segunda-feira, outubro 19, 2020

André do Rap, o Caso Robinho e o dinheiro na cueca: cenas de uma guerra híbrida invisível

O velho semiólogo Roland Barthes usava a “técnica de comutação” para descobrir as unidades mínimas de significados em um sistema linguístico ao substituir arbitrariamente um signo por outro, para descobrir os sentidos ocultos no sistema. No caso da guerra semiótica híbrida basta algo mais simples: o exercício de jornalismo comparado - por que casos semelhantes no passado não foram pautados pelo jornalismo corporativo e agora monopolizam a pauta com direito a infográficos caprichados e extensos holofotes midiáticos sobre figuras vaidosas como a do presidente do STF, Luiz Fux? Os casos André do Rap, do dinheiro na cueca do senador Chico Rodrigues e da contratação do jogador Robinho pelo Santos mostram que o gênio da guerra híbrida é o fato dela funcionar como uma “macro” em ciência da computação: regra ou padrão que especifica uma certa rotina de atividades determinada por um macrocomando invisível. A partir desse macrocomando (a “guerra cultural”) todos os lados começam a agir no automático, criando a polarização política que é a própria atmosfera na qual a extrema-direita respira e se reproduz.

Atribuiu-se a Goebbels, ministro da Propaganda da Alemanha nazista, a famosa frase: “uma mentira contada mil vezes acaba se tornando verdade”. É uma injustiça atribuir ao gênio da propaganda política um dispositivo tão primário de persuasão baseado na pura repetição de slogans. A repetição era apenas o início de algo muito mais insidioso. A ideia dever ser “martelada” sim, mas até o momento em que o último receptor comece a acreditar que aquela ideia não veio de lugar externo, a não ser das próprias convicções pessoais – sobre isso, leia REBOUL, Olivier, O Slogan, São Paulo: Cultrix, 1980. 

Em outros termos, tal como no filme A Origem (Inception, 2010) de Christopher Nolan, a ideia deve ser inserida no recôndito mais íntimo do psiquismo, a tal ponto que a pessoa defenda a ideia como fosse sua.

Há alguns dias esse humilde blogueiro fazia uma pesquisa de rotina na Internet para uma das postagens recentes desse blog. Até que, perdido no “thread” abaixo de uma matéria datada de 2014, um comentário concordava que o Brasil havia conseguido importantes progressos no campo da educação e tecnologia com o programa Ciência Sem Fronteiras dos governos petistas. Mas, defendia: “imagina então esse País sem corrupção, o Brasil iria decolar!”. 

Esse não foi, se não, o objetivo final da Guerra Híbrida brasileira de 2013 a 2016 que culminou no golpe político: “Inception!”... A repetição diária da pauta da corrupção na mídia monopolista (diariamente o brasileiro ouvindo apresentadores histéricos na TV exortando “policiais federais nas ruas!” a cada operação da Lava Jato) inseriu essa cruzada moral como fosse uma convicção pessoal, originada de algum silogismo interior – sobre isso leia o trepidante livro deste Cinegnose “Bombas Semióticas na Guerra Híbrida Brasileira (2013-2016) – Por que aquilo deu nisso?” – clique aqui.


Se não, por exemplo, observe a pauta que dominou a grande mídia (e, por extensão, a chamada “mídia progressista”) nessa última semana: a soltura do chefão da organização criminosa PCC André do Rap pela decisão do ministro do STF Marco Aurélio de Mello; os 33mil reais escondidos na cueca de Chico Rodrigues, vice-líder do Governo no Senado; e o caso da contratação pelo Santos do jogador Robinho, condenado em primeira instância pela justiça italiana por violência sexual contra uma jovem de origem albanesa quando jogava no Milan.

A indignação estratégica do caso André do Rap

O curioso na polêmica e sequestro da pauta midiática na soltura de André do Rap (com direito a repetição ad infinitum das cenas dele saindo pela porta da frente da penitenciária de “segurança máxima” de Presidente Venceslau/SP) é que em passado recente outras solturas “polêmicas” não foram alvo da mesma indignação – a soltura do médico condenado pelo estupro de quase 100 mulheres, Roger Abdelmassih; a libertação do assassino da missionária Dorothy Stang; ou mesmo a soltura dos pilotos do jatinho Legacy, condenados por derrubarem o avião da Gol com 154 vítimas.


André do Rap sai pela porta da frente: imagens repetidas ad infinitum

  Toda vez que percebemos a indignação seletiva do jornalismo num simples exercício de jornalismo comparado (por que lá não, e agora sim?), temos que fazer a pergunta: quem ganha?

