quarta-feira, setembro 21, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Embora ambientado na ansiedade coletiva frente à proximidade do “bug do milênio” do ano 2000, "Songs From The Second Floor" do sueco Roy Andersson não perdeu nada da sua atualidade e relevância. No filme, o colapso financeiro e a crise espiritual são os dois lados de um mesmo movimento marcado ao mesmo tempo pela fé e angústia diante de instituições econômicas e religiosas que não funcionam. Tudo narrado com muito humor negro e "non sense".
Quando pensamos na Suécia ou
nos países escandinavos lembramos “daquele lugar com chocolate” ou de uma
sociedade economicamente justa e com um louvável senso de igualdade. Mas desde
os atentados terroristas impetrados por um jovem noruegues direitista, passamos a
prestar a atenção para o “dark side” da cultura nórdica tal como o forte
movimento Death e Black Metal, o latente espírito Viking rodeando a cultura
jovem, e o existencialismo cristão do filósofo dinamarquês Kierkegaard que
mescla a fé com a angústia (muito presente nos filmes do sueco Ingmar Bergman,
por exemplo).
"Songs from the Second Floor" (Prêmio do Juri no Festival de Cannes de 2000) é uma comédia com forte humor negro
e “non sense” que aponta para esse lado sombrio. Dirigido e escrito pelo sueco Roy Andersson, o filme é uma surpreendente colagem
de referências estéticas tais como “Fargo” dos irmãos Coen, “Playtime” de
Jacques Tati, os ambientes sombriamente cleans de Kubrick, as pinturas de
Edward Hooper (incluindo a versão ao inverso da sua obra-prima “Notívagos”,
como se fosse vista de dentro para fora) e o humor “non sense” do grupo inglês
Monty Phyton.
Com esse filme Andersson
iniciou uma trilogia, cuja continuação foi “Vocês, os Vivos” (2007) e uma
terceira continuidade esperada para 2013.
A narrativa é composta por uma
série de “sketches” onde a câmera numa se movimenta. Andersson pretende que o
espectador mantenha uma relação intensiva com os planos, assim como quando
observamos um quadro em um museu (daí as constantes alusões a telas do pintor
norte-americano Edward Hooper). As vinhetas são a princípio fragilmente
interligadas, mas, aos poucos, começamos a perceber certas recorrências como um
enorme engarrafamento sem fim (várias vezes os personagens perguntam “como sair
daqui?” ou “onde estou?”) onde ninguém consegue chegar a lugar algum e a
referência constante à ideia de que a vida se resume “a comprar algo que possa
ser vendido com um zero extra.”
As estórias são compostas por
“perdedores”, em sua maioria corretores de bolsa e empresários que testemunham
assombrados a ruína da sociedade, quadro a quadro. Ah!... e também um mágico
incompetente que tenta serrar um voluntário ao meio e acaba quase partindo-o!
Constantes alusões às telas de Edward Hooper tal como a clássica "Notívagos" - relação intensiva com os planos
O mundo parece cair aos pedaços
logo na primeira sequência onde um homem é demitido após trabalhar 30 anos em
uma empresa e, no seu desespero, em súplica, se agarra aos pés do chefe que
simplesmente o arrasta ao longo de um corredor kubrickianamente vazio e muito
claro. Depois vemos um rotundo vendedor de móveis falido e desesperado no metrô
chamado Pelle (Lars Nordh), coberto de fuligem e segurando um saco com tudo que
restou do seu negócio: ele tocou fogo na sua própria loja para poder receber o
dinheiro do seguro.
Em meio a um congestionamento
de veículos interminável aprisionando pessoas solitárias e quebradas
financeiramente, um homem cria uma oportunidade comercial com a
chegada do Natal e a possibilidade do apocalipse com o Y2K (o chamado “bug do
milênio”): vender estatuetas de madeira com Cristo crucificado. O homem
tranquiliza Pelle afirmando que o negócio tem tudo para dar certo com a proximidade da data do aniversário de Jesus. Como Pelle fala, tudo o que ele quer é "colocar comida
na mesa da sua casa".
