Na sociedade de consumo o sexo tornou-se uma espécie de equivalente geral para promover qualquer coisa: de serviço bancário à própria pornografia. Um significado que sempre busca de novos significantes, deslizando de um lado a outro, de uma vitrine de sex shop a uma vitrine de uma grife da moda. É viciante e compulsivo, porque promete sempre satisfação imediata. Mas nunca satisfaz, porque são apenas formas satisfatórias parciais: não está nem na voz sensual do serviço bancário e nem na roupa que promete lhe tornar atraente.
A sociedade de consumo promete sempre formas de prazer associadas unicamente a aquisição de objetos e nunca através de formas relacionais com o outro. Mas o filósofo e psicanalista esloveno Slajov Zizek aponta para algo além: as estratégias mercadológicas do capitalismo exploram algo ainda mais além, uma lacuna constitutiva da própria individuação do ser:
E se nunca houvesse existido um sexo completamente “real”, sem um suplemento virtual ou fantasioso? A masturbação se entende normalmente como “fazer a si mesmo, enquanto imagina um casal ou casais”, mas e se o sexo for sempre, até certo ponto, masturbação com uma parceira real? A isto acrescentaria a lição da psicanálise: algo está constitutivamente podre no estado de sexo, a sexualidade humana está em si pervertida, exposta à mistura de realidade e fantasia. Mesmo quando estou só com minha parceira, minha interação sexual com ela/ele está inextrincavelmente entrelaçada com minhas fantasias, ou seja, utilizo a carne e o corpo de minha parceira como apoio para realizar e representar minhas fantasias. Não podemos diminuir esta lacuna entre a realidade corporal de minha parceira e o universo das fantasias a uma distorção aberta pelo patriarcado e a dominação ou exploração social. A lacuna está aqui desde o princípio. (Entrevista ao “La Tercera” – clique aqui).
O vício e a compulsão não se devem unicamente a estratégias subliminares e mercadológicas do marketing e da publicidade, mas de alguma lacuna no desejo que jamais é fechada ou completada: sob as promessas (sejam das fantasias pessoais ou fabricadas pelo capital) acabam criando viciosidade e autodestruição.
Representar filmicamente um tema tão abstrato, somente através de um “filme estranho” – “weird movie” muito mais do que um filme “estranho” no sentido dado em português (do latim “extraneum” – o que é de fora, estrangeiro), mas a combinação das ideias do maravilhoso e do fantástico com aquilo que é excêntrico, estranho ou incomum.
É o exemplo do filme The Special (2020), dirigido por B. Harrison Smith (Camp Dread ) e escrito por James Newman e Mark Steensland com base em sua novela, The Special. Apresenta uma história simples de um homem que descobre que não está no controle de sua compulsão quando experimenta uma estranha forma de prazer pela primeira vez. É um filme de terror despretensioso e de baixo orçamento, com história de fundo mínimo e atuações muito básicas.
O filme é descrito pela crítica como alguma coisa entre os clássicos Atração Fatal (1987) e o antigo sci-fi A Bolha Assassina (The Blob, 1958) que trata sobre vício, sexo e horror corporal na linha de A Mosca de David Cronenberg. Por isso, definitivamente The Special é um filme estranho: representar através de uma iconografia estranha e bizarra a vida psíquica da nossa espécie, simbólica e estranha.
O Filme
The Special abre com Jerry Harford (Davy Raphaely) conversando com seu melhor amigo Mike (Dave Sheridan) em um bar. Jerry está desconfiado que sua esposa está tendo um caso, e o seu amigo o incentiva a combater fogo com fogo: que tal Jerry também trair para manter a igualdade na relação?
Portanto, Mike o convida a conhecer algo “especial”: fazer uma visita o salão de uma estranha vidente chamada Madame Zhora (Susan Moses), um misto de médium com cafetina de bordéu – no salão encontramos diversas prostitutas que se oferecem aos visitantes.
Mas Mike não quer que o amigo conhece as prostitutas, mas algo chamado “O Especial”. Mas ele alerta: deve ser apenas uma vez para depois ir embora e jamais voltar – para garantir o segredo do endereço de Madame Zhora, Mike faz Jerry vir até o local com um saco plástico na cabeça.
Uma vez será o suficiente para viciá-lo. Mas viciado em quê?
O vazio lacaniano: Alerta de Spoilers à frente
A partir daqui, fica por conta e risco do leitor. A narrativa faz Jerry descer pela toca do coelho para algo absolutamente bizarro. Ele entra em um quarto no andar de cima do salão de Madame Zorah. Um quarto clássico de prostíbulo: iluminação lilás, uma cama de casal, mas... nada mais além disso. A não ser uma enigmática caixa negra, com uma recomendação em um dos lados, apontando para um orifício: “enfie aqui”.