É evidente que as cúpulas militares participaram não só ativamente da deposição da presidenta Dilma em 2016, como também de sistemáticas “operações psicológicas”, mergulhando no submundo da Internet e no Whatsapp para travar uma batalha orientada pela doutrina da chamada “guerra cultural” – sobre isso, clique aqui

Uma guerra híbrida com dois objetivos bem definidos: fortalecer as posições militares (a ocupação crescente de cargos estratégicos desde o governo Temer pós-golpe) e criar confusão (divisões, polarizações etc.) nas “hostes inimigas” (oposições e “maioria silenciosa”), infundindo raiva, medo e ressentimento.

O pedido de HC feito pela defesa o traficante caiu “de bandeja” no colo do garantista Aurélio de Mello (“não julgo o processo pela capa”, defendeu-se o ministro) tocando numa questão antiga das “prisões provisórias”. Bomba semiótica especialmente inserida no STF para abrir uma crise, estratégica para a sistemática desmoralização das instituições democráticas junto à opinião pública.

E ainda com a ajuda do histriônico, vaidoso e canastrão (o que são aquelas golas, abotoaduras e mullet?...) Fux, com sua fúria punitivista cujo alvo não é apenas o André do Rap. Mas a fúria punitivista de uma pan-corrupção seletiva.

Bolsonaro deu também sua pequena contribuição ao indicar Kássio Marques ao STF, para expo-lo à mais nova suspeita de currículo fraudado – um suposto pós-doc que jamais existiu. Isso depois da desmoralização do Ministério da Educação com a indicação de Carlos Decotelli e seu currículo com um doutorado fake. Caro leitor, isso não lhe parece recorrente e sistemático?

Ganha também o lavajatismo (que tem a grande mídia como seu principal associado) que luta para preservar o poder intimidatório das prisões preventivas ilegais para arrancar confissões contra alvos politicamente seletivos.

E, claro, numa típica estratégia da operação psicológica do movimento em pinça, reforçar o consenso da necessidade da prisão em primeira instância, cujo alvo não poderia deixar de ser Lula. Uma obsessão que crescerá na medida em que se aproximar as eleições presidenciais de 2022 – Lula tem 21% da preferência na corrida eleitoral, entre Bolsonaro (35%) e Moro (11%). E num eventual segundo turno, ambos aparecem empatados, conforme pesquisa PoderData de setembro. 

A pinça pronta para se fechar num virtual futuro cenário: Lula novamente na cadeia com o modus operandi da Lava Jato em ação para controlar o jogo eleitoral.


Dinheiro na cueca: detalhes sórdidos em rede

O dinheiro/dólar na cueca

Embora tenha sido o processo arquivado pela Justiça e considerado falso o caso dos “dólares na cueca” supostamente envolvendo um então assessor do deputado federal petista José Guimarães em 2005, esse é mais um dos esqueletos que estão no armário do partido - ao lado do assassinato do prefeito de. Santo André/SP Celso Daniel, que em toda eleição é ressuscitado.

É sincrônico na proximidade das eleições municipais que essa imagem arquetípica petista do folclore político brasileiro volte à cena. Agora, envolvendo o vice-líder do Governo no Senado, Chico Rodrigues: flagrado pela PF com 33 mil na cueca (ou “nas nádegas”, como festeja a mídia progressista) em operação para apurar um suposto esquema criminoso de desvios de recursos públicos no combate à pandemia em Roraima – parte da ação sistemática de vingança contra os governadores que se insurgiram contra o negacionismo do presidente. O governador de São Paulo Dória Jr. não perde por esperar sua vez... ainda mais que se candidata a herói nacional com a vacina chinesa...

Não importa se Chico Rodrigues não seja do PT, da oposição, mas político que apoia Bolsonaro no Congresso. A manipulação da opinião pública (ou melhor, da “maioria silenciosa”) através de um processo de contaminação metonímica é uma das especialidades da guerra híbrida. O estardalhaço na grande mídia (que talvez nem a dinheirama dos 51 milhões de reais encontrados num apartamento em Salvador, do ex-ministro Geddel Lima, teve), com direito a divulgação de fotos tiradas diretamente do processo da PF, com uma mão retirando o dinheiro do... das nádegas do político, tem a óbvia motivação metonímica de criar um efeito de contaminação.

“Dólares na cueca” já virou um significante, uma imagem com forte recall que sempre acaba no PT – ou nos políticos em geral, dentro da meta midiática da depreciação generalizada da atividade política.

O caso Robinho

Se fizermos mais um pequeno exercício de jornalismo comparado, descobriremos a seletividade da pauta e escandalização da grande mídia num episódio requentado – claro, com ajuda do policial civil bolsonarista dublê de presidente do Santos, Orlando Rollo... numa ironia, também chega ao poder no clube após o impeachment e afastamento do presidente José Carlos Peres.


