e atual tendência dos thrillers de vingança e luta de classes (“Parasita”, “O Menu”, “Triângulo da Tristeza” etc.). Uma desajeitada garçonete de coquetéis cai aos pés do bilionário tecnológico. Ele a convida, junto com sua melhor amiga, para um retiro na sua ilha privada tropical paradisíaca. Uma história que lembra Cinderela que aos poucos vai se tornando um conto de terror: há algo errado neste paraíso tropical. “Não existe perdão, só existe esquecimento” é o mote do filme que surpreende ao fazer alusões à interpretação gnóstica do Paraíso bíblico: os prazeres de um Jardim do Éden, serpentes, conhecimento e esquecimento.

“Não existe perdão, só existe esquecimento” e “O sucesso é a melhor vingança”. Essas duas frases citadas aqui e ali nas linhas de diálogo são as chaves de compreensão do filme Pisque Duas Vezes (Blink Twice, 2023), na estreia de direção do cineasta Zoë Kravitz. Um filme que leva a política de gênero à zona brutal do terror racial.

O terror racial virou uma espécie de subgênero que emergiu durante todos esses anos de agenda identitária de Black Lives Metter e MeToo. Uma tendência cinematográfica que começa com Corra! e Nós de Jordan Peele, para dar continuidade com a série Them (2021), o terror racial mesclado com o social em Excluídos (The Strays, 2023) e a banalidade autoritária em Suaves & Discretas (Quiet & Soft, 2022).

Para fazer também emergir o terror de gênero como She Will (2021), de Charlotte Colbert e Men (2022), de Alex Garland.

Mas Pisque Duas Vezes vai ao extremo ao transformar a política de raça e gênero numa arena de combate de sangue, violência e ossos esmagados. Combinado com um thriller com o seu próprio senso de humor. Zoë Kravitz é perspicaz ao combinar a mensagem inaugural de Jordan Peele em Corra com o toque de desconforto das mulheres em meio à masculinidade tóxica de Men.

 Além disso, Pisque Duas Vezes transforma o terror social do abismo da desigualdade, de filmes como Parasita, Triângulo da Tristeza, O Menu etc., num pano de fundo. 

Em outras palavras, parece que a vingança está na moda como o reflexo da absurda concentração de riqueza no um porcento mais rico do planeta – uma pequena amostra disso vimos com os bilionários das Big Techs Mark Zuckerberg e Elon Musk na posse de Donald Trump, de olho em bilhões de dólares de investimentos do Governo em seus negócios de Inteligência Artificial.



O filme acompanha uma desajeitada garçonete de coquetéis para eventos de elite que cai aos pés do bilionário tecnológico chamado Slater King (Channing Tatum). Ele a convida, junto com sua melhor amiga, para um retiro na sua ilha privada tropical paradisíaca. Uma história que lembra Cinderela que aos poucos vai se tornando um conto de terror: há algo errado neste paraíso tropical. E tem a ver com a masculinidade tóxica de bilionários.

O metódico e até científico método de recrutar garotas desavisadas para festas 24 horas numa ilha privada de um Big Tech reflete toda a onda de denúncias de assédios e abusos do MeToo. Mas o filme vai além disso: trata-se de esquecimento e vingança, como nos informam as duas linhas de diálogo chaves citadas acima.

Embora toda essa onda de denúncias, cancelamentos e linchamentos virtuais de personalidades públicas resuma a questão das relações de poder a uma mera questão moral ou cultural, Pisque Duas Vezes coloca em cena a luta de classes – aquilo que parece ser esquecido, preferindo transformar as denúncias num show de woke explotation.

A questão do esquecimento (elemento principal para manter as aparências daquele paraíso privado) assume no filme um surpreendente tom bíblico, com direito a alusões ao papel da serpente como a responsável pela destruição do paraíso mediante a perda da inocência humana diante dos olhos de Deus – em Pisque Duas Vezes, o demiurgo de uma Big Tech do Vale do Silício.

