quarta-feira, outubro 14, 2020

Descendo pela toca do coelho da viagem no tempo com Christopher Nolan em 'Tenet'


Um filme opulento em que o estrondoso orçamento de US$ 200 milhões aparece em cada enquadramento. Somente o diretor Christopher Nolan poderia obter tamanho orçamento com um roteiro original. Em “Tenet” (2020) ecoam todos os temas de seus filmes anteriores (Amnésia, A Origem, Interestelar, Dunkirk etc.), chegando ao estado da arte de um tema recorrente na sua obra: a desconstrução da realidade. Em “Tenet”, Nolan combina conceitos abstratos (entropia invertida, viagem no tempo, universos em colisão etc.) com o gênero mais norte-americano do cinema: os filmes de perseguição. Uma bomba espaço-tempo invertida é enviada do futuro com o objetivo de destruir a nossa geração, a causadora do futuro apocalipse climático. Um rico e poderoso traficante de armas tenta reunir os fragmentos do dispositivo escondidos no tempo. Enquanto um grupo de agentes especiais tentam detê-lo. Acompanhamos uma guerra no tempo entre universos com tempo-espaço invertidos. Que muitas vezes ocorrem na mesma sequência, batalhas impossíveis no mesmo espaço-tempo. Nolan desafia o espectador a descer pela toca do coelho da viagem no tempo.

Julius Oppenheimer, físico que dirigiu o Projeto Manhattan, estava temeroso com o experimento da primeira bomba atômica. Oppenheimer temia que a explosão provocasse uma reação em cadeia que destruísse o planeta inteiro. Como sabemos, seus temores não se realizaram – apenas os japoneses em Hiroshima e Nagasaki viram o fim do mundo. Mas, e se a entropia de uma fissão nuclear fosse invertida? – o efeito regredisse para a causa? Teríamos uma bomba espaço-tempo?

Esse é apenas um dos conceitos abstratos que Christopher Nolan trabalha em Tenet (2020), seu último quebra-cabeças narrativo que fará o espectador fundir os miolos. 

Por conta da crise da pandemia, o filme ainda não tem programação de lançamento no Brasil. O filme foi classificado como aquele que levaria o público de volta às salas de exibição. Contando com um orçamento estrondoso de US$ 200 milhões, é possível perceber a grana investida em cada enquadramento – a sequência em que centenas de barras de ouro são jogadas de um avião em movimento na pista parece ser auto-referencial da opulência do orçamento.

Só mesmo alguém como Christopher Nolan para obter tamanho orçamento de um roteiro original com ideias que chegam ao auge da complexidade do seu estilo narrativo. Em Tenet o espectador reconhecerá os conceitos desenvolvidos em Amnésia (Memento, 2000 – um estória contada de trás para frente), O Grande Truque(The Prestige, 2006 – um mágico obsessivo que chega a encontrar Tesla para desenvolver uma máquina de saltos quânticos no tempo), A Origem (Inception, 2010 – níveis de mundos paralelos oníricos que se sincronizam em diferentes tempo-espaço), e até Dunkirk (2017 – pelas cenas de batalha que lembram os planos-sequência dessa produção premiada no Oscar).

Mas Tenet vai além ao propor um argumento ainda mais desafiador. Se nas produções anteriores, Nolan fez um movimento pendular entre os mundos oníricos e interiores (Amnésia, A Origem) ou entre os fenômenos quânticos (Interestelar, O Grande Truque), em Tenet Nolan jai juntar tudo em um alto conceito: o “Campo Unificado” – termo criado por Einstein cuja teoria tentava unificar os fenômenos relativísticos com o eletromagnetismo, o macrocosmo com o microcósmico.


