quinta-feira, junho 24, 2021

Walter Benjamin e os documentos da barbárie no filme 'Sound of Violence"


Apenas um mash-up da franquia “Jogos Mortais” com “Psicopata Americano”? A co-produção EUA/Finlândia, “Sound of Violence” (2021) vai mais além de um mero slasher movie. É uma curiosa experiência audiovisual na qual a protagonista experimenta as sensações da sinestesia extática ao ouvir um certo tipo de som: uma explosão de cores e prazer originados dos sons da violência. Um projeto de arte sônica radical, cuja “instrumentação” são gritos e golpes. Sob a aparência de uma pesquisa acadêmica, cria-se uma esteira de vítimas cujos sons da violência serão remixados e editados numa composição eletrônica literalmente “matadora”. Se o filósofo alemão Walter Benjamin dizia que todo monumento da cultura é um monumento da barbárie, “Sound of Violence” retoma essa tese da forma mais assustadora possível.

Na sua obra-prima de 1995, o álbum “Outside”, David Bowie propôs o conceito de assassinato como obra de arte. No encarte do disco, Bowie apresenta seu conto “The diary of Nathan Adler or the art-ritual murder of Baby Grace Blue: A non-linear Gothic Drama Hyper-cycle” no qual descreve uma distopia que se passa em 1999. Um governo totalitário cria uma comissão para investigar o fenômeno do “Art Crime”: assassinato e mutilações se tornaram a nova sensação da arte underground.

Seu protagonista, Nathan Adler, teria que decidir o que nesse tipo de manifestação estética seria “arte legítima” e o que deveria ser considerado simplesmente lixo.

Muitas décadas antes, essa aproximação de conceitos aparentemente antitéticos (arte e violência) já havia sido tematizada pelo filósofo alemão Walter Benjamin com a sua célebre frase nas suas “Teses sobre Filosofia da História”: “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie; e, assim como a cultura não é isenta da barbárie, não é, tampouco, o processo de transmissão da cultura”.

Com isso, Benjamin queria dizer que a história oficial traz em sua imanência uma violência neutralizada e tenta esconder, através de produtos culturais (arte, estética), a perversidade dos sistemas políticos. Com isso, Benjamin se contrapunha à noção histórica positivista e evolutiva como progresso ou acumulação de conhecimentos para o benefício de toda espécie humana.

O primeiro longa do diretor e escritor finlandês Alex Noyer, o filme Sound of Violence (2021), mais uma vez aproxima as noções de arte e violência. Mas dessa vez, não no sentido dado por Bowie e Benjamin numa conexão direta entre violência política e cultura. Em Sound of Violence essa conexão é colocada como causalidade de fundo. Noyer está interessado em tematizar como a música se transforma em violência e assassinato em música através do estudo psicológico de uma protagonista.



Fazendo o filme se transformar num filme de terror sobrenatural sangrento, porém indo muito além da estética gore tradicional, uma espécie de “sonic slasher”: como o sofrimento humano desencadeia na protagonista uma sinestesia extática (percepção audiovisual alterada por estados extáticos e hipnóticos) que será o gatilho para uma série de assassinatos.

No filme acompanhamos uma compositora de “raid art” (arte radical) tentando criar uma peça de arte sônica a partir da sua condição na qual experimenta os sons da dor humana como uma gloriosa explosão estelar de cores e prazer – e para ela, não importa o número crescente de corpos necessários para sua “instrumentação”.

Dessa maneira, Sound of Violence começa a explorar caminhos estranhos numa espécie de bizarro mix entre a franquia Jogos Mortais e Psicopata Americano.




O Filme

O filme começa em 2002 onde vemos Alexis aos 10 anos (Kamia Benge), que perdeu a audição em um acidente, vivendo uma relação tensa da sua mãe e o irmão com o seu pai, um veterano de guerra que vive uma Perturbação de Estresse Pós-traumático (PSPT) – retornou da guerra e, desde então, vive uma condição bipolar entre depressão e agressividade.

