Vídeos e fotos dos incêndios de Los Angeles que circulam nas redes sociais e na grande mídia são impressionantes: parecem que foram escolhidas pela “fotogenia”, isto é, pela similaridade com as dezenas de filmes-catástrofe já feitos por Hollywood. E o destaque dos incêndios das próprias mansões de atores parecem querer nos mostrar que eles estão estrelando algum tipo de superprodução real. Qual o ardil dessas imagens que viraram bombas semióticas? A resposta está no teórico urbanista e historiador Mike Davis, agora reconhecido pela antevisão do seu livro “Ecologia do Medo: Los Angeles e a Fabricação de um Desastre”, de 1998. Como a urbanização caótica, especulação imobiliária e privatização dos recursos hídricos tornou uma sociedade altamente vulnerável aos desastres ambientais – e, atualmente, às mudanças climáticas. Mas Hollywood, com seus “disasters movies”, naturalizam um problema político e econômico, porque é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do Capitalismo - L.A. como vítima de uma "crise climática global" e não de um desastre ambiental provocado pelo saco de maldades neoliberais .
Falecido em 2020, aos 76 anos, Mike Davis foi um historiador, teórico urbanista, ativista e ambientologista marxista norte-americano, cujos acontecimentos (desde a surra policial em um trabalhador afro-americano chamado Rodney King, que levou aos grandes distúrbios raciais de Los Angeles em 1992 aos incêndios atuais em L.A.) lhe conferiram uma aura profética.
Radicalizado pelo movimento dos direitos civis, foi ativista do Congresso de Igualdade Racial, queimou seu cartão de recrutamento para protestar contra a invasão da República Dominicana pelos EUA em 1965, juntou-se ao Partido Comunista e tornou-se um organizador do grupo de esquerda Estudantes para uma Sociedade Democrática. E nos anos 80 foi editor da presstigiosa New Left Review na Grã-Bretanha.
Em 1990, Mike Davis anteviu a explosão racial de 1992 com o livro “City of Quartz” (a L.A. distópica como uma sociedade prisional supervisionada por uma força policial opressiva). E o seu trabalho posterior “Ecologia do Medo: Los Angeles e a Fabricação de um Desastre” (1998) previu a crescente catástrofe de incêndios florestais na Califórnia, e “O Monstro em Nossa Porta: A Ameaça Global da Gripe Aviária” (2005), que alertou que uma pandemia mortal era cada vez mais provável.
Para ele, as estruturas urbanas modernas sob o capitalismo não eram adequadas para lidar com a saúde pública e o desastre ambiental. As injustiças sociais estariam intimamente relacionadas com os desastres naturais. Assim como a acumulação do capital é oposta a qualquer política pública, seja ambiental ou de saúde – há uma conexão fundamental entre os interesses privados e a atual era de pestes e desastres ambientais.
E que Los Angeles “veio a desempenhar o duplo papel de utopia e distopia para o capitalismo avançado”. Para Mike Davis, Los Angeles e o Sul da Califórnia criaram uma mitologia graças aos filmes noir, à cultura do surf e a Hollywood, contrastando com as duras realidades enfrentadas por milhares, especialmente membros de grupos minoritários.
Ecologia do Medo
Particularmente em “Ecologia do Medo: Los Angeles e a Fabricação de um Desastre”, Davis descreveu o risco de incêndio entre Malibu e o centro de Los Angeles, e explorou a história dos incêndios em Malibu.
Pois os incêndios florestais descontrolados e gigantescos que acompanhamos em Los Angeles deslocando mais de 150.000 moradores até agora comprovam as antevisões de Mike Davis – como a urbanização caótica da área, especulação imobiliária, privatização dos recursos hídricos e a desordem social tornou uma sociedade altamente vulnerável aos desastres ambientais. Uma sociedade capaz de construir utopias cinematográficas que acabam criando uma autodescrição que oculta desigualdade, injustiça e vulnerabilidade ambiental.
Para ele, Los Angeles era uma causa perdida. Por isso, era necessário criar uma “epistemologia neocatastrofista para reinterpretar a história ocidental”.
Davis dava uma particular atenção a essa mitologia hollywoodiana para além do surf, Sol, paz e amor – dava uma particular atenção aos filmes-catástrofe.
Partindo dessas “epistemologia neocatastrofista”, a repórter cultural do New York Times, Alexis Soloski, faz interessantes reflexões no artigo “Los Angeles Is Starring in an All-Too-Real Disaster Story” (“Los Angeles está estrelando uma história de desastre muito real”) – clique aqui.
Natural de Los Angeles, ela escreve que cresceu assistindo a cidade sendo destruída inúmeras vezes na tela: em filmes e séries, Los Angeles sofreu ataques de meteoros, invasões alienígenas, incêndios, inundações, zumbis, vulcões, catástrofe sísmica, além de vários ataques de cardumes de tubarões.
“Viver em Los Angeles como um cinéfilo ou um observador de TV é ver Hollywood se deleitar em sua ruína. Muitas vezes eu compartilhei esse prazer”, afirma. E cita uma frase de Mike Davis: “Nenhuma outra cidade parece excitar um arrebatamento tão sombrio”.
Soloski destaca nesse conjunto de filmes catástrofes, como o fogo exerce seu próprio brilho: produções como L.A. Bombeiros e Emergência: L.A., bem como o docudrama L.A. Fire & Rescue, assim como uma riqueza de filmes B, como Heat Twister.
O ardil do “vida-imita-a-arte”
É irônico ver entre as inúmeras vídeos e imagens selecionadas nas redes sociais e na mídia de massa a procura de planos e enquadramentos que façam a catástrofe ficar cada vez mais parecida com aquelas imaginadas anteriormente por Hollywood.
No artigo de Alexis Soloski é possível perceber o mesmo tipo de perplexidade das testemunhas daqueles aviões que se chocaram contra as torres do WTC em 2001 – muitas relataram posteriormente que simplesmente não acreditavam no que viam. Achavam que tudo era alguma superprodução de algum disaster movie de Hollywood - Nova York já foi destruída 40 vezes. Seguido de Los Angeles, que Hollywood já destruiu 27 vezes.
O curiosidade é a natureza da destruição: Los Angeles foi mais envolvida em catástrofes geológicas e eventos climáticos, enquanto Nova York foi preferencialmente vítima de monstros, ataques alienígenas e batalhas de super heróis como Super Homem e Homem Aranha – leia “Map: How Hollywood Has Destroyed America”.
Porém, essa sensação de que a vida imita a arte tem um ardil ideológico bem preciso: ocultar a contradição entre capitalismo e interesse público descrita pela “espistemologia neocatastrofista” de Mike Davis – é o que está no cerne de cada catástrofe.
Nesse momento, os incêndios selvagens da California estão se tornando a vitrine de relações públicas da agenda das mudanças climáticas. Dez em cada dez reportagens sobre o desastre fala em “fenômenos extremos”, “aquecimento global” (numa simplificação retórica ao induzir que o fenômeno climático tenha a ver exclusivamente com “aquecimento”), “extremos climáticos” e assim por diante.
As imagens do jornalismo corporativo parecem ser alusivas a todos os filmes-catástrofe de Hollywood – além dos lugares comuns das matérias “inspiradoras” e “motivacionais” sobre solidariedade das doações de alimentos e remédios que chegam de todas as partes dos EUA para os “refugiados climáticos”.
Para reforçar ainda mais essa transitividade ficção-realidade, a mídia destaca as mansões dos astros de Hollywood incendiadas ou até a presença dos próprios atores nos locais – dando uma estranha sensação de que vemos atores estrelando algum tipo de superprodução real.
Mas o fantasma das previsões de Mike Davis pairava antes dos incêndios. Um mês antes do desastre, o chefe dos bombeiros de L.A., Kristin Crowley, alertava em memorando ao Conselho de Comissários de Bombeiros que os sistemáticos cortes orçamentários na corporação "afetam negativamente a capacidade de manter as operações principais, limitando severamente a capacidade do Departamento de se preparar, treinar e responder a emergências de grande escala" – clique aqui.
Aqui e ali surgem notícias de que, em virtude dos cortes, mil presidiários do sistema prisional (privatizado) da Califórnia estão sendo “convocados” às pressass para ajudar a combater os incêndios por 10 dólares diários – com um treinamento rápido de quatro dias numa escalada de terceirizações do Departamento – clique aqui.
Em entrevista à CNN, o governador da California, Gavin Newsom, a respeito de hidrantes secos que dificultam o combate aos incêndios, foi direto: “não é meu trabalho”. Além de Newson buscar um álibi na crise climática global ao sugerir que a tragédia era inevitável pela “escala” dos incêndios.