Em 2017 o jornal El País era o único que destacava a condenação de Robinho na justiça italiana, dando a notícia como um fato com um significado muito além da esfera esportiva. Na época, o jogador integrava a equipe do Atlético Mineiro.

O jornal relatou os protestos da torcida feminina do Atlético Mineiro e ressaltou o “constrangedor silêncio do Atlético sobre Robinho”. Enquanto isso, o restante da mídia corporativa apenas reportava a saia justa do clube como um evento restrito à esfera esportiva. Limitava ao debate das mesa redondas esportivas e às crônicas boleiras.

Eram épocas do primeiro ano do governo Temer. A grande mídia estava muito mais interessada na estabilização e blindagem do governo pós-impeachment dos escândalos que já se acumulavam. Esforço para diluir a imagem “golpista” de Temer – como de resto o esforço da própria grande mídia fazia com ela mesma, ao começar a gradativamente dar espaço para pautas culturais, identitárias, de gênero, étnicas etc.

Sincronicamente em ano eleitoral, a tentativa de contratação pelo Santos do jogador condenado por violência sexual toma outra dimensão que extrapola aos preguiçosos debates futebolísticos. Agora a repercussão merece caprichosos infográficos com as transcrições de áudio do jogador resultantes das escutas telefônicas autoacusatórias feitas pela justiça italiana.

Principalmente a Globo, que ficou com sangue nos olhos depois que Robinho falou em “Globolixo”: “A gente sabe como a TV Globo é. É uma emissora do demônio. Só ver as novelas e as programações. Vou meter uma camisa quando fizer um gol - Globo Lixo. Bolsonaro tem razão", disse o jogador.

Enquanto jornalistas da Globo tiveram seus números de telefone vazados por torcedores do Santos e passaram a ser ameaçados de morte, e os ataques registrados na Polícia especializada em crimes virtuais.

O gênio da guerra híbrida é o fato dela funcionar como uma “macro” em ciência da computação: regra ou padrão que especifica uma certa rotina de atividades determinada por um macrocomando – sequência de entrada para mapear uma substituição de sequência de saída.

Temas identitários e de costumes (a “guerra cultural” a chamada “direita alternativa” – alt-right – costuma dizer) fazem parte de uma estratégia bem definida: infundir raiva e divisões entre as pessoas para que elas não consigam agir com clareza e racionalidade, não raro em prejuízo aos seus próprios interesses.

Dentro desse macrocomando (a guerra cultural) todos os lados começam a agir no automático, criando a polarização política que é a própria atmosfera na qual a extrema-direita respira e se reproduz.


Por exemplo: segundo dados da pesquisa espontânea do Ibope para a eleição à prefeitura da cidade de São Paulo, 40% dos eleitores ainda não têm candidato definido. 

Esse é exatamente o percentual da chamada “maioria silenciosa” (conceitos que tomamos aqui no sentido dado pelo pensador Jean Baudrillard – clique aqui) – excetuando-se convertidos das extremidades do espectro político, sobram esses “40%”. Um percentual sensível a pauta “cultural e de costumes”, capaz de agir irracionalmente contra seus próprios interesses na defesa da “moralidade-das-pessoas-de-bem-trabalhadoras-de-família-e-tementes-a-Deus”.

A pauta política é sequestrada por esse macrocomando, arrastando consigo a chamada mídia progressista, também mesmerizada pela guerra cultural. Ela não funciona apenas como cortina de fumaça para desviar a atenção da agenda neoliberal que corre solta num país condenado a virar, após os incêndios, num gigantesco pasto de um país reduzido a exportador de commodities.

Em anos eleitorais, seu papel fundamental é polarizar, para a decisão eleitoral cair numa maioria silenciosa irracional, cheia de ódio e ressentimento – não é à toa que nas eleições de 2018 o movimento #EleNão (acusando Bolsonaro de machismo, misoginia, homofobia e de não respeitar as mulheres) só impulsionou a candidatura da extrema-direita no segundo turno através do voto útil em defesa da “segurança e da família”...

Voltando à frase com sentido errôneo atribuído a Goebbles, o objetivo da propaganda política não é fixar uma ideia nas massas através da pura e simples repetição. Ela só será bem-sucedida quando as pessoas acreditarem que aquela ideia partiu espontaneamente delas próprias. E a guerra híbrida é o estado da arte dessa estratégia.

Os escândalos do André do Rap, do dinheiro na cueca e da contratação do jogador Robinho são produtos dessa macro que roda oculta – uma estratégia de propaganda invisível porque diluída na onipresença, acumulação e consonância da pauta cotidiana das mídias. Sejam corporativas ou progressistas.  

 

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