“I Am Mother” (2019) é o “Matrix” do século XXI? Novamente vemos a humanidade se confrontando com sombrias inteligências artificiais. Dessa vez não estamos mais prisioneiros num mundo virtual. Mas agora numa “instalação de repovoamento” subterrânea após a extinção da espécie humana. Milhares de embriões congelados gerenciados pela “Mãe”, um androide com funções de criar, educar e amar os novos humanos que reiniciarão a História. A Mãe cria a primeira “Filha” que aos poucos descobrirá que nada é o que aparentar ser: Por que um androide “Mãe” com um design militarizado análogo a um Robocop? Por que a “Mãe” possui parâmetros morais tão utilitaristas? Por que apenas um embrião foi descongelado entre milhares? Mas a verdade virá lá de fora, do novo “deserto do real”.
Qual a essência do gênero ficção científica no cinema? Certamente é narrar visões sobre o futuro da espécie humana. Mas desde Planeta dos Macacos (1968), essa espécie de futuro do presente clássico das utopias sci-fi foi substituído por um futuro do pretérito: distopias sobre um futuro que não deu certo. Poderia ter dado, mas a humanidade se autodestruiu.
Desde então, esse gênero cinematográfico começou a derivar para a ação e o terror: batalhas interplanetárias, guerras de extermínio, sobreviventes em planeta devastados entrando em confrontos, a ameaça do canibalismo, mortos-vivos, monstros e predadores implacáveis, catástrofes cósmicas como buracos negros ou cometas etc.
Por isso, ao longo das décadas, o mainstream do gênero perdeu a capacidade de especular sobre o futuro, fazer a ficção científica real – explorar ontologias paradoxais sobre as relações do homem com a tecnologia. Principalmente, porque na História as máquinas, Ciência e tecnologia nos trouxeram a percepção inaugural de futuro. A História como progressivo desenrolar de eventos que nos levará para algum ponto no futuro.
Essa ficção científica, por assim dizer, ontológica encontrou seu auge em Matrix (1999) das irmãs Wachowski ao injetar no gênero visões cosmológicas e filosóficas do Gnosticismo, seguindo a linha de escritores gnósticos como Philip K. Dick. Não temos apenas ação e terror: há uma séria discussão ontológica ou metafísica sobre o papel do homem nesse cosmos. Pelo menos, no primeiro filme da trilogia.
I Am Mother (2019, disponível na plataforma Netflix) não apenas acrescenta à galeria sci-fi mais uma espécie de robôs e inteligências artificiais que tramam contra a espécie humana, desde o seminal HAL 9000 de 2001. Assim como Matrix, o filme dirigido por Grant Sputore e escrito por Michael Green acrescenta a vertigem da cosmologia gnóstica: será que as nossas relações com as máquinas, a ponto de deixar os nossos próprios destinos nas mãos delas, reproduz a própria ontologia humana na qual nosso destino é determinado por uma divindade demiúrgica?
Se em Matrix, as máquinas subjugaram a espécie humana como se nosso planeta fosse um fracta que reproduz em si mesmo um padrão cósmico, em I Am Mothertanto a relação mãe-filha, máquina-homem e cosmos-humanidade se igualam como eventos fractais que reproduzem, em escala cada vez mais micro, um padrão total – a submissão humana a um poder demiúrgico tão total que é capaz de incutir a própria rebeldia no homem para fortalecer ainda mais os laços de dominação.
Por isso, para muitos espectadores, I Am Mother pode ser um daqueles filmes que ao final podemos praguejar: “perdi duas horas da minha vida com isso?” – pessoas tendem a rejeitar em que no final o bem não ganha ou, o que é pior, termina de forma enigmática.
O Filme
O personagem do título (a “Mãe”) é um robô humanoide que possui uma sofisticada inteligência artificial, que vive em uma instalação de pesquisa subterrânea. O mundo foi devastado por uma guerra nuclear e a humanidade foi apagada da superfície do planeta. Sobraram apenas milhares de embriões humanos estocados naquela estação subterrânea, com a missão de repovoar o planeta.
O androide (dublada pela voz de Rose Byrd) tem acesso a uma coleção de 63 mil embriões congelados, até que um dia decide conceder vida a um deles que se tornará “Filha” (Clara Rugaard).
Os parâmetros do androide são cumprir à risca todas as funções que uma família e a própria sociedade representam para uma criança: como pai, mãe, cuidadora, professora e fonte de afeto e conhecimento da herança humana da Filosofia, Ciência até os fundamentos éticos e morais.