No meio dessa crise descobrimos o porquê de Donald Trump ter sido eleito presidente dos EUA e qual a função da extrema-direita nas crises cíclicas do capitalismo como essa, em que é jogado na cara de todos os efeitos sociais do saco das maldades neoliberais.
Rapidamente Trump se apropria da pauta crítica de esquerda e culpa o governador democrata de ser responsável pelo desastre ambiental por impor a agenda DEI (“Diversity, Equality, Inclusion” – Diversidade, Igualdade e Inclusão) aos serviços públicos, substituindo os critérios meritocráticos pela agenda Woke.
Ao arbitrariamente forçar a contratação de gays, lésbicas e trans nas brigadas de combate a incêndios “priorizam a igualdade racial e de gênero em vez de salvar vidas e casas”, acusou o novo fiel escudeiro de Trump, o bilionário Elon Musk – clique aqui.
A estratégia alt-right de apropriação semiótica do discurso alheio sempre tem o objetivo claro de transformar questões ou crises de natureza de política econômica em pânico moral. Despolitizando o problema.
Governador Gavin Newsom sobre hidrantes secos: "Não é meu trabalho...". |
E anula qualquer ímpeto da esquerda em culpar gestores e governantes, por medo de ser confundida com a extrema-direita.
Na verdade, a agenda DEI (assim como a ESG corporativa) foi incentivada pelos Novos Democratas nos EUA desde o final do século passado sob a influência do “politicamente correto”. É utilizada como tática de marketing e relações públicas para corporações e governos ocultarem a deletéria gestão neoliberal, sob discursos hipócritas repletos de empatia, dignidade e respeito – na prática, destruir serviços e patrimônio público com um sorriso simpático e caloroso no rosto.
Privatizar a água
Ou ainda privatizar recursos naturais com o dinheiro dos contribuintes, como na história de como bilionários privatizaram a água da Califórnia em chamas – como o casal de bilionários da Califórnia, Stewart e Lynda Resnick, donos da The Wonderful Company (que nome empático!), que controla o Kern Water Bank, ao sul do estado.
O Kern Water Bank é a autoridade responsável pelo maior banco de água da Califórnia, no Vale de San Joaquin, ao sul do estado. O banco de água contempla mais de 50 km² de área para armazenar 1,5 milhão de acre-pés de águas subterrâneas, o que equivale a 1,85 trilhão de litros. A água é armazenada no Kern Water Bank durante os períodos chuvosos e tinha como finalidade ser utilizada durante a seca das cidades da Califórnia e, de forma secundária, para o uso agrícola e industrial. Assim, o reservatório de água era, inicialmente, um bem público. E o conglomerado do casal Resnick, a The Wonderful, é – não por coincidência – a maior empresa agrícola do mundo, responsável pelo cultivo de laranjas, frutas e grãos que exigem muita água para o seu cultivo, como pistaches e amêndoas – clique aqui.
Em 1994, a empresa fechou o premiado acordo público-privado (“Monterey Plus Agreement”) e passou a controlar o reservatório de água para o seu império agrícola naquela conhecida árida região do país. O serviço público da água ficou em segundo plano.
Os Resnick: privatizaram a água da Califórnia em chamas |
É o modus operandi neoliberal. Outro exemplo: para as Olimpíadas de 2028 está sendo cogitado a árida cidade de Lemore sediar a competição de surf no paraíso de ondas artificiais conhecido por Surf Ranch, inaugurado em 2015. Uma região a 160 km ao norte de Los Angeles carente de água – mas com um paraíso para aqueles milionários e herdeiro que buscam as “ondas perfeitas” – clique aqui.
Se a extrema-direita culpa a agenda Woke DEI/ESG, a grande mídia faz uma operação linguística metonímica para ocultar a verdade: toma o todo pela parte – os incêndios de Los Angeles nada mais seriam do que uma amostra de uma crise climática global.
Ao invés de um desastre ambiental resultante do acumulado da gestão predatória neoliberal, torna-se, induzido pelas imagens carregadas de alusões aos filmes-catástrofe hollywoodianos, uma crise climática global.
Como diria o filósofo Mark Fisher, é o realismo capitalista que nos faz achar mais fácil pensar no fim do mundo do que no fim do Capitalismo.
Com informações do New York Times, CBS, CBC, Los Angeles Times, O Globo, Jornal GGN e New York Post