sábado, fevereiro 04, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Nibiru, Planeta X, Calendário Maia, Hercólobus, Marduk, planeta “Chupão” etc. Em uma época de filmes que vão na esteira dessa onda dos mais variados cenários apocalípticos para esse ano, o premiado filme independente "Another Earth" (2011) é um contraponto e ao mesmo tempo um sopro de renovação dentro do gênero sci fi: a proximidade de um estranho corpo celeste na órbita da Terra não promete catástrofes que representem punições morais e nem universos paralelos onde encontraremos mundos alternativos. O mergulho no cosmos não significa encontrar novos mundos ou civilizações, mas um problemático encontro com nós mesmos através de um espelho.
Nibiru, Planeta X, Calendário Maia, Hercólobus, Marduk,
planeta “Chupão” etc. Toda essa série de profecias do fim do mundo tem muito
mais a dizer sobre o sintoma da sensibilidade coletiva atual do que sobre um
fato astronômico concreto. O filme independente “Another Earth” (conquistou
dois prêmios no festival de Sundance), ao lado do “Melancolia” de Lars Von
Trier, é o que mais expressa esse significado por trás dessa onda de apocalipses
previstos para esse ano.
Há uma característica comum na série de filmes-catástrofe
sobre o fim do mundo que nos vem preparando para o apocalipse final (“2012”, “Armagedon”,
“O Dia Depois de Amanhã”, “Impacto Profundo”, “Presságio” etc.): todos eles
recorrem ao recurso metonímico de deslocar o foco das catástrofes para um drama
pessoal familiar ou afetivo para arrancar identificação do espectador. Mostrar
cataclismas em escala global não tem graça se deixar de mostrar também
protagonistas que tentam juntar os cacos emocionais e afetivos enquanto se
esforçam para salvar o planeta.
Mas o filme “Another Earth” não vai por esse roteiro clichê.
A proximidade de outro planeta da Terra não produz catástrofes, ameaças ou
desespero, mas mistérios, questionamentos científicos, metafísicos e íntimos.
A narrativa começa mostrando Rhoda William (Brit Marling,
co-autora do roteiro) recebendo a notícia de que fora aceita no MIT (Massachusetts
Institute of Technology) dentro do programa de Astrofísica. Ela é uma jovem
brilhante e fascinada por explorar o cosmos. Após uma noite de comemoração com
bebidas e música com os amigos dirige seu carro de volta para casa quando,
através do rádio, ouve notícias sobre um misterioso corpo celeste que se
aproxima da Terra, agora visível a olho nu como um ponto azulado no céu.
Com os
olhos voltados para o pequeno ponto não percebe um outro carro parado à sua
frente. O acidente deixa em coma o compositor John Burroughs (William Mapother)
e mata sua esposa grávida e o filho.
Após quatro anos na prisão, Rhoda é libertada e descobre que
esse outro planeta está muito maior no céu, azul e brilhante. Na verdade sua
aparência é idêntica ao nosso planeta, como uma versão espelhada da Terra.
Atormentada pela culpa e pela chance perdida na sua vida de
realizar o grande sonho (astrofísica), Rhoda descobre que John Burroughs vive
recluso na sua casa, deprimido e cercado de lixo e garrafas de bebidas. Rhoda vai
buscar de alguma maneira formas para se redimir da tragédia. O único emprego
possível que ela encontra para uma ex-presidiária é de serviços de limpeza em
uma escola local: altamente simbólico, pois passa o tempo limpando pixações na
escola da localidade (e depois oferecendo os serviços de limpeza ao próprio
John) como se tentasse limpar as tragédias do passado.
Aqui, o roteiro escrito por Marling e pelo diretor Mike
Cahill encontra-se com três grandes mitos do cinema: a viagem espacial, a busca
de uma segunda chance e o retorno para casa. Se o planeta “Terra 2” (é assim
que todos começam a chamar o estranho planeta) é um espelho do nosso, será que
lá viveriam nossas duplicatas, nossos outros Eus? Eles seriam melhores ou pior
que nós? Será que eles não tomaram decisões melhores do que as nossas aqui na
“Terra 1”?