Alexis testemunha seu pai matando sua mãe com um cutelo. Em meio à cena do assassinato, Alexis retorna da cozinha com um martelo amaciante de carne e bate na cabeça do pai. Nesse momento, a audição da menina retorna, numa explosão sinestésica extática - uma explosão de cores, sons e prazer. 

Avançamos 18 anos e encontramos Alexis (Jasmin Savoy Brown) como uma jovem aparentemente bem ajustada – é um músico experimental, DJ e professora em uma escola de música em uma universidade. Ela mora com sua colega de quarto Marie (Lili Simons) e ainda mantém um motor home com um monte de lembranças da sua infância junto com inúmeros equipamentos de música e engenharia de som.

Nas horas vagas, segue na realização do seu projeto de arte sônica: faz gravações não convencionais de crianças brigando e sessões de um casal sadomasoquista, sempre perseguindo aquele áudio que lhe traga a explosão sinestésica de cores e prazer. Na aparência, ela tenta criar uma forma de música eletrônica pesada industrial, cuja instrumentação é constituída de batidas e gritos.




A sensação que Alexis está perseguindo não é exatamente clara: não é sexual, mas quando ela consegue o som que ela sente que precisa, Alexis é envolvida com luzes e cores pulsando em seu ritmo, a emoção em seu rosto registrando-se como puro êxtase. 

Após o início “leve” gravando sons de chicotes e gritos de uma dominatrix, Alexis começa a partir para dispositivos mais bem elaborados e sombrios: por exemplo, coloca um morador de rua em uma engenhoca conectada a um processador de som e bateria eletrônica e, ao tocá-la, a vítima é atingida por martelos e esfaqueada por facas. Ela grava esses sons e depois os usa em sua música. Para ouvir em seu Ipod e ter o êxtase sinestésico.

Mas Alexis enfrenta dois problemas que apenas retroalimenta toda a loucura: ela precisará provocar sofrimentos cada vez mais extremos para sentir o êxtase, que obviamente tem uma qualidade não só alucinante, mas principalmente viciante – como qualquer adito, precisará de doses cada vez mais elevadas. Mas também ela tem pressa: sente que está prestes a perder a audição novamente e acredita que se encontrar a experiência sonora perfeita poderá se curar.

Porém, na esteira de mortes chocantes e tecnicamente bem elaboradas vem uma perspicaz investigadora da polícia que segue os instrumentos de captação sonora deixados por Alexis nas cenas dos crimes.



Além de suas mortes terríveis, em Sound of Violence há abundância de riqueza temática: primeiro, a situação de Alexis que poderia ser interpretada como uma espécie de pacto com o diabo pelo qual ela reconquistou o mundo de som, mas deve perder sua própria alma em sua perseguição depois disso. 

Mas, principalmente, a corrente de causa e efeito de violências - da guerra que provocou o PSPT no pai que levou a violência bélica para o lar e que foi o drive criativo da arte sônica de Alexis. A música eletrônica de Alexis se assemelha bastante ao som eletrônico pesado e industrial de bandas como a alemã “Einstürzende Neubauten”.

Da grandiosidade estética da música clássica até a arte radical como a música eletrônica industrial, encontramos a tese de Walter Benjamin da cultura como documento de barbárie – se os Estados absolutistas produziram a música clássica, a exploração maquínica da mais-valia pela revolução industrial geral a batida eletrônica.

A certa altura, Alexi declara numa das suas aulas que “cada beat não vem apenas dos instrumentos, conta uma história”. Nada mais benjaminiano.

Tanto o conto de David Bowie sobre a distopia estética de Nathan Adler quanto o filme Sound of Violence são experiências artísticas sem redenção: nas condições atuais de organização de produção da desigualdade e violência, a arte perde a capacidade de transcender a realidade circundante da qual ela surge.


 

Ficha Técnica 

Título: Sound of Violence

Diretor: Alex Noyer

Roteiro: Alex Noyer

Elenco: Jasmin Savoy Brown, Lili Simmons, James Jagger, Tessa Munro

Produção: You Know Films, No-Office

Distribuição:  Gravitas Ventures

Ano: 2021

País: EUA/Finlândia

 

 

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