quarta-feira, abril 25, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
O filme mais
injustiçado da carreira do diretor Martin Scorsese, “O Rei da Comédia” (The
King of Comedy, 1983) na época foi um fracasso de bilheteria. Ao contrário da sexualidade e violência de personagens dos filmes anteriores “Taxi Driver” e “Touro Indomável”, o diretor
apresentou ao público um Robert De Niro contido e o comediante Jerry Lewis
enfadado e amargo. Scorsese mergulha fundo na cultura da celebridade
contemporânea ao nos mostrar um fã que vive até o extremo a fantasia de
tornar-se um astro da TV. Como? Sequestrando o próprio ídolo. À frente do seu
tempo, Scorsese antecipa o atual interesse mórbido pelas celebridades onde elas
são mais invejadas do que admiradas. E por trás da inveja escondem-se a solidão
e o ressentimento.
O solitário
é aquele que tem tempo de sobra para pensar em sua total insatisfação, o
infeliz é aquele que jamais terá essa oportunidade. (Alfred
Adler)
Para ser feliz, é preciso ser conhecido? Em um mundo atual
onde o número de “seguidores” no twitter ou de “amigos” no facebook cada vez
mais se torna a medida da própria identidade do indivíduo, parece que sim. Essa
medida de felicidade se insere na chamada “cultura da celebridade” onde a vida
real acabou misturando-se com categorias do entretenimento como a “fama”,
“sucesso”, “desportividade”, “passatempo”, “escapismo” etc.
E a busca dessa celebrização de si mesmo implica em um novo
ascetismo, dessa vez mundano: esforço diário em cultivar uma rede de “amigos”, esforços
logísticos em criar acontecimentos que atraiam a atenção de todos (e se
possível da própria mídia), dedicação e esforço em focar seu pensamento ao
sucesso, capacidade em desprezar fatos reais que entrem em contradição com a
imagem que o indivíduo quer criar para todos etc. Tudo isso cria uma luta
brutal contra si mesmo, em negar a própria solidão e insatisfação através da
hiperatividade voltada ao mundo exterior.
O diretor Martin Scorsese vai a fundo nessa espécie de
psicologia da moderna cultura da celebridade em “O Rei da Comédia” (The King of
Comedy, 1983), um filme árido e doloroso ao representar tão bem a miséria
interior de um protagonista que faz de tudo para alcançar a celebridade para
escapar de uma vida vazia e infeliz. Depois de Scorsese apresentar personagens
repletos de violência e sexualidade nos filmes anteriores “Taxi Driver” (1976)
e “Touro Indomável” (1980), em “O Rei da Comédia” vemos personagens agonizando
na solidão e raiva, porém, contidos e emocionalmente estéreis. O diretor
conseguiu arrancar performances contidas e sutis de um comediante (Jerry Lewis)
e um ator (Robert De Niro) que, até então, notabilizaram-se por representar
personagens urgentes e intensos.
Embora repleto de diálogos afiados por um sutil humor negro,
“O Rei da Comédia” foi um fracasso de bilheteria e o trabalho mais injustiçado
da carreira de Scorsese o que pode ser considerado um exemplo clássico de um
filme que estava à frente do seu tempo.
Robert De Niro é Rupert Pupkin, uma espécie de sociopata
limítrofe trintão que vive a fantasia de se tornar um comediante estrela de TV.
Diariamente ele encena um fictício talk show no porão da sua casa com figuras
de papelão em tamanho real de Liza Minelli e Jerry Lewis, com quem conversa com
a maior intimidade. Pupkin faz parte da um submundo de solitários
caça-autógrafos de celebridades em Nova York que diariamente se acotovelam na
saída do estúdio de TV de onde é transmitido em rede nacional o talk show de
Jerry Langford (Jerry Lewis) disputando a tapas autógrafos dos convidados e do
próprio apresentador do programa.
Pupkin acredita ser um comediante nato e que só precisa de
uma chance. Quer uma oportunidade no talk show de Langford e fazer um número
stand up. O problema é que ele não tem a menor experiência, o que o
desqualifica para participar de um programa em rede. Polidamente Langford o
rejeita, aconselha que tem que começar de baixo, que um show stand up requer anos
de trabalho e aprimoramento etc. Mas Pupkin tem delírios de grandeza onde
imagina-se como “o rei da comédia” com uma mansão em Malibu onde, do alto da
janela, grita para os “perdedores” que passam abaixo: “tentem na próxima”.
Como um autista, Pupkin esforça-se em negar a realidade:
mora na casa da sua mãe, a candidata a sua rainha é uma garçonete (Rita) em um
bar perdido em Nova York, Jerry Langford não quer vê-lo nem pintado de ouro,
ele é apenas mais um caça-autógrafos entre centenas, além do fato de não ter o
menor talento (seu repertório é formado por piadas perturbadoras, baseadas
unicamente em auto-depreciação mesclada com raiva e ressentimento).
Do outro lado, Jerry Langford é um astro enfadado, não dá
atenção a ninguém e vive amuado. Longe das câmeras é puro mau-humor e vive isolado.
