sábado, março 03, 2012

As Feridas da Civilização do Automóvel no Filme "Crash - Estranhos Prazeres"

Ao mostrar pessoas que constroem uma estreita relação entre acidentes automobilísticos, prazer sexual e morte o  filme “Crash – Estranhos Prazeres” (Crash, 1996) do cineasta David Cronenberg torna-se perturbador não somente por explorar os limites entre a pornografia e a violência. O que há de inquietante nesse filme é a possibilidade de estarmos não apenas diante de perversões e obsessões de personagens perdidos em um submundo, mas diante do fato de que a tecnologia atual torna-se um atraente fetiche e objeto de fantasias de fusão entre metal e carne, despertando forças do inconsciente que estavam adormecidas.

Desde a Revolução Industrial e a invenção de máquinas cada vez mais poderosas e fascinantes, críticos, teóricos, artistas plásticos e cineastas têm explorado os efeitos das tecnologias. Fundador do movimento futurista, Marinetti defendia os efeitos da tecnologia: velocidade, mudança, limpeza e purificação. Os surrealistas foram rápidos em explorar as conexões entre tecnologia e desejo. Buñuel em seu escandaloso filme “Um Cão Andaluz” (Un Chien Andalou, 1929) retrata um homem sexualmente excitado pela visão de uma jovem mulher atropelada por um automóvel em alta velocidade.

Três décadas antes, Emile Zola fazia uma conexão similar no livro “A Besta Humana” onde escrevia: “Ela adorava acidentes: qualquer menção de um animal atropelado, um homem cortado em pedaços por um trem, obrigava-a a correr para o local”.

Épicos envolvendo desastres produzidos por máquinas fascinaram o cinema desde o início: “Titanic” (versões 1953 e 1997), “Inferno na Torre” (1994), Aeroporto (1970), sem falar os filmes sci fi que exploram as relações entre homem e robô (“Metrópolis”- 1927), homem e ciborgue (“Exterminador do Futuro”, 1984), carne e metal (“Tetsuo, The Iron Man”, 1989) e o amor entre homem e uma replicante (“Blade Runner”, 1982)

Baseado no livro homônimo de J.G. Ballard, o filme “Crash – Estranhos prazeres” do diretor canadense David Cronenberg vai associar-se a esse rico patrimônio, porém de uma forma radicalmente diferente ao erotizar os dois principais fundamentos da modernidade: a tecnologia e o acidente. Se o pesquisador francês Paul Virilio estiver correto, esses dois fundamentos estruturam a experiência da modernidade: “toda tecnologia que é inventada, toda nova energia que é aproveitada, todo novo produto que é fabricado, também inventa uma nova negatividade, um novo tipo de acidente” (Veja VIRILIO, Paul. “Velocidade e Informação - Cyberspace Alarm!”)


Na época em que foi lançado “Crash” foi encarado como um filme vanguardista “estranho” e “bizarro” ao explorar o limite entre o pornográfico e a violência: apertadas roupas de metal, vidros estilhaçados, volantes ensaguentados, dois sobreviventes de um acidente transando em um carro, um homem fazendo sexo excitado pelos ferimentos na perna de uma mulher vitimada por acidente automobilístico, um artista fetichista que reencena de forma realista para uma plateia o acidente de carro que matou James Dean.

Em consequência de uma batida com seu automóvel, Ballard (James Spader) conhece uma mulher que o conduzirá ao reino de pessoas fascinadas por carros, lideradas pelo artista performático obcecado por James Dean chamado Vaughan (Elias Koteas), que constrói uma estreita relação entre o objeto mecânico, o prazer e a morte. A uma certa altura do filme Vaughan anuncia que seu trabalho é "entender as transformações físicas do corpo depois da máquina" para, mais tarde, contar que isso é apenas "uma maneira de atrair e testar os novatos" para sua verdadeira causa: a libertação espiritual pela tecnologia.

Nesse estranho mix de erotismo, acidentes e espiritualidade, Cronenberg nos defronta com a natureza do desejo na era pós-moderna: o oposto do ideal romântico de beleza, verdade e integridade, mas, agora, marcado por uma espécie de “cultura do acidente”: divisão, simulação, brutalidade, obscenidade e perversidade.

Feridas na Fusão tecnológica

O filme não é tão chocante como os filmes anteriores como Videodrome (Videodrome) e “A Mosca” (1986), mas em “Crash” Cronenberg vai novamente abordar de forma mais radical um tema recorrente em sua cinematografia: a fusão da tecnologia com a carne humana, dessa vez através da ferida e erotização.