Ainda mais surpreendente é que essas alusões adquirem um tom gnóstico: a interpretação gnóstica do Éden - o Paraíso como um jardim aparentemente cheio de belezas e delícias sedutoras de um jardim terrestre, mas que na verdade é uma prisão construída por uma divindade demiúrgica, na qual se encontram encarcerados Adão e Eva. E o papel da serpente que rouba a cena, os instrui a comer do fruto do conhecimento e descobrir a verdade. Superando a ignorância e o esquecimento.



O Filme


No início somos apresentados a Slater, um bilionário do mercado da tecnologia, por meio de uma entrevista na televisão, onde ele pede desculpas por algum tipo de situação abusiva e ofensiva não revelada. No entanto, a transgressão não é de todo um mistério para nós: já vimos essa cena em algum lugar - um cara branco, influente e rico em uma entrevista confessional em um telejornal, lamentando seu comportamento e prometendo se tornar uma pessoa melhor.

Slater organiza uma gala onde as garçonetes e melhores amigas, Frida (Naomi Ackie) e Jess (Alia Shawkat), estão trabalhando. Também já vimos essa cena em algum lugar: Slater é uma celebridade bilionária, e elas estão no lugar certo. É a oportunidade de elas tentarem chamar a atenção e, quem sabe, darem uma guinada na vida proletária de subempregos.

Impulsivamente elas abandonam seus uniformes e trocam por roupas de gala na esperança de conversar com o homem do momento. Um pequeno acidente de Frida, tropeçando nos seus saltos agulha, chama a atenção de Slater. Para logo depois as duas estarem conversando com o homem dos sonhos e serem apresentadas ao seu terapeuta (lembre-se, quer se tornar uma pessoa melhor...), Rich (Kyle McLachlan).

As garotas parecem ter conseguido mais do que esperavam: Slater as convida para sua ilha privada para festas luxuosas à beira da piscina. E elas aproveitam a chance.

Acompanhado por entourage de amigos suspeitos - Cody (Simon Rex), Vic (Christian Slater) e Tom (Haley Joel Osment), e seus convidados, Sarah (Adria Arjona), Heather (Trew Mullen) e Camilla (Liz Carisel) - Slater embarca em seu jato particular para a suposta fuga de seus sonhos – lembre-se, ele quer ser uma pessoa melhor... e acha que o isolamento seria benéfico...




Quando chegam, todos os telefones celulares são coletados pela assistente pessoal nervosa e neurótica de Slater, e também sua irmã (Geena Davis). Incomunicáveis com o mundo, odos ficam para se deliciar com as indulgências que a ilha tem a oferecer, de grossos cigarros de maconha a drogas alucinógenas, champanhe e outras bebidas regando jantares noturnos exoticamente elaborados. No entanto, à medida que os dias bêbados se misturam e todos começam a perder a noção do tempo, uma suspeita furtiva começa a surgir de que algo não está certo.

A crescente suspeita lembra a atmosfera do filme Midsommar - a fantasia de um sonho ruim em vestidos de algodão branco sobre férias tiradas por um casal americano em uma comuna sueca e que descobrem ser uma seita aterrorizante.

Mas em Pisque duas vezes as coisas têm mais a ver com as vibrações do hedonismo corporativo de um Jeffrey Epstein (que dava guarida a predadores sexuais em sua ilha particular) e de Biil Cosby que utilizava drogas para cometer seus crimes.

Frida e Jess vão juntando pistas de que algo muito estranho está acontecendo. Frida pinga suco de bife em seu vestido... e um pouco mais tarde, a mancha desapareceu. Ela acorda pela manhã percebendo sujeira de terra sob as unhas. 

E quanto à misteriosa empregada (María Elena Olivares), seu principal trabalho parece ser matar as grandes cobras amarelas venenosas que povoam a ilha. Mas por quê?

