quarta-feira, outubro 07, 2020

"Rent-a-Pal": a manipulação psicológica através do 'Efeito Forer' na era da solidão midiática


O diretor e roteirista Jon Stevenson encontrou um vídeo VHS de 1987 chamado “Rent-a-Friend” (“Alugue um Amigo”) cujo conceito era insólito: você apenas alugaria um amigo. Levaria a fita para casa e falaria com um personagem na fita. Era uma conversa unilateral, mas para os anos 80 era interativa. Isso inspirou o filme “Rent-a-Pal” (2020), passado em 1990 no auge do videocassete e das videolocadoras. Mas que discute o tema atual da solidão e incomunicabilidade em plena Era da Informação: David passa dias solitários cuidando de uma mãe idosa e que sofre de demência, enquanto procura uma garota em uma espécie de Tinder em VHS. Até que encontra na videolocadora a fita “Rent-a-Pal”, cujos “diálogos” começam a plantar sementes de amargura e ressentimento na mente de David, criando a dinâmica do ódio que alimenta grupos atuais como os “Incels” (celibatários involuntários) da Deep Web – matéria-prima do atual protofascismo que dá energia à extrema-direita. Técnica psicológica de manipulação chamada “Efeito Forer”. Uma eficiente técnica de “validação subjetiva”, largamente usada por astrólogos, videntes e coaches motivacionais.

Muito mais do que provocar a solidão, os meios de comunicação se tornaram verdadeiras próteses para a incomunicabilidade e insociabilidade humanas. O tema não é novo tanto nas teorias da comunicação como no cinema – Denise Está Chamando (1995), O Rei da Comédia (1982), Zelig (1983), A Rede Social (2010), Disconnect(2012), Bird People (2015), Don’t f**k With Cats (2019) entre outros são exemplos da abordagem fílmica da solidão e incomunicabilidade em plena Era da Informação. 

Como próteses, os meios de comunicação se tornaram ao longo do século passado substitutivos da sociabilidade perdida nas grandes metrópoles. E no século XXI, dispositivos móveis e redes sociais parecem ter aprofundado esse fenômeno paradoxal (como podem andar juntas comunicação, solidão e incomunicabilidade?), ao criar mídias ainda mais invasivas e pervasivas.

Em 2014 um trágico evento revelou uma faceta mais sombria dessa tendência. Na cidade de Toronto, um jovem propositalmente atropelou e matou dez pessoas em uma movimentada rua. Minutos antes, ele publicou nas redes sociais: "Soldado (recruta) Infantaria Minassian 00010, deseja falar com sargento 4chan, por favor. C23249161. A rebelião incel já começou! Nós vamos derrubar todos os Chads e Stacys! Saudações ao Senhor Supremo Elliot Rodger".

Uma mensagem críptica, que revelava a ativa participação do assassino em fóruns dos chamados “Incels” (grupo dos “celibatários involuntários” que culpam mulheres, “Stacys”, e homens sexualmente ativos, “Chad”, por não conseguirem ter relações sexuais). Além da referência a Elliot Rodger, estudante universitário que matou seis e feriu 13 pessoas perto da Universidade da Califórnia também em 2014. Rodger usou o termo “incel” em mensagens online para justificar seus atos de fúria contra as mulheres por rejeitá-lo.

Rent-a-Pal (2020), do diretor e escritos Jon Stevenson é um filme que mergulha fundo na dinâmica da construção dessa solidão e desespero de uma geração que já foi definida como NEET (Not currently engaged in Employment, Education or Training) – jovens sem emprego, estágio ou que simplesmente não estudam. Um preocupante e crescente fenômeno social que aqui no Brasil chamam-se os “nem-nem”, que já compõe um quarto da população de jovens na faixa de 15 a 29 anos.


É um filme que trata de uma questão atual, porém, numa perspectiva vintage: toda ação ocorre em 1990, em plena era de ouro da cultura analógica e tátil do VHS, dos videocassetes e videolocadoras – a Era “home vídeo”.