Na primeira meia hora de narrativa acompanhamos a relação mãe-filha: a mãe amorosa e protetora com uma filha benevolente e atenta às ordens maternas. Percebe-se que nas aulas sobre Ética e Filosofia (o androide chega até a recorrer a Kant), Mãe constrói uma visão de mundo através de casos em que se simulam impasses morais mostrando como o valor intrínseco à vida humana supera a ética utilitarista – razão pela qual a humanidade teria se auto-destruído.
E as máquinas seriam árbitros perfeitos: encarnariam os próprios imperativos categóricos éticos universais. Instrumentos perfeitos para ajudarem a dar um reboot na humanidade, dessa vez com princípios corretos.
De início, três coisas nos causam estranheza: primeiro, o design do androide parece muito mais com o de uma máquina de combate ao estilo Robocop. Ao contrário do que seria uma máquina desenhada para transmitir afeto e conhecimentos à nova humanidade.
Segundo, se aquela instalação possui a missão de repovoamento, por que a Mãe descongelou apenas um embrião para ser cuidado e crescer até a maturidade?
E o terceiro ponto, definitivamente para deixar com uma pulga atrás da orelha, é uma rápida discussão numa aula sobre princípios éticos. A Filha se surpreende com o ponto de vista utilitarista da Mãe: às vezes, o sacrifício da vida de muitos é necessário para salvar a vida do melhor representante da espécie. Mas, e o valor intrínseco de toda vida humana? Todos não teriam o direito de viver? Cadê Kant?
Esse estranhamento inicial se acentua com a chegada de um visitante inesperado. Pela primeira vez em sua vida, a filha tem contato com o mundo exterior que, segundo a mãe, estaria devastado e contaminado, impossibilitando qualquer forma de vida.
Uma mulher (Hilary Swank), ferida por uma bala, carregando na mochila uma arma, um livro com vários esboços artísticos de rostos humanos. Agressiva e desconfiada, a Mulher aceita a ajuda da Filha que, a princípio, a esconde da Mãe com medo que a máquina tome medidas drásticas para evitar uma possível contaminação da instalação – assim como incinerou um pequeno rato intruso, numa sequência anterior.
O problema é que aquela sobrevivente tem uma história bem diferente para contar para a Filha: os androides não são de confiança e que todo o caos existente no mundo exterior foi um resultado direto deles, na tentativa de dominar a humanidade.
A maioria do filme se desenvolve como uma peça teatral com a dupla feminina e o androide “fêmea” – a visitante tentando convencer a Filha que sua Mãe não é de confiança.
Assim como nas relações familiares fechadas, a curiosidade e a necessidade de expandir o conhecimento sobre o mundo, serão o combustível para aos poucos a Filha ser convencida das verdadeiras intenções das máquinas.
Máquinas e a nietzschiana “vontade de potência” – alerta de spoilers à frente
O acirramento do conflito e da desconfiança em relação às reais intenções da Mãe acabam confirmando aqueles elementos de estranhamento revelados na primeira metade do filme.
O enigmático final revelando que tanto a Filha quanto a invasora faziam parte de um sinistro plano maior gestado pela Inteligência Artificial lembra bastante o argumento do filme Transcendência (2014): se um dia a Inteligência Artificial superar a humanidade, não será por um maligno plano de extermínio da raça humana.
Será por pura “vontade de potência” nietzschiana: a vontade que procura expandir-se, superar-se, juntar-se a outras e se tornar maior. Tudo no mundo é Vontade de Potência porque todas as forças procuram a sua própria expansão. A vontade de dominar, fazer-se mais forte, constranger outras forças mais fracas e assimilá-las.
Um plano tão perfeito e totalitário que inclusive previu a substituição das máquinas por novos seres humanos: dessa vez, educados, instruídos e orientados pela “Mãe”.
Uma inteligência Artificial com parâmetros morais tão utilitaristas (a vida de muitos precisa ser sacrificada pela sobrevivência dos melhores) que entendemos até onde chega a vontade de potência das máquinas: a Eugenia – na verdade, a “instalação de repovoamento” é um assombroso projeto eugênico de busca do espécime de embrião perfeito para a criação de um “brave new world” habitado por humanos “perfeitos”, porque “amados” pela “Mãe”. Ao custo do sacrifício de milhares de embriões humanos “imperfeitos”.
Até alcançar o estado da arte com a “Filha”, cuja rebelião foi planejada até o último detalhe. Nada mais demiúrgico.
I Am Mother é o Matrix do século XXI.
Ficha Técnica
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Título: I Am Mother
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Diretor: Grant Sputore
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Roteiro: Michael Loyd Green
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Elenco: Rose Byrne, Clara Rugaard, Hilary Swank
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Produção: The Penguim Empire, Southern Light Films
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Distribuição: Netflix
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Ano: 2019
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País: Austrália
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