“Só pode ser brincadeira!”, pensa Jerry. Ele investiga todo o quarto, até ter a curiosidade atraída para a caixa... “por que não?”. E Jerry aceita a sugestão masturbatória... até sentir a maior experiência de prazer da sua vida.
Absolutamente sem fôlego e extasiado, Jerry é levado pelo seu amigo de volta para sua casa. Mas tudo é bem claro: foi apenas uma vez, esqueça! Mas já está viciado e tudo o que quer é descobrir o endereço de Madame Zorah para voltar àquele estranho quarto com a caixa de prazeres até então desconhecidos.
Não demora muito para descobrir o endereço, depois de visitar outras videntes da cidade. Madame Zorah parecer ser uma lenda naquele mercado exclusivo.
Tudo que Jerry quer é roubar a caixa para ter aqueles prazeres exclusivamente para ele. Nem que seja ao custo de assassinatos. Primeiro, da própria Madame Zorah, que tenta impedi-lo de roubar o objeto. Jerry já está totalmente possuído por um vício que, literalmente, poderá leva-lo a autodestruição.
Dessa vez é a sua esposa, Lisa (Sarah French) que acredita que está sendo traída: Jerry leva a caixa para um quarto alugado em um hotel barato para passar longas horas de prazer masturbatório. Enquanto a polícia investiga as circunstâncias da morte de Madame Zorah, com repercussão nos telejornais locais.
Mas também algo está contaminando o corpo de Jerry, com crescentes coceiras, manchas e a erupção de feridas. Começa então uma lenta deterioração física e psíquica.
A caixa é essencialmente simbólica em The Special: é a própria metáfora do desejo e do inconsciente: uma caixa preta, trancada com um pesado cadeado para não sabermos o que tem dentro... e um buraco frontal: o desejo como ausência, uma lacuna aberta no ser que jamais é tampada. O simbolismo fálico ou o pênis é o primeiro significante (ou suporte) para esse significado que busca uma transitividade nunca realizada ou satisfeita na plenitude. Portanto, o homem como um ser clivado que busca no imaginário a solução dessa lacuna. Até encontrar as promessas dos acessórios promovidos pela sociedade de consumo.
O que nos faz voltar as afirmações de Zizek acima que se aproximam bastantes da visão lacaniana do desejo. Para a teoria do desejo de Lacan, trata-se de uma busca interminável, de um vazio numa forma de busca em uma cadeia de significantes que nunca termina.
Para Lacan, o psiquismo se estrutura numa tríade: no Imaginário (a relação com a Mãe, a história familiar etc.); no Simbólico (quando se institui o sujeito a partir da dimensão da linguagem no qual nos reconhecemos através do “Eu”, criando um desejo que busca realizar-se através da cadeia de significantes da linguagem); e o Real - o inassimilável, a causa motora original, o magma do inconsciente (o “isso”) para o qual tentamos retornar através do desejo, por aproximações. Mas estamos condenados a pular de um significante para o outro no labirinto dos signos, nunca resolvendo a clivagem essencial produzida pelo Simbólico.
Viveríamos entre as fantasias do imaginário e os “suportes” fornecidos pelo Simbólico (o Outro, a Linguagem, os gadgets da sociedade de consumo etc.).
A misteriosa caixa em The Special é a melhor síntese icônica dessa natureza do desejo: mais um gadget (a caixa como um dispositivo) que realiza uma fantasia pervertida masturbatória (que para Zizek, a carne do outro é apenas mais um suporte), cujo buraco para ser introduzido o simbolismo fálico é a principal representação do destino do desejo: o vazio.
O vazio que nos faz perigosamente andar na corda bamba da viciosidade, compulsão e autodestruição.
A sequência final em The Special é ainda mais lacaniana: a deterioração física de Jerry simplesmente o fará se “derreter” e despedaçar-se, criando um loop final em que sua própria cabeça será a coisa “especial” da próxima caixa que será feita para novos clientes do prostíbulo de Madame Zorah.
Jerry retrocede do Simbólico de volta ao Imaginário, antecedendo a chamada “Fase do Espelho lacaniana. Em Lacan, a unidade do corpo somente é conseguida através do Espelho, fazendo o sujeito reconhecer-se no Simbólico. Jerry não morre, mas é condenado a reviver a angústia do corpo dividido, no interior da caixa – há vários momentos do filme em que ele para diante de espelhos para tentar se reencontrar, mas sem efeito na sua queda irresistível.
É o destino final terrível de retornar à angústia infantil. Pior: para ser abusado pelos próximos “clientes”.
Ficha Técnica |
Título: The Special |
Diretor: B. Harrison Smith |
Roteiro: James Newman, Mark Steensland |
Elenco: Davy Raphaely, Dave Sheridan, Sarah French, Doug Henderson, Susan Moses |
Produção: Brick Top Productions |
Distribuição: Red Hound Films |
Ano: 2020 |
País: EUA |