Tudo começou quando Stevenson encontrou um VHS de 1987 chamado “Rent-a-Friend” (“Alugue um Amigo”). Stevenson passava por um momento pessoal de depressão e ansiedade quando conheceu o conceito daquele antigo vídeo: 

“Um conceito incrível dos anos 80 de um cara chamado Ben Hollis cuja ideia era de que você apenas alugasse um amigo. Você apenas traria uma fita VHS para casa e falaria com esse cara na fita. Era uma conversa unilateral, mas para os anos 80 era interativa. Eu nunca vou esquecer, por causa do que estava passando na vida naquele momento. Tive que captura isso em um filme. Comecei a escrever “Rent-a-Pal”. Então, comecei a perceber que o filme não era sobre a fita, mas sobre um homem muito vulnerável sendo conduzido por um caminho sombrio por alguém que era mau e manipulador, e com resultados desastrosos”.



O Filme

Brian Landis Folkins é David, que vive em uma casa pequena com sua mãe idosa que sofre de demência. David passa os dias cuidando de cada necessidade dela, por mais que ela o confunda com seu marido falecido chamado Frank. Depois de exercer suas funções de cuidador, David se instala no porão onde mora para assistir às últimas fitas que ele comprou em um serviço de namoro por vídeo – uma espécie de Tinder analógico:  mulheres gravaram mensagens breves, mas envolventes, sobre elas mesmas e o que procuram em um homem.

Uma cena do primeiro ato é marcante, para definir a miséria emocional de David: quando liga para Diana, a recepcionista do serviço de namoro, para ver se alguma mulher está interessada nele (nenhuma estava interessada).  Quando ela atendeu, ele simplesmente disse “Oi, é David. Eu estava me perguntando ... ” como se a mulher do outro lado da linha já estivesse familiarizada com ele. Ela o interrompe para pedir seu número de identificação de cliente. Um pequeno, mas significativo, ato que machuca o já frágil autoestima de David.

Na videolocadora David encontra em uma caixa de ofertas um VHS chamado "Rent-A-Pal": um vídeo de alguém chamado Andy (Wil Wheaton, em uma performance deliciosamente sinistra) que mantém uma conversa aparentemente unilateral de tela, respondendo e solicitando uma conversa da qual ele possivelmente não pode estar a par, porque está tudo pré-gravado. Ou ele pode? 

David fica cético no início, mas depois de mais uma frustração no serviço de encontros começa a se envolver com Andy como se estivesse realmente conversando. Certamente é assustador a maneira como David e Andy começam a interagir. Em uma época antes da internet, telefones celulares ou videoconferências, qual é o problema de um solitário de meia-idade conseguir alguma socialização por meio de uma fita VHS? O “relacionamento” deles logo se torna a parte mais esperada nos dias vazios de David, compartilhando histórias com Andy e jogando um jogo de baralhos chamado “Go Fish”.

Quando David finalmente encontra seu par romântico (Lisa, performada por Amy Rutledge, também uma cuidadora que compreende o drama de David), começa a imaginar que o seu amigo do VHS não aprova a nova relação. Pior: parece se sentir traído, achando que somente a amizade entre eles bastaria. 

É quase imperceptível, mas com o tempo Andy vem plantando sementes de amargura e frustração na psique de David. Logo David começa a agir de forma agressiva contra sua mãe e não responde aos telefonemas de Lisa. 



No terceiro ato do filme, ele está completamente perdido e a amizade virtual de Andy profundamente enraizado nele, enquanto as mulheres de sua vida se tornam para ele as responsáveis pela sua miséria emocional e vítimas de sua agressão. 

Rent-a-Pal faz uma importante opção pela estética vintage dos tempos do videocassete: Stevenson parece quer mostrar essa natureza protética dos meios de comunicação: o fenômeno de insociabilidade atual dos “incels” é apenas mais uma roupagem de uma questão mais profunda – a incomunicabilidade das relações humanas e como os meios de comunicação aparecem na História como lucrativas próteses para esse problema. A forma como os media criam a ilusão de mitigar ou solucionar a questão. Ou pior: criar a ilusão de comunicação num amplo deserto de incomunicabilidade.