A certa altura da narrativa uma empresa divulga um concurso
em que o vencedor ganhará uma viagem à Terra 2: a melhor redação sobre o tema
“por que quero ir para Terra 2?” ganhará a passagem. Rodha se inscreve ao
vislumbrar a possibilidade da redenção através de uma segunda chance ao encontrar
o outro Eu, talvez melhor e que não tivesse cometido os mesmos erros.
Simbolicamente é como um retorno para casa: ela sente-se como uma estrangeira
dentro da sua própria família, cidade e planeta.
Um sci fi gnóstico
Uma narração em off
com uma entonação de guru da ciência oferece ao espectador o pressuposto
inovador do roteiro de “Another Earth”:
“Os biólogos têm investigado coisas cada vez menores. E os
astrônomos coisas cada vez mais distantes. Mas, talvez o mais misterioso de
tudo não é o menor e o grande. Somos nós, bem aqui. Poderíamos nos reconhecer?
E se reconhecêssemos conheceríamos a nós mesmos? O que diríamos a nós mesmos? O
que aprenderíamos com nós mesmos? E se pudéssemos ficar diante de nós e olhar
para nós mesmos?”
Na verdade o pressuposto sci
fi da proximidade de um corpo celeste é apenas um gancho ou o pano de fundo
para um tema que se aproxima da mística gnóstica: sentimos-nos como exilados
entre o infinitamente pequeno e o grande. A única forma de retornarmos “para
casa” e através de um encontro consigo mesmo para encontrarmos dentro de nós a
fagulha de Luz (ou o Divino) que nos faça transcender desse mundo.
Portanto “Another Earth” rompe com um pressuposto religioso
conservador onde corpos celestes que se aproximam da Terra são como punições
divinas ou do próprio cosmos contra as mazelas humanas: pais ausentes (“O Dias
Depois de Amanhã”), governos corruptos (“2012”), família desfeita e alcoolismo
(“Presságio”) etc. Ao contrário, o roteiro de Marling e Cahill inverte o
argumento tradicional ao retratar o fenômeno astronômico como uma possibilidade
de redenção para a humanidade.
A Realidade em um
Espelho
Para reforçar ainda mais sua inspiração gnóstica, a narração
introduz uma dúvida perturbadora para os personagens e para o próprio
espectador: seríamos nós projeções imaginárias da “Terra 2”? Será que ainda
somos o centro do Universo? E se nesse outro mundo eles nos chamassem de Terra
2? Se estamos na presença de um espelho da Terra, quem é o reflexo e o
refletido? A certa altura John Borroughs associa o fenômeno astronômico com a
alegoria da Caverna de Platão, ou seja, a Terra 1 como uma caverna e Terra 2
como a Realidade.
“Another Earth” em muitos momentos lança essas dúvidas para
o espectador, embora o roteiro não se interesse em aprofundá-las. Na verdade, a
preocupação do filme é explorar a reflexão íntima com a possibilidade de descobrirmos
duplicatas de nós mesmos.
Mas a fotografia e o trabalho com a câmera propositalmente
cria essa atmosfera de instabilidade da realidade: uma câmera de ombro digital
com insistentes zoom in e zoom out bem rápidos, fotografia com
cores estouradas e enquadramentos desfocados e assimétricos.
Ao privilegiar o
mergulho íntimo dos personagens, mesmo diante de um evento cósmico sem
precedentes, “Another Earth” encontra um viés alternativo dentro do gênero:
evita o catastrofismo como punição moral e o recorrente argumento do “universo
paralelo”. Terra 2 é muito mais do que isso. Como uma espécie de espelho
íntimo, lembra muito o argumento de ficção científica de filmes como o soturno
e enigmático “Solaris” (1972) de Tarkovsky onde o mar de um estranho planeta
tinha a propriedade de recriar a memória dos humanos fazendo os tripulantes de
uma nave se defrontar consigo mesmos. Isso
podia levar à loucura e suicídio.
O mergulho no cosmos não significa encontrar
novos mundos ou civilizações, mas um problemático encontro com nós mesmos.
Ficha Técnica
Título: Another Earth
Direção:
Mike Cahill
Roteiro:
Brit Marling e Mike Cahill
Elenco:
Brit Marling, William Mapother, Matthew-Lee
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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