Que o automóvel é um objeto de desejo central na sociedade de consumo por causa da promoção publicitária das linhas elegantes, perfeitas, moldadas em metal reluzente prometendo uma potencial fusão com a carne humana (a famosa expressão “cabeça, tronco e quatro rodas”) isso não é novidade. O que o escritor Ballard e Cronenberg fazem é ir além através da erotização dos acidentes automobilísticos e feridas consequentes, arrancando disso a possibilidade de uma experiência espiritual (epifania?). O que os autores colocam em questão é a conexão entre tecnologia, acidentes e o fascínio do público por catástrofes e mortes.

Mark Seltzer (autor do livro “Bodies and Machines”, 1992) analisa o fascínio do público por acidentes de carros, assassinatos em série e outras formas de violência transformadas em espetáculo. É o que ele chama de “esfera pública patológica”, uma “reunião coletiva em torno do choque, trauma e ferida”. O fator-chave para a constituição dessa esfera pública seria o erotismo: a ferida e suas estranhas atrações como a encruzilhada entre a fantasia erótica privada e o espaço público.

Por exemplo, o fascínio e controvérsias pela morte da princesa Diana em um acidente automobilístico indica como a cultura está profundamente enraizada no acidente, muito mais do que em substâncias (a velha distinção aristotélica entre substância e acidente, sendo que no pós-moderno o segundo se sobrepõe ao primeiro).

Feridas e fetiches religiosos

A pesquisadora e professora de Estudos em Cinema e Cultura da Universidade de Melbourne Bárbara Creed vai mais longe e afirma que esse simbolismo imagem do sangramento da ferida não é nova.
“Em certo sentido, sempre houve uma esfera patológica público, mas no século XX foi secularizada e popularizou através dos mass media. Na religião cristã, feridas sangrando de Cristo foram por séculos objetos de devoção, iconografia, pintura narrativa e milagres. As feridas de São Sebastião têm sido fetichizadas na pintura, e as marcas do estigma são considerados como um sinal de santidade extrema. No início do século XX Freud amarrou o significado da ferida que sangra a diferença sexual, que significou o castrado genital feminino, a visão de que criou medo no homem e, supostamente, levou à fundação da cultura patriarcal.” (CREED, Barbara. "The Crash Debate: Anal Wounds, Metallic Kisses", Screen 39:2, 1998)
Da religião à Psicanálise, a ferida foi fetichizada e erotizada.  Podemos encontrar esse mesmo processo no cinema, mais especificamente no gênero de Terror. Por exemplo, nas mutações que podemos perceber na figura e natureza dos monstros: dos seres monstruosos “sólidos ou antropomórficos” do Horror clássico como Frankenstein, Lobisomem, Drácula etc., para os chamados “monstros moles” (para usar a terminologia de Omar Calabrese da obra “A Idade Neobarroca”, Edições 70, 1999) encontrados desde os zumbis (feridas e pústulas ambulantes) passando pelos assassinos seriais como Fred Kruger (deformado por feridas de queimaduras) e monstros disformes como em “Cloverfield” (2008) até chegar aos moradores de um prédio deformados por feridas viróticas no filme “REC” (2007) ou monstros híbridos como em “Splice – A Nova Espécie” (2009).

Em uma entrevista o escritor J.G. Ballard explicava que “Crash tratava de que modo as novas tecnologias poderiam, de maneira terrível, despertar certas forças do inconsciente que estiveram adormecidas. O que me interessava era a psicologia do automóvel, a psicologia  de uma violência potencial que há nos carros e a sexualidade que pode haver no desastre” (“Crash” In: Folha de São Paulo, 31/01/1997).

Por isso, o que há de mais perturbador no filme de Cronenberg é tanto de estarmos testemunhando obsessões ou perversões, mas a possibilidade de estarmos diante de uma revelação: a de que as tecnologias há muito tempo deixaram de serem meras ferramentas que potencializam o corpo humano, para se transformarem em verdadeiras próteses que superam os limites do orgânico. Mais poderosas e perfeitas que o orgânico, tornam-se fetiches atraentes e objetos de fantasias de fusão, nem que seja por meio de um acidente em que se una de forma fatal metal e carne.

Definitivamente, o cineasta David Cronenberg tornou-se o visionário dessa era, cujo ápice podemos encontrar no filme “eXistenZ (1999) onde joysticks vivos de carne com botões que parecem os de seios femininos controlam vídeo games mortais onde o jogador se funde com mundos virtuais.

Ficha Técnica

  • Título: Crash – Estranhos Prazeres (Crash)
  • Diretor: David Cronenberg
  • Roteiro: David Cronenberg baseado no livro homônimo de J.G. Ballard
  • Elenco: James Spader, Holly Hunter, Elias Koteas, Holly Hunter, Deborah Unger, Rosanna Arquette
  • Produção: Alliance Communications Corporation
  • Distribuição: Columbia TriStar Home Video
  • Ano: 1996
  • País: Canadá e Reino Unido

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