domingo, junho 09, 2019
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Inspirado no "Livro Tibetano dos Mortos" (uma espécie de guia do mochileiro pós-morte na sua jornada de elevação da consciência espiritual), o filme “Bardo Blues” narra as desventuras de um protagonista no momento decisivo da quebra das ilusões dos padrões cármicos no qual o conteúdo da mente é projetado, tornando-se visível como um sonho. Um mochileiro vaga pelas ruas de uma cidade na Tailândia fugindo do passado e em busca da sua mãe que inexplicavelmente o abandonou na infância. “Bardo Blues” narra o despertar espiritual de alguém que busca consolo e entendimento na cultura Oriental. Porém, tudo que encontrará serão rupturas traumáticas que questionarão quem ele na verdade é, de onde veio e para onde está indo. Filme sugerido pelo nosso leitor Alexandre Von Keuken.
“Bardo”: estados de existência dentro do fluxo contínuo da vida, da morte e da reencarnação. Palavra tibetana que quer dizer “transição” ou “intermediário”. A apresentação mais simples no livro budista tibetano Bardo Thodói (“Libertação do Estado Intermediário”), conhecido também como “Livro Tibetano dos Mortos”, descreve quatro bardos: o da vida, o do momento da morte, o bardo da vacuidade (a consciência fundamental da luz do próprio espírito) e o do renascimento.
Mas para o Gnosticismo (filosofia sincrética, o Gnosticismo incorporou toda uma gama de escolas ou seitas que se baseiam na “gnosis”, forma especial de conhecimento iniciático – neoplatonismo, estoicismo, budismo, sufismo, antigas religiões semíticas e cristianismo), o bardo da vacuidade é o mais importante – após a morte vivemos as ilusões cármicas: o conteúdo da mente é projetado, tornando-se visível como num sonho.
Criamos uma tela mental com imagens em fluxo dentro do qual a vida parece continuar em outra dimensão, e nos perdemos na confusão entre a realidade e as alucinações. Sem lucidez, o “sonhador” não consegue se abrir à realidade dos mundos para além dos sonhos e nem para a própria luz espiritual. Perde-se num padrão repetitivo, para renascer e continuar o mesmo padrão sem autoconsciência ou auto distanciamento – a “gnosis”.
Padrões cármicos
Bardo Blues(2017, filme de estreia da diretora, atriz e roteirista Marcia Kimpton – filme disponível no “Strêmio”, mas ainda sem legendas em português – legendas apenas em inglês) é mais um filme que se aprofunda nas implicações da ausência ou possibilidade de ser alcançar a gnose pós-morte, no delicado momento em que nos encontramos na encruzilhada entre quebrar os padrões cármicos ou permanecermos neles. O que nos tornando mais uma vez prisioneiros da chamada “Roda do Samsara” – o ciclo interminável de mortes, renascimentos e sofrimento.
Bardo Bluessegue a linha de filmes PsicoGnósticos como Vanilla Sky(2001), O Terceiro Olho(The I Inside, 2004), A Passagem(Stay, 2005) e Enter The Void(2009). PsicoGnósticos seriam aquela categoria de filmes gnósticos na qual o protagonista está prisioneiro em suas próprias memórias, traumas, muitas vezes numa espécie de limbo entre a vida e a morte.
“A vida continua em diversas dimensões”, críptica frase dita por Gabriella, proprietária de um hotel na Tailândia que recebe o protagonista Jack, um mochileiro que chega naquele paraíso para tentar fugir de um passado traumático. Em Bardo Blues, o viés budista é explícito, quase doutrinário: Jack está vivendo no bardo da vacuidade, buscando no paraíso turístico e místico da Tailândia repostas para o trauma principal que é a base de toda uma existência vazia e hesitante: por que na infância sua mãe o abandonou, junto com seu pai e irmão? E por que ela foi para a Tailândia?
O Filme
Filmado na Tailândia, Bardo Bluesacompanha a estória de Jack Shore (Stephen McClintic), um jovem norte-americano que parecer ser mais um de milhares de turistas que chegam naquele país em busca de experiências exóticas, místicas ou, simplesmente, prostitutas e drogas.
E Jack começa por essas últimas opções. A narrativa se inicia com Jack vagando pelas ruas, com típico traje de turista, errático, até chegar à recepção de um hotel e encontrar um atendente lacônico e que consegue trocar poucas palavras em inglês.
