Conceito de Zygmunt Bauman, a “Modernidade
Líquida” aqui no Brasil assume aspectos
dramáticos, como um Projeto que deve ser colocado em prática a todo custo: a
drenagem do Estado até a sua liquefação e a transformação em mero gestor de “fluxos”.
Um sintoma foi o incêndio do Museu Nacional no Rio. Mas, principalmente, as
notícias em torno do futuro do Museu: investigações com alta tecnologia e a
possibilidade de imprimir réplicas em 3D a partir de fotos do patrimônio
perdido. É notável que toda essa sofisticação não estivesse disponível para
mantê-lo sólido e em pé. Só entrou em cena depois que o Museu desapareceu! A
ideia de liquidez transformou-se em algo muito além de uma categoria econômica:
virou uma espécie de “a priori” cognitivo, no qual não há sentimento de luto ou
perda que poderiam promover crítica ou indignação. O pensamento “líquido” transforma catástrofes e
tragédias como essas em vulgata ou banalidade: a tecnologia poderá trazer tudo
de volta mesmo...
Os leitores deste Cinegnose devem estar percebendo que as últimas postagens cada vez
mais vem explorando os conceitos de “liquefação” e “modernidade líquida”.
Logicamente, conceitos originados das reflexões do sociólogo polonês Zygmunt
Bauman (1925-2017).
Devo confessar que este humilde
blogueiro tinha uma certa resistência em ver algo inovador no conceito de
Bauman. Afinal, desde o livro clássico de Marshall Berman, “Tudo Que é Sólido
Desmancha no Ar – A Aventura da Modernidade” e as reflexões dos chamados “pós-modernos”
(Lyotard, Baudrillard, Derrida etc.), acreditava que essa ideia de liquefação
da Modernidade já estivesse nessas discussões anteriores como uma consequência
natural de um processo de desmaterialização: a precessão dos simulacros e
simulações, a crise das meta-narrativas, a diluição da noção de Verdade nos
jogos de linguagem etc.
Portanto, parecia que Bauman criava
novos nomes para velhos conceitos. Mas o episódio do incêndio do Museu Nacional
no Rio de Janeiro, colocado em perspectiva no contexto atual no qual o
horizonte neoliberal é oferecido como única opção para os brasileiros, mostrou
a originalidade da reflexão do pesquisador polonês.
Pode parecer paradoxal falar que um
incêndio tenha a ver com a ideia de algo que se torne líquido. Mas em países
(ex)emergentes como o Brasil, no qual à fórceps se impõe o consenso de medidas
como terceirização, flexibilizações, privatizações, livre comércio,
desregulamentações etc., acredito que essa noção de “modernidade líquida”
torna-se bem evidente. Como uma espécie de paradigma, visão de mundo ou
princípio lógico mais profundo. Visível não só no trágico incêndio, mas também
nas medidas que vão sendo tomadas para a reconstrução.
Três notícias da Modernidade Líquida
Três notícias recentes sobre o Museu
Nacional são sintomas dessa liquefação generalizada em processo no País:
(a) Polícia Federal mobiliza peritos para investigar
Museu Nacional do Rio. Para isso, mobiliza um sofisticado aparato tecnológico
com equipamentos de mapeamento 3D de ambientes, drones e câmera de alta
resolução. O objetivo é identificar a causa do incêndio, por onde começou e
como se alastrou. A sofisticada parafernália vai analisar desde o perfil da queima dos objetos e o padrão
de dispersