terça-feira, janeiro 21, 2025

Surrealismo, meditação e gnose em David Lynch



O surrealismo foi deixado para trás, lá no século XX, e hoje suas imagens viraram de pôsteres que decoram das casas de amantes da arte cult às psyOps publicitárias que fisgam o inconsciente do consumidores. Mas, em plena cena do chamado “cinema da meia-noite” dos anos 1970, David Lynch (que deixou esse mundo aos 78 anos no último dia 15) resgatou a essência incômoda do surrealismo: o cinema como instrumento para revelar como no cotidiano o psiquismo preenche aquele “gap” existente entre a alma e a realidade. Lynch foi o mestre em pegar histórias banais e transformá-las em labirintos obscuros de pistas falsas num mix de filme noir, gótico americano e humor negro. Em uma filmografia que surge o seu principal protagonista: o Detetive – no cotidiano banal que oculta o mundo dos sonhos (e pesadelos), somente o Detetive pode, através das imagens, resolver enigmas através da experiência de estranheza e alienação. Porém, no final, David Lynch descobre que nem o cinema é capaz disso, porque feito pela mesma lógica onírica – montagem, edição etc. Depois de desconstruir tudo, restou a ele o seu entusiasmo pela meditação transcendental: silenciar toda linguagem e a mente. E, quem sabe, encontrar a gnose.

Talvez o surrealismo tenha sido deixado para trás no século XX. Se na década de 1930, os surrealistas e dadaístas chocavam a sociedade do velho capitalismo fordista revendo em imagens os conteúdos proibidos dos sonhos, no pós-guerra tudo mudou. A publicidade, a sociedade de consumo e a indústria do entretenimento ironicamente realizaram a agenda vanguardista – transformaram a linguagem onírica dos sonhos em ferramenta mercadológica. 

Por exemplo, as imagens de Dalí mostraram como era possível colocar imagens do inconsciente em uma tela. Pois a Publicidade e Hollywood transformaram isso num negócio – diariamente vemos desejos, fantasias e imagens oníricas em filmes e vídeos publicitários. 

No entanto, ninguém foi capaz de trazer o surrealismo ao mundo contemporâneo com tanta arte como David Lynch. Desde a estreia com Eraserhead (1977) até o curta de 2016, What Did Jack Do? (um curta que retornou à estranheza de Erasearhead como um ciclo que se fechou) Lynch foi um diretor que entrou em mundos indescritíveis, que não podem ser entendidas através de palavras. E é por isso que é mais sensato simplesmente experimentar seus trabalhos e não os explicar.

Talvez por isso Lynch ter sido um forte adepto e divulgador da meditação transcendental – principalmente seus últimos trabalhos, desde Cidade dos Sonhos (2001), principalmente Império dos Sonhos (2006) passaram a ser exercícios de desconstrução da linguagem cinematográfica, lembrando os cut ups dadaístas e a escrita automática dos surrealistas – o exercício em registrar o que vem à mente, sem preocupação com a lógica ou o sentido racional.

Era como se Lynch quisesse ir para além da linguagem, porque os seus signos não conseguem descrever os mundos nos quais Lynch obsessivamente queria representar. Basicamente, a meditação é um exercício para silenciar a mente e a linguagem para buscar a transcendência.

E que mundos indescritíveis eram esses? Aqueles mundos entre a alma e a realidade, intervalos que são preenchidos pelo psiquismo humano – o imaginário, fantasias, desejos, ilusões e pesadelos.

Sabemos que Freud descobriu que o psiquismo era a interface entre a alma e a materialidade das funções corporais: alimento, excreção, reprodução e morte. A forma como a alma vivenciará e expressará essas experiências corporais será sempre por meio das fantasias, do desejo e dos simbolismos manifestos nos sonhos, atos falhos e neuroses. 

Do corpo para a realidade cotidiana, o psiquismo será uma espécie de “airbag emocional”, a racionalização diante das experiências sejam desagradáveis ou felizes – busca sentidos, propósitos, explicações, que sempre serão imaginárias: a religião, a ideologia, o sonho, os chistes, os atos falhos etc.


Surrealistas em Paris, 1930: Tristan Tzara, Paul Élouard, André Breton, Hans Arp,
Salvador Dalí, Yves Tanguy, Max Ernst, René Crevel, Man Ray



Se nos escritos de Freud tudo é abordado de forma intelectual e abstrata (esses mundos imaginários são descritos em termos de formações reativas e na linguagem onírica das condensações (metáforas) e deslocamentos (metonímias), nos dadaístas e surrealistas do início do século XX está a fantástica descoberta: podemos registrar tudo isso graficamente, através de imagens, telas, instalações, performances etc.

E o cinema faria parte disso. Pelo menos era o que pensavam teóricos do início do cinema como Eisenstein, Jean Epstein e Rudolf Arheim - acreditavam que o cinema deveria evitar a mera representação realista da realidade, seja através da montagem dialética (Eisenstein), como a percepção antecede a linguagem (Arheim) ou como o filme revela não a realidade, mas o surreal, o falso, o irreal. 

David Lynch e o “Cinema da Meia-Noite”

Surrealistas, dadaístas e cubistas foram os primeiros a defender o cinema como arte através da possibilidade do diretor modelar o mundo fílmico e enquadrá-lo dentro de uma ideia abstrata e se enveredar pelas imagens do psiquismo e do inconsciente. 



Tudo isso foi esquecido pela vitória do realismo cinematográfico hollywoodiano do pós-guerra: a essência do cinema residia em sua capacidade de reproduzir mecanicamente a realidade, não em sua diferença da realidade.

revival do surrealismo nos EUA só poderia mesmo ter emergido nos anos 1970, num momento de filmes esquizos (Um Estranho no Ninho ou Taxi Driver) e dos estranhos filmes que agitavam as sessões da meia-noite em Nova York de filmes estranhos como El Topo de Jodorowski ou Rock Horror Picture Show.

Nesse cenário surge Eraserhead, a estreia de David Lynch. Quando estreou em 1977 recebeu poucos comentários especializados e pobres bilheterias. Não fosse os esforços do distribuidor Ben Berenholtz em convencer proprietários de alguns cinemas de Nova York do circuito dos “Cinemas da Meia-Noite”, o filme não conquistaria a base de fãs leais que tornaria Eraserhead o mais famoso de todos os filmes cult. 

O filme foi uma verdadeira carta de intenções do diretor sobre a ideia principal que defenderia em toda a carreira: nossa relação com as percepções físicas da realidade é filtrada e simbolizada pelo psiquismo. Nunca vemos a realidade como ela é, mas a partir das nossas sensações de estranhamento e alienação em relação ao real.

Não são nossos olhos que enxergam o mundo, mas o psiquismo que faz a mediação entre a alma e o mundo. Lynch se interessava nesse estranhamento, nessa fricção entre a alma e o mundo e como o psiquismo expressava isso. Caberia ao cinema, assim como os surrealistas e dadaístas pretendiam, através das imagens, representar esses mundos estranhos.

Blue Velvet (1987) é um bom exemplo. Tudo começa com uma orelha encontrada na grama de um parque público. A câmera mergulha na cavidade auricular para conhecermos um submundo ocultado pela superfície das cercas cuidadosamente pintadas e flores da frente das casas em tons pasteis – um submundo para além das aparências da normalidade, envolvendo o drug-dealler Frank (Denis Hopper) que aspirava através de uma máscara nitirito de amila para ter prazer sexual e uma galeria de personagens violentos e caricatos.




O Detetive e a paranoia

Nada é estável, tudo é aparência e miragem. Como a cantora de cabaré Dorothy Vallens (Isabella Rosellini), o fio de Ariadne de paixão e culpa que o conduz ao submundo do alucinado vilão Jack.

A atmosfera é neo-noir, de onde emerge o protagonista Jeffrey (Kyle McLachler), o proto-detetive que mais tarde retornaria como o agente especial do FBI Dale Cooper, na série Twin Peaks (1990-91).

O Detetive (no sentido literal e metafórico) é um protagonista recorrente em David Lynch. Mais do que um personagem, mas como um verdadeiro arquétipo contemporâneo – aquele que transforma a sensação de estranhamento e alienação com o mundo (marca constante dos protagonistas lynchanos) como um mistério que precisa ser desvendado. Começa a suspeitar que os objetos ao seu redor são ilusórios, precisando, portanto, discernir entre o realismo das percepções e a insanidade dos sonhos e alucinações. São personagens que vivem sempre numa espécie de limbo, correndo o risco de cair de um lado ou para outro.



Em Lynch a paranoia é um elemento chave do universo de Lynch, como chave de iluminação espiritual. Seus protagonistas estão sempre perdidos em labirintos obscuros, emaranhados de falsas pistas, traições, mulheres fatais capazes de usar a própria sensualidade para destruir a vida dos homens – como o drama do macaquinho Jack (What Did Jack Do?), suspeito de assassinato, enlouquecido pelos “seios fartos por baixo das penas” da galinha Toototabon.

Cinema e meditação transcendental

Porém, David Lynch sempre foi inquieto. Essa relação de alienação e estranhamento não tardaria a se voltar contra o veículo que transforma os fenômenos do psiquismo em imagem: o próprio dispositivo cinematográfico.

Tudo começa com Cidade dos Sonhos, o mergulho psicanalítico nos sonhos de uma jovem atriz que chega na terra de Hollywood, Los Angeles – um tour de force no emaranhado da narrativa onírica na cidade onde os sonhos são fabricados no cinema, entretenimento e audiovisual.

Para Lynch, uma narrativa onírica somente poderia ser concebida na cidade da indústria dos sonhos, que se apropriou da grande descoberta dos surrealistas para transformar em um negócio mercadológico.

Mas é em Império dos Sonhos que Lynch chega à desconstrução total do dispositivo cinematográfico - mais de três horas de sequências aleatórias para descobrirmos que estamos naquilo que em cinema chama-se “narrativa em abismo” (assistimos a um filme que mostra outro filme sendo construído): todas as sequências fragmentadas, obscuras e caóticas nada mais eram do que um filme não editado, porque seu realizador morreu, vítima de uma maldição...



Tanto em Império dos Sonhos quanto em What Did Jack Do?, David Lynch aplica a lógica onírica na própria linguagem cinematográfica: jogo, aleatoriedade e ironia em linhas de diálogo caoticamente desarticuladas como se tivessem sido elaboradas pelo processo criativo de cut-up (“recorte”) baseado na crença dadaísta da aleatoriedade – se você colocar três ou quatro ideias desassociadas juntas, podem ser criadas estranhas relações significativas entre elas. Uma “inteligência inconsciente” surge desses pareamentos, gerando ideias e associações provocativas.

Para David Lynch, o enigma do psiquismo permanece, porque o próprio veículo que seria o instrumento para desvendar o segredo dos sonhos (as imagens e o cinema) é, ele próprio, filmado, editado e montado a partir da mesma lógica onírica – para Lynch, definitivamente, é impossível um olhar de fora, externo, objetivo, isto é, racional, científico.

Por isso, nada é banal para o cineasta. O que marca a sua obra é a sua capacidade de pegar argumentos tão banais, como em Eraserhead (uma garota engravida e convida seu namorado para apresentá-lo aos seus pais), para entrar em zonas de penumbra, revelando o surreal e o fantástico sob a banalidade cotidiana.

Não é por menos a sua adesão à meditação transcendental desde 1977, no set de filmagem de Eraserhead, chegando a criar a “David Lynch Foundation” que visa disseminar a técnica milenar do guru indiano Mahesh Yogi.

É como se David Lynch dissesse aos seus fãs: esqueça de tentar encontrar um propósito ou um sentido nos filmes. Pois tudo o que encontrará é a experiência gnóstica de estranhamento e alienação. Nem a decodificação freudiana dos sonhos e muito menos transpor os mundos oníricos para as imagens solucionam o enigma. 

Porque tudo é prisioneiro da linguagem, da razão e do ego. Apenas através da meditação poderemos silenciar a mente e a linguagem. E ascendermos à gnose, para escapar da matrix desse mundo.

Que David Lynch tenha a encontrado após a morte.

 

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