Rupert Pupkin decide associar-se a outra fã alucinada e atraída sexualmente por
Langford e decidem sequestrá-lo. O preço do resgate? Colocar o número stand up de Pupkin no talk show de Langford em transmissão nacional.
Solidão e Felicidade
Certa vez Freud afirmou que o homem teme mais a solidão do
que a própria morte. Um temor originado menos pelos sentimentos de impotência e
desamor, mas muito mais pelo medo de ficar a sós consigo mesmo e se deparar com
a própria infelicidade. Na cultura da celebridade esse temor parece ser
potencializado quando o pop star é apresentado como um modelo de felicidade
pelo fato de ser popular e querido por todos através das mídias.
Tal como naquele personagem de um filme publicitário de uma
operadora de telefonia celular, o “Ligador”, onde o popular é aquele amado por
todos, feliz por ter uma rede de relacionamentos onde todos estão disponíveis
para receber suas ligações.
Ou como no modelo de vencedores passados pelos filmes
norte-americanos sobre high-schools: a garota ou o garoto popular por ser
“amado” por todos e sempre convidados para as melhores festas.
Esses modelos de celebridades e de vencedores jamais estão
só, vivendo uma vida social frenética e cercado 24 horas por outras
celebridades. O estar só é o atestado de fracasso, uma situação indesejável.
Da admiração à inveja
A grande virtude do filme “O Rei da Comédia” é apresentar
como a percepção da celebridade moderna foi deslocada da admiração para o
sentimento potencialmente perigoso da inveja. Comediante medíocre, Rupert Pupkin
parece pouco interessado na arte de Jerry Langford. Tudo que ele pensa é a
grandeza, os restaurantes caros, a mansão em Malibu, passar um final de semana
na casa de campo de Jerry Langford com Rita e, principalmente, ser “amado” por
todos através das imagens da TV.
Jerry Langford a certa altura alerta que, por trás da aparente
leveza e naturalidade da sua performance na TV, estão anos de aprimoramento,
ensaio e estudo. Pupkin ignora, alegando que, aos 34 anos, necessita de um
atalho para subir rapidamente ao estrelado. Por isso, sequestra Jerry Langford.
No passado as celebridades poderiam ser consideradas a
consolidação da chamada ética protestante tal como descrita por Max Weber sobre
os modelos de sociabilidade que orientaram os primórdios do Capitalismo. Diferente
da ética cristã onde o impulso da fé e do ascetismo é voltado para o interior (“um
monge que se flagela a si mesmo diante de Deus, na privacidade da sua cela, não
pensa na sua aparência diante dos outros” – SENNETT, Richard. O Declínio do
Homem Público. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 406.), ao contrário,
na ética protestante há um componente mundano no ascetismo pela necessidade de
demonstrar não somente a Deus, mas aos outros a sua renúncia e sacrifício,
provando a todos ser um merecedor das graças divinas. Os atos mundanos devem,
portanto, ser célebres para que Deus os veja, tornando a pessoa merecedora das
graças divinas.
O trabalho, o mérito e o esforço eram núcleo da
promoção pública da celebridade, a materialização de uma ética que orientava
tanto a acumulação do capital como do conhecimento.
Com a aproximação da celebridade ao mundo do
entretenimento o antigo princípio ético é esvaziado. A celebridade será
promovida menos pela sua arte ou trabalho do que pelas suas idiossincrasias,
intimidade e capacidade de se divertir e conseguir prazer naquilo que faz. Seu
talento parece mais fruto da genialidade e espontaneidade, sem ter passado pelo
crivo do esforço e do mérito.
Por isso as celebridades são mais invejadas do que
admiradas. Invejadas pela fama, pela celebridade em si mesma, amadas pela
popularidade, por terem abandonado a solidão dos perdedores anônimos. Por isso,
“O Rei da Comédia” é amargo e triste ao nos mostrar tanto a celebridade que não
tem a sua arte reconhecida através da admiração e, do outro, o fã dominado pelo
sentimento paralisante da inveja, cujo ressentimento pode inesperadamente
explodir em ódio.
Ficha Técnica
Título: O Rei da
Comédia (The King of Comedy)
Diretor: Martin
Scorsese
Roteiro: Paul D.
Zimmerman
Elenco: Robert De
Niro, Jerry Lewis, Diahnne Abott, Sandra Bernhard
Produção: Embassy International Pictures e 20th
Century Fox Film Corporation
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No Oitavo Aniversário o Cinegnose atualiza lista com 101 filmes: CosmoGnósticos, PsicoGnósticos, TecnoGnósticos, AstroGnósticos e CronoGnósticos.
Esse humilde blogueiro participou do Hangout Gnóstico da Sociedade Gnóstica Internacional de Curitiba (PR) em 03/03 desse ano onde pude descrever a trajetória do blog "Cinema Secreto: Cinegnose" e a sua contribuição no campo da pesquisa das conexões entre Cinema e Gnosticismo.
Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
Neste trabalho analiso a produção cinematográfica norte-americana (1995 a 2005) onde é marcante a recorrência de elementos temáticos inspirados nas narrativas míticas do Gnosticismo.>>> Leia mais>>>
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