Frida é a quintessência do atual mind set: Frida sonha em lançar sua própria marca de design de unhas, idolatra Slater, a ponto de se infiltrar na festa de arrecadação de fundos da empresa King-Tech em que ela foi contratada para ser garçonete. Ela acha que ganhou a sorte grande quando ele a convida para a ilha.


Alegoria feminista da memória – alerta de Spoilers à frente


O filme lança uma falsa pista: parece que tudo gira em torno da ideia de que Slater, o magnata Príncipe Encantado, se apaixonou por ela. Quando observamos a interação cautelosa entre ela e Sarah, uma celebridade de longa data em um reality show ao estilo “Survivor”, pensamos que a rivalidade entre elas vai impulsionar a história. Mas pense duas vezes nos conduz para uma outra coisa.

E a chave é a metáfora do paraíso idílico com serpentes destilando veneno que é a poderosa arma para o demiúrgico magnata tecnológico manter em funcionamento a verdadeira armadilha que é a sua ilha privada: a arma do esquecimento.



Pisque Duas Vezes flerta com um tipo de ficção científica química – há um histórico de abusos e estupros naquela ilha que é simplesmente deletado da memória através de uma poderosa droga servida junto com os jatares exóticos. Cuja matéria-prima é o veneno das cobras.

Assim como em nossas vidas, para que cada manhã é o início de um novo dia, novas esperanças, novas promessas... mas tudo é uma continuidade mascarada pelo sono e o esquecimento.

Na interpretação gnóstica do Paraíso bíblico, temos uma inversão da narrativa canônica: a serpente trás o conhecimento, tentando relembrar para o casal de que eles estão seduzidos pelas delícias de um paraíso terrestre que na verdade é uma prisão.

No filme, o mesmo veneno que produz o esquecimento, vira o antídoto do conhecimento – é o que Frida e Jess descobrirão, revelando uma aterrorizante verdade: o magnata Slater King não está se tornando uma pessoa melhor. Ele apenas sofisticou tecnologicamente a depravação da amoralidade corporativa.

Aquele cenário paradisíaco tropical, as bebidas extravagantes fluindo; as drogas psicodélicas sem fim; jantares gastronômicos servidos diariamente; e as acomodações (perfume exótico, lençóis com milhões de fios, roupas de cortesia) lembram algum resort dos sonhos. A vida pode ser um sonho. O verdadeiro pesadelo acontece quando você acorda.

Mas lembre-se: Frida quer ser uma empreendedora de sucesso e ela não se contentará em assumir o papel de vítima numa trama de crimes e abusos.

Essa Cinderela às avessas que é Pisque Duas Vezes não poderia terminar assim. Frida tem que conquistar o seu prêmio e realizar a segunda frase-chave do filme: “O sucesso é a melhor vingança” – por que não tomar as rédeas da situação e conquistar o controle da King-Tech fazendo Slater sentir o gosto do próprio veneno? Slater King vira um zumbi sem memória nas mãos de Frida, que se transforma na verdadeira controladora dos negócios.

Pisque Duas Vezes acaba se tornando uma alegoria feminista da memória.

Mas também revela o ressentimento da vingança feminista por trás da cultura do cancelamento e linchamento midiático – não quer transformar a sociedade a partir da eliminação da ordem patriarcal. Apenas deseja que a ordem seja mantida, e o seu controle seja mais diverso e inclusivo.


 

 

Ficha Técnica

Título: Pisque Duas Vezes

Diretor: Zoë Kravitz

Roteiro: Zoë Kravitz, E.T. Feigenbaum

Elenco:  Naomi Ackie, Channing Tatum, Alia Shawkat, Christian Slater, Haley Joel Osment, Kyle MacLachlan

Produção: Bruce Cohen Productions, MGM

Distribuição: Amazon Prime Video

Ano: 2024

País: EUA 

 

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