Efeito Forer

O grande enigma para o espectador é o diálogo pré-gravado do amigo-fantasma Andy: ele está realmente dialogando ou tudo vem da imaginação de David? Certamente, na sequência final o diálogo com a fita “Rent-a-Pal” é nitidamente imaginária.




Porém, na maior parte do filme assistimos a uma técnica real de manipulação largamente utilizada por clarividentes, leitores da mente, astrólogos e coaching motivacionais: o “Efeito Forer”. 

O psicólogo americano Bertrand R. Forer (1914-2000) comprovou como a chamada “técnica de validação subjetiva” é uma falácia eficiente. As pessoas julgam exageradamente corretas as avaliações de suas personalidades que, supostamente, são feitas exclusivamente para elas, mas que na verdade são vagas e genéricas (no filme, um roteiro em uma fita VHS pré-gravada) o bastante para se aplicarem a uma grande quantidade de pessoas. Este efeito explica parcialmente a grande aceitação obtida por certas crenças e práticas como astrologia, eneagrama e alguns tipos de testes de personalidade e outras hipóteses que não sobrevivem a rigorosa análise científica.

Segundo Forer, esse é o roteiro padrão de uma avaliação vaga e genérica na qual a maioria das pessoas, como David, facilmente se encaixam. Criando uma ilusão de validação e interação:

“Você tem uma necessidade de que outras pessoas gostem a admirem você. Apesar dos pontos fracos de sua personalidade, você tem a habilidade de superá-las. Você tem uma admirável capacidade de usá-las a seu favor. Aparentemente disciplinado e autocontrolado, você tende a se tornar preocupado e inseguro. Muitas vezes tem sérias dúvidas sobre se a decisão que tomou foi a coisa certa. Você sempre preferiu uma variedade de opções e possibilidades de mudanças e tende a se tornar insatisfeito a serem impostas limitações e restrições. Você sente-se orgulhos por pensar de forma independente e não aceita outras opiniões sem as necessárias provas de que sejam corretas. Muitas vezes se acha imprudente pela franqueza em revelar a si mesmo para os outros. Às vezes é afável, extrovertido e sociável, enquanto em outros momentos tende à introversão, cautela e reserva. Em alguns momentos, suas aspirações tendem ao irrealismo” (HOWARD, Martin We Kow What You Want, New York: Desinformation, 2005, p. 49).

Se o leitor observar, é exatamente esse o roteiro manipulativo do amigo-fantasma Andy: um roteiro fixo, genérico, dentro do qual a maioria pode se encaixar. Isto é, na medida em que a baixa autoestima e carência criem a vulnerabilidade psicológica necessária para se instaurar o Efeito Forer.

Assim David começa a achar que pode falar com essa pessoa, que as reações do vídeo estão em sincronia com o que ele está dizendo. O VHS “Rent-A-Pal” se torna uma verdadeira conexão para ele. Sentado sozinho, com uma xícara de uísque na mão, ele responde às perguntas de Andy sobre seus pais e sobre sua vida pessoal. Dessa forma, começa a fluir da “interação” (na verdade um monólogo) entre David e Amy a misoginia e a raiva generalizada – a amizade masculina se basta e que não é necessário mais ninguém. Especialmente depois que Andy conta uma história sobre ser humilhado por uma mulher, David passa a ser todo ouvidos. 

Sentado no porão da casa da sua mãe, com sua TV fornecendo a única luz, David se perde cada vez mais.

Essa é a situação prototípica dos tempos atuais cuja tradução política está em andamento: protofascismo e o recrutamento desses seres solitários (cuja isca é ódio e ressentimento) pelas mobilizações de extrema-direita. 


  

         

Ficha Técnica 

Título: Rent-a-Pal

Diretor: Jon Stevenson

Roteiro: Jon Stevenson

Elenco: Wil Wheaton, Brian Landis Folkins, Amy Rutledge

Produção: Pretty People Pictures

Distribuição:  IFC Midnight

Ano: 2020

País: EUA

 

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