Logo aparece a proprietária do hotel que pede desculpas a Jack. É Gabriella (a própria diretora Marcia Kimpton), também uma americana. Sempre vestida de branco e com uma fisionomia que transparece alguma coisa entre sabedoria e otimismo, logo percebemos que ela lidera algum grupo de práticas budistas.
O contraponto é Clare (Gina Haining), proprietária de um prostíbulo que propõe a Jack um “pacote de serviços”: se ele quiser drogas, deverá também escolher uma das prostitutas da casa para passar a noite em um dos quartos do estabelecimento.
Claire está sempre vestida de preto. Aos poucos percebemos que Bardo Blues cria a típica polaridade cristã entre o céu e o inferno – reforçada pelo próprio título de um livro que Jack lê a certa altura do filme.
Jack parece querer deixar para trás os traumas e desventuras a milhares de quilômetros de distância: o fracasso profissional como escritor e roteirista em Hollywood e o fim de um relacionamento – abandonou a namorada para vir à Tailândia em busca de sua mãe. Mas, principalmente, entender o porquê de ela ter abandonado filhos e marido para viver naquele país.
Com uma velha e desbotada foto da sua mãe, Jack anda pelas ruas perguntando se alguém a conhece. Mas as drogas cada vez mais ocupam espaço em sua mente, principalmente quando, cansado do “pacote de serviços” de Claire, procura outro drug dealer chamado Nick – Tilt Tyree.
Jack começa a ter lembranças cada vez mais intensas do passado em sequências de flashbacks: as discussões com sua namorada, o fracasso profissional, o relacionamento com o irmão. Sequências que se alternam com as experiências lisérgicas na Tailândia. Sua mente torna-se cada vez mais confusa, misturando ficção e realidade, quase esquecendo do propósito principal: descobrir a verdade de sua mãe e o motivo do abandono
Gabriella sempre aparece nos momentos mais agudos, como uma espécie de consciência, tentando passar algum tipo de sabedoria ou conforto, logicamente com forte inspiração budista.
Logo compreendemos que estamos acompanhando o despertar espiritual de Jack e suas lutas internas. Mas, principalmente, de que aquela realidade que está vivendo pode ser colocada em xeque, principalmente depois da simbólica frase de Gabrielle: “a vida continua em diversas dimensões”.
As ilusões cármicas – aviso de spoilers à frente
Toda a narrativa de Bardo Blues corresponde ao drama vivido por um espírito no segundo bardo: a das ilusões cármicas. Sexo e drogas são as projeções de um padrão repetitivo naquela Tailândia etérica de formas-pensamento. Fiel ao “Livro Tibetano dos Mortos”, o filme nos revela como nesse momento pós-morte (o bardo da vacuidade) o conteúdo da mente é projetado, tornando-se tudo visível como num sonho.
Nesse momento, o visível sempre se amoldará às crenças e criações mentais da vida anterior. Por exemplo, cristãos poderão vislumbrar purgatórios, infernos e paraísos. Como no caso de Jack, corroído pela culpa por ter provocado um acidente que matou seu irmão, vive a polaridade “Céu/Paraíso” do hotel de Gabrielle e o “Inferno” da casa de prostituição e drogas de Claire.
A abordagem de Bardo Blues lembra bastante o filme Enter The Void, de Gaspar Noé. Porém, com uma flagrante diferença. Ao contrário do cético Noé, a diretora Marcia Kimpton é budista. Como observamos na análise de Enter The Void (clique aqui), paradoxalmente os melhores filmes religiosos são feitos por ateus ou céticos. Isso parece dar um enfoque imparcial e sincero. Como em Enter The Void, dirigido por um diretor que não acredita em qualquer tipo de existência pós-morte.
Bardo Blues confirma essa hipótese. Em muitos momentos, o filme se torna apologético, propagandístico, muitas vezes com um tom de autoajuda. O que não tira o mérito de trazer para atualidade o milenar “Livro Tibetano dos Mortos”, guia sagrado do budismo tântrico tibetano. Verdadeiro manual para a consciência que deverá atravessar as diversas dimensões após a morte.
Ficha Técnica
Título: Bardo Blues
Diretor: Marcia Kimpton
Roteiro: Marcia Kimpton, Mark Haining
Elenco:Stephen McClintic, Marcia Kimpton, Gina Haining, Brian Gross, Tilt Tyree
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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