O filme parte das ideias de Feynmam e Wheeler de que partículas como o positrón seriam capazes de se moverem para trás no tempo (retrocausalidade) ou a suspeita de universo paralelo no qual as leis da física estão invertidas, com partículas viajando numa entropia invertida – clique aqui.  E se esses estranhos fenômenos do mundo subatômico fossem replicados em escala macro? Por exemplo, balas em movimento invertido ou bombas nucleares com fissão invertida. De tal maneira que gerações futuras passassem a ameaçar a existência do passado (o nosso presente), criando um paradoxo na viagem no tempo que Einstein chamava de “paradoxo do avô”: se matasse o seu avô no passado, como poderia ter existido no futuro para mata-lo?

Dessa maneira, Nolan joga o espectador em uma espécie de experimento mental no qual supostamente gerações futuras experimentam algum tipo de catástrofe climática cujos responsáveis fomos nós, aqui no presente. Então, foram capazes de criar bombas e armas que invertem a entropia (o efeito reverte para a causa) e decidem enviar uma bomba atômica para o passado na esperança de destruir a causa que originará o futuro apocalipse climático. O problema é que o temor de Oppenheimer com a primeira bomba atômica poderá se tornar verdade: uma fissão nuclear invertida reverteria radicalmente o tempo, riscando a história humana da face do planeta. Um apocalipse invertido!

Com essa breve introdução, já dá para perceber que Nolan jogará o espectador numa trama intrincada com direito a sequências em que protagonistas e antagonistas estão simultaneamente em movimentos invertidos no tempo. Ou melhor dizendo, interagindo entre si em cenas de lutas, perseguições e batalhas, mas em entropias inversas. Como universos opostos que colidem num mesmo espaço-tempo. O que transforma narrativas complexas como foram Amnésia e A Origem em contos simples diante de Tenet.



O excesso narrativo de Christopher Nolan parece proposital, visando inserir Tenet numa narrativa transmídia: essa toca de coelho na viagem no tempo certamente parece tornar Tenet um filme criado para a cultura dos vídeos explicativos do Youtube – já há canais que pretendem desconstruir principalmente o final do filme, quando ele ainda sequer foi lançado na maior parte do mundo. 

Como transmídia, Tenet é um filme que não termina. O espectador necessariamente irá procurar desdobramentos em outras mídias.

O Filme

Tenet não perde tempo, levando os espectadores a acompanhar um ataque. terrorista a uma apresentação sinfônica em Kiev e mal permitindo que consigamos entender o que está acontecendo. Um dos agentes enviados para recuperar algum importante dispositivo não identificado durante o ataque é um homem conhecido apenas como O Protagonista (John David Washington). Nosso herói é capturado pelo inimigo, torturado e consegue engolir uma cápsula de cianeto, como lhe foi ordenado fazer no treinamento. Não entregando o nome de seus outros colaboradores

Mas ele sobrevive e sua fidelidade ao sistema e às ordens o leva a uma espécie de promoção, uma missão ultrassecreta que envolve uma nova tecnologia que tem o potencial de literalmente reescrever a história humana. 

O Protagonista é levado a uma instalação remota e apresentado à existência dos chamados “objetos invertidos”. Eles estão sendo encontrados e estudados naquela instalação secreta. Quando olhamos para um objeto, ele está viajando no tempo conosco, na entropia da seta do tempo que nos leva ao futuro. Isso é óbvio nas aulas de ciências do ensino fundamental. Mas e se um objeto pudesse ir em outra direção ao longo da história? Aparentemente, esses os objetos fazem exatamente isso. 

Entropia é um complexo conceito da Física que explica por que alguns processos ocorrem espontaneamente, enquanto suas reversões de tempo não. “Derreter gelo, dissolver sal ou açúcar, fazer pipoca e ferver água para chá são processos que aumentam a entropia na cozinha”, explica uma linha de diálogo a certa altura do filme. 

No universo de Tenet, vemos o Protagonista mostrando uma bala com entropia invertida que retorna para sua arma. Em Tenet podemos perceber se um ser humano foi invertido, porque ele precisa respirar com uma máscara de oxigênio - o ar normal não passa pelos pulmões invertidos. 

Mas tudo isso é preocupante porque se uma bala pudesse ser enviada de volta no tempo, o que aconteceria se uma arma nuclear fizesse a mesma viagem? 