O denominador comum do filme é
a princípio a economia e o dinheiro como a raiz de todos os males, inclusive
espirituais. Nos sketches estão presentes a hipocrisia da religião organizada,
o capitalismo corrupto, o progresso que leva à inutilidade da existência e à
solidão etc.
Mas há algo de mais incômodo e
radical sugerido por Roy Andersson que torna esse filme de 2000 atual e
profético: a aproximação entre a crise religiosa com a crise financeira global.
Economia, Kierkegaard e a fé
Como já viemos desenvolvendo em
algumas postagens anteriores (veja links abaixo), a partir das ideias de
autores como Karl Marx, Jean Baudrillard e da antropologia, longe de ser uma ciência
exata, a economia possui na sua essência e funcionamento um núcleo metafísico e
ritualístico. Como Karl Marx sugeriu com a discussão do Fetichismo da
Mercadoria na sua obra máxima “O Capital”, o funcionamento do capitalismo é,
basicamente, feitiço e magia ao transmutar trabalho em mercadoria e mercadoria
em dinheiro. Ou ainda em Baudrillard, onde a economia é concebida como puro
“Potlatch”(instituição de tribos
indígenas da América do Norte onde se distribuía e destruía a riqueza própria).
Em outras palavras, tal como na religião a economia é
fundamentada na fé (ou “credibilidade”) dos seus agentes econômicos em relação
a instituições tão abstratas (“mercado”, “valor” etc.) como as das religiões.
Essa aproximação que Roy Andersson faz entre a crise
econômica e a religiosa somente é possível com toda a carga do existencialismo
cristão de Kierkegaard presente na cultura nórdica.
Soren Kierkegaard (1813-1855): Fé e angústiadiante do Infinito
Para o existencialismo cristão de Kierkegaard fé e
angústia são os dois lados de uma mesma moeda.
Como um ser que se reconhece
finito o homem se encontra como o momento da realização de uma totalidade
infinita, de uma realidade que o ultrapassa, a Divindade. O Cristianismo tenta resolver
essa angústia de forma paradoxal através da união transcendente de Deus e do
homem na pessoa de Jesus Cristo. O problema é que essa revelação da Verdade não
foi feita por meio de pompas e circunstâncias, mas foi encarnada por meio de um
homem obscuro que morreu como um criminoso na cruz. Dessa forma o acesso à
Verdade somente foi possível por meio do paradoxo e do absurdo. Por isso, a fé
poderia ser resumida da seguinte maneira: “Creio porque é absurdo”.
A mediação entre o Infinito e o finito, entre o homem
e Verdade, somente é possível pelo paradoxo e absurdo que representa a fé. No
filme “Songs fron the Second Floor”, vemos o homem simultaneamente perder a fé
tanto na economia como na religião, por serem ambas resultantes de mediações
absurdas entre homem/Deus e homem/mercado.
A angústia de Pelle em não conseguir trazer comida
para a mesa da sua casa diante do caos e irracionalidade da crise econômica
corresponde à perda da fé do homem que vê o fracasso em vender estátuas de
Cristo crucificado: “como pude acreditar em um perdedor!”, grita desesperado o
homem de negócios.
Angústia e Culpa
A angústia dos personagens do filme de Roy Andersson
está na descoberta do absurdo na crença nas instituições abstratas que fazem a
mediação entre o homem e o infinito. A crença no cálculo racional (a vida nada
mais seria do que “comprar algo em que se possa colocar um zero extra”) leva ao
caos e a irracionalidade do todo (o congestionamento “infinito” que é o pano de
fundo de várias sequências); ou ainda a sequência em que representantes da
Igreja empurram ritualisticamente para o abismo uma menina com os olhos
vendados: simbólica sequência em que representa o assassinato do futuro e da
esperança em nome da manutenção de um sistema que se esfacela.
