sábado, junho 15, 2019

Um ensaio poético sobre a morte e perdas em "Onirica"


“Onirica” (2014), do diretor e poeta polonês Lech Majewski, é uma produção que entra na categoria de “filme estranho”: com densas linhas de diálogo filosóficas, inspirado na “Divina Comédia” de Dante Aligheri e uma narrativa surreal e enigmática, acompanhamos a história de Adam – ele perdeu em um acidente de carro aqueles que mais amava e agora se encontra perdido entre a realidade e os sonhos com fortes simbologias sobre Deus, pecado e redenção. Sem encontrar na religião uma explicação para a impotência humana diante da perda e da morte, Adam encontrará na filosofia de Heidegger e Sêneca a redenção que o levará do Purgatório ao Paraíso.

Para o existencialismo cristão de Soren Kierkegaard (1813-1855), o homem é marcado pela angústia diante da presença da Divindade. O homem se reconhece como finito, mortal, diante da eternidade de Deus e da Existência. Como elaborar essa angústia? Em nossas vidas conhecemos pessoas, vivemos todos juntos, sentimos emoções similares e criamos laços. Então, subitamente, sem aviso ou explicação, não nos encontramos mais porque morremos. 
Simplesmente partimos. Mudamos de endereço? Ou retornamos para uma floresta escura da qual viemos? Deixando apenas os nossos nomes registrados numa espécie de Livro da Vida, como sugere Heidegger em seu livro “Caminho de Floresta”.
Para Kierkegaard, o Cristianismo tenta resolver essa angústia de forma paradoxal: unir a transcendência de Deus com o homem mortal através de Jesus Cristo. O problema é que essa revelação da Verdade não foi feita por meio de pompas e circunstâncias, mas foi encarnada por meio de um homem obscuro que morreu como um criminoso na cruz. Dessa forma, o acesso à Verdade somente foi possível por meio do paradoxo e do absurdo. Por isso, a fé poderia ser resumida da seguinte maneira: “Creio porque é absurdo”.
Essa angústia em relação à finitude e perdas numa existência que, sabemos, é eterna e nos suplanta é o tema do filme polonês Onirica (2014, aka Fields of Dogs) do cineasta e poeta Lech Majewski. Um filme feito sob medida para cinéfilos adoradores de produções eruditas, repletas de simbolismos, alusões e referências à Filosofia e iconografia religiosa.


Em Onirica, nada é verossímil, linear ou realista. Cada plano é repleto de simbolismos, como adverte o próprio título do filme. Pegando como fio condutor “Divina Comédia” de Dante Alighieri, acompanhamos a batalha do protagonista contra a angústia e a perda até alcançar a redenção – o problema é que não sabemos se foi na realidade ou nos sonhos: ele sofre de narcolepsia na qual constantemente é tomado por um sono súbito e inexplicável.
Definitivamente, a única coisa real em Onirica é a experiência da perda e da morte. E como lidamos com essas experiências pouco importa. Para o protagonista, a linha condutora da Divina Comédia (a jornada através do Inferno, Purgatório e Paraíso) será o seu caminho para a redenção. Sempre colocando a fé e a Igreja como incapazes de lidar com a angústia existencial humana.

O Filme

O personagem central é um jovem chamado Adam (Michal Tatarek) que perde sua namorada chamada Basia (Anna Mielczareck) e Kamil (Szymon Budzyk), o seu melhor amigo em um acidente de carro. A tristeza e depressão diante do absurdo da perda das pessoas que mais amava nesse mundo o impedem de voltar ao seu ritmo de trabalho normal como professor universitário e pesquisador na área de Literatura – fã da obra “Divina Comédia”, ele também é especialista na Nova Literatura polonesa.
Adam abandona sua promissora carreira intelectual para passar seus dias como caixa de supermercado, resignando-se a uma rotina banal, solitária e deprimida – não é à toa que a rede de supermercado na qual trabalha chama-se “Real”.
Ele está totalmente perdido: sua existência limita-se do trajeto diário que faz do emprego ao pequeno, modesto e escuro apartamento da sua tia Xenia (Elzbieta Okupska), uma erudita tradutora. Adam está mergulhado no inferno, como nos informa trechos da “Divina Comédia” citados pontualmente na narrativa em voz over.
A única via para escapar desse mundo infernal é a sua progressiva narcolepsia: sempre esfregando os olhos sonolento, Adam encosta em qualquer lugar e dorme – certamente um mecanismo de defesa psíquica. Seus sonhos são ocupados por inúmeros simbolismo cristãos como serpentes, pombas, água batismal. Sonhos de uma mulher amamentando um bebê na beira de um rio, abraçando uma mulher morta coberta de sangue, uma catedral sendo inundada por uma cachoeira, entre outras imagens bizarras e enigmáticas.