Esses objetos invertidos estão sendo encontrados como resquícios de uma guerra nuclear que ainda irá surgir, alertando as autoridades a controlar e entender a procedência desses objetos no futuro. 

Em parceria com um misterioso parceiro chamado Neil (Robert Pattinson), nosso herói rastreia objetos invertidos até um vilão traficante de armas russo chamado Andrei ( Kenneth Branagh). Para se aproximar deste louco mega-rico, o Protagonista usa a esposa de Andrei, Kat (Elizabeth Debicki), que detesta o marido abusivo, mas está sendo chantageada para ficar com ele por meio de ameaças de que perderá o filho se não fizer exatamente o que ele diz. 

Andrei é muito parecido com os vilões clássicos dos filmes de James Bond, com opulência desenfreada, sotaque russo e linhas de diálogo gritantes. Combine a obsessão de Nolan com conceitos abstratos que envolvem o tempo e o seu amor pela construção de um filme de ação clássico e você terá uma ideia de como é Tenet. 

Depois de episódios que aconteceram em um acidente nuclear numa remota cidade na antiga União Soviética, Sator involuntariamente entrou em contato com uma agência desconhecida no futuro que planeja reverter a entropia do tempo histórico para evitar a catástrofe climática. Um cientista dissidente que criou o “Algoritmo” (o dispositivo que reverte a entropia) desmontou a bomba em nove partes e as escondeu no passado. Sator planeja encontrar esses dispositivos para disparar essa verdadeira bomba do Juízo Final que reverterá a entropia de todo o planeta. E por um motivo bem mesquinho que resume o alcance do abuso do poder de um oligarca: ele está morrendo de câncer pancreático inoperável e acredita que, se não consegue viver, ninguém também deve conseguir. 

A gnóstica desconfiança

Desde o filme O Grande Roubo do Trem (The Great Train Robbery, 1903), ação e perseguição se tornaram a especialidade do cinema norte-americano. Um gênero que essencialmente explora o tempo e o espaço na montagem e edição. 




É marcante como Christopher Nolan desconstrói esse esquema narrativo clássico ao insistir no tema da instabilidade da realidade. Um tema essencialmente gnóstico: por de trás da aparente concreticidade do mundo, esconderiam-se camadas de mundos oníricos projetados de nossas mentes ou universos paralelos em colisão.

Desde Amnésia (2000), Nolan desenvolve essa desconfiança gnóstica a partir da seminal linha de diálogo do protagonista Leonard:

“Eu tenho que crer num mundo fora da minha mente. Tenho que crer que minhas ações permanecem tendo um sentido embora não consiga lembrar qual seja. Tenho que acreditar que quando meus olhos fecham o mundo permanece lá. O mundo ainda está lá? Está lá fora? Sim. Todos nós precisamos de espelhos para relembrar a nós mesmos quem somos. Eu não sou diferente.”

Tenet parece ser um filme auto-referencial, o auge da recorrência do tema “desconstruindo a realidade”: ao aproximar uma bomba de entropia invertida vinda do futuro com um gênero tão clássico (os filmes de perseguição), Nolan faz uma curiosa metalinguagem: desconstrói não só a realidade dos universos ficcionais, mas a própria narrativa fílmica de um gênero especializado na seta do tempo entrópica linear – passado, presente e futuro.

Esse humilde blogueiro teve que assistir ao filme duas vezes para escrever essas mal traçadas linhas. E terá que assistir outras vezes para assimilar esse estado da arte de Christopher Nolan. 

Essa é a própria natureza das narrativas transmídias, na qual o filme não se esgota em si mesmo, dando continuidade à estória em outras mídias que irão especular sempre novas interpretações. 

 

         

Ficha Técnica 

Título: Tenet

Diretor: Christopher Nolan

Roteiro: Christopher Nolan

Elenco: John David Washington, Robert Pattinson, Elizabeth Debicki, Kenneth Branagh

Produção: Warner Bros, Syncop

Distribuição:  Warner Bros

Ano: 2020

País: EUA

  

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