A magistral cena final: Cristo jogado no lixo em um mundo pós-apocalipse
Mas o resultado de toda essa angústia é a culpa e os
seus fantasmas que passam a perseguir Pelle: o fantasma de um jovem enforcado
pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial e o fantasma da menina de olhos
vendados insistentemente tentando dialogar com Pelle que foge a todo custo.
Culpa e angústia: assim como na religião onde a
Verdade somente pode ser revelada por meio do assassinato de Cristo, na
economia a realização da riqueza e do valor somente pode se realizar por meio
da violência e destruição cíclica de vidas humanas. E são justamente esses fantasmas
(Cristo morto na cruz e as jovens vítimas) que acompanham Pelle na magistral
cena final em uma terra arrasada diante de uma pilha de estatuetas de Cristo de
madeira jogadas no lixo.
“Songs from the Second Floor” pode não trazer muita
esperança, mas, pelo menos, nos permite rir do juízo final embora não seja
muito fácil. Embora o filme seja ambientado no patético pânico diante da iminência
do “bug do milênio” do ano 2000, o filme não perdeu nada da sua atualidade e
relevância, principalmente quando vemos a Europa atual em meio à crise
financeira e, ainda, assombrada pelos seus fantasmas habituais: xenofobia,
racismo e neofascismo.
Ficha
técnica
Título:
Songs From the Second Floor (Sanger Fran Andra Vaningen)
Direção:
Roy Andersson
Roteiro:
Roy Andersson
Elenco:
Lars Nordh, Stefan Larsson e Bengt Carlsson
Produção:
Danmarks Radio, Easy Film, Nordisk Film & TV-Fond
Distribuição: New Yorker Films (EUA), Europafilm AS
Cinegnose participa do programa Poros da Comunicação na FAPCOM
Este humilde blogueiro participou da edição de número seis do programa “Poros da Comunicação” no canal do YouTube TV FAPCOM, cujo tema foi “Tecnologia e o Sagrado: um novo obscurantismo?
Esse humilde blogueiro participou da 9a. Fatecnologia na Faculdade de Tecnologia de São Caetano do Sul (SP) em 11/05 onde discutiu os seguintes temas: cinema gnóstico; Gnosticismo nas ciências e nos jogos digitais; As mito-narrativas gnósticas e as transformações da Jornada do Herói nas HQs e no Cinema; As semióticas das narrativas como ferramentas de produção de roteiros.
Publicidade
Coleção Curtas da Semana
Lista semanalmente atualizada com curtas que celebram o Gnóstico, o Estranho e o Surreal
Após cinco temporadas, a premiada série televisiva de dramas, crimes e thriller “Breaking Bad” (2008-2013) ingressou na lista de filmes d...
Terça - Feira, 15 de Abril
Bem Vindo
"Cinema Secreto: Cinegnose" é um Blog dedicado à divulgação e discussões sobre pesquisas e insights em torno das relações entre Gnosticismo, Sincromisticismo, Semiótica e Psicanálise com Cinema e cultura pop.
A lista atualizada dos filmes gnósticos do Blog
No Oitavo Aniversário o Cinegnose atualiza lista com 101 filmes: CosmoGnósticos, PsicoGnósticos, TecnoGnósticos, AstroGnósticos e CronoGnósticos.
Esse humilde blogueiro participou do Hangout Gnóstico da Sociedade Gnóstica Internacional de Curitiba (PR) em 03/03 desse ano onde pude descrever a trajetória do blog "Cinema Secreto: Cinegnose" e a sua contribuição no campo da pesquisa das conexões entre Cinema e Gnosticismo.
Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
Neste trabalho analiso a produção cinematográfica norte-americana (1995 a 2005) onde é marcante a recorrência de elementos temáticos inspirados nas narrativas míticas do Gnosticismo.>>> Leia mais>>>
"O Caos Semiótico"
Composto por seis capítulos, o livro é estruturado em duas partes distintas: a primeira parte a “Psicanálise da Comunicação” e, a segunda, “Da Semiótica ao Pós-Moderno >>>>> Leia mais>>>