São as cenas repletas de mistérios e simbolismos ocultos, uma verdadeira polifonia de imagens que remetem a trajetória de Dante através do Purgatório até o Paraíso, dessa vez não mais guiado por Beatriz (como na obra original), mas levado pelas mãos da namorada Basia.
Paralelo a esses sonhos pictóricos, estão ocorrendo dramas de impacto nacional na Polônia. Através das imagens da TV, Adam testemunha a catástrofe natural das enchentes no sul do país com centenas de mortos e o drama real ocorrido em 2010: a queda do avião presidencial em Smolensk, no qual morreram não só o presidente, como toda a cúpula ministerial e o chefe do exército polonês, resultando em 85 mortos, mais a tripulação.
Uma cadeia de eventos que, para o diretor Lech Majewski não é fruto do acaso: “estou de acordo com o filósofo Liebniz de que o acaso não existe, se não que há todo um conjunto de causalidades que não conhecemos. Esse é o puro inferno de Dante”, comenta o diretor – clique aqui.

Sentinelas dos sonhos

A forma como seus sonhos se misturam com a realidade apresentam tanto simbologias cristãs como o clássico mecanismo de defesa dos sonhos que Freud denominou como “teoria das sentinelas” apresentada na abertura do livro “Interpretação dos Sonhos” – antes do simbolismo,o que primeiro chamou a atenção de Freud foram conteúdos dos sonhos que tinham a ver com elaborados mecanismos de proteção do sono contra fatores perturbadores.
Por exemplo, se o despertador toca é muito comum o sonho disfarçar a campainha de alarme, tecendo com ela uma história qualquer. Dado o estímulo, o sonho cria o cenário, fornece atores e adereços para as cenas, tudo isso extraído das experiências e impressões do dia-a-dia de quem está dormindo. O sono tenta proteger-se dos estímulos exteriores.


Como numa das melhores sequências de Onirica quando Adam assiste a um programa de prêmios na TV apresentado por uma mulher de biquíni em um cenário paradisíaco e kitsch com sol e praia. Como sempre, Adam pega no sono para a sensual apresentadora aparecer no seu quarto, para se investir do simbolismo da tentação enganadora – tão falso quanto o próprio programa que vende a ilusão de ganhar o prêmio, enquanto o telespectador fica pendurado propositalmente na linha, pagando o impulso telefônico para a emissora.
Obviamente, a primeira busca do sentido para tantas perdas e mortes será na religião católica, na qual Adam travará uma discussão teológica com um padre no confessionário. “Sempre há esperança na fé”, diz o padre. Ao que Adam responde: “Nós colocamos a palavra esperança em toda derrota ou tragédia... talvez porque seja a única maneira de encararmos nossa própria impotência”.

A Filosofia supera a Religião

Para, a partir desse ponto, passa a questionar Deus e sua misericórdia diante do sofrimento humano: “Deus é onipotente e misericordioso... se for misericordioso, então será tão impotente quanto eu”. Para o padre, a discussão transforma-se numa discussão teológica paradoxal: Deus é tão onipotente que foi capaz de criar sua própria impotência...


Porém, o contraponto é dado pela sua erudita tia: por meio da Filosofia de Heidegger e Sêneca ela conclui que chegamos eventualmente à morte depois de um longo caminho até ela – a vida é uma história de perdas: “incluindo ontem, todo o tempo passado é o tempo perdido... perdemos a infância, adolescência e a própria juventude”.
A narrativa de Onirica constrói o personagem da condição humana gnóstica do Estrangeiro: se a vida não opera por soma, mas por subtração, somos estranhos nesse mundo que não nos pertence. E Deus é o próprio Demiurgo prisioneiro em sua criação: tão impotente quanto o próprio homem.
Com a densidade filosófica das linhas de diálogo e o emaranhado das imagens oníricas perturbadoras, surreais e simbólicas, Onirica é um filme estranho.

O que é um “filme estranho”?

O que é um “filme estranho”? A palavra inglesa “weird” (estranho) deriva da palavra germânica “wyrd”, que significa “destino”. Essa palavra encontrou o seu significado atual de “estranho, surreal” através de Shakeapeare com as “Weird Sisters” que prediziam o destino de Macbeth, ao mesmo tempo “weird” (“estranhas”) no sentido moderno quanto “wyrd” no sentido pagão.


Portanto, “weird movie” é muito mais do que um filme “estranho” no sentido dado em português (do latim “extraneum” – o que é de fora, estrangeiro), mas a combinação das ideias do maravilhoso e do fantástico com aquilo que é excêntrico, estranho ou incomum.
Dessa maneira, esse conceito aproxima-se do “gnostic movie” ou filme gnóstico: narrativas cinematográficas onde mostram protagonistas em situações onde a familiaridade usual se reverte em algo não-familiar, “estranho”, acontecimentos que fazem a realidade repentinamente foge à conformidade cotidiana.


Ficha Técnica 

Título: Onirica 
DiretorLech Majewski
Roteiro:  Lukas Kersys e Lech Majewski
Elenco:  Michael Tatarek, Elzbieta Okupska, Szymon Budzyk, Anna Mielczarek 
Produção: 24 Media, Bokomotiv Freddy Olson Filmproduktion
Distribuição: CG Entertainment
Ano: 2014
País: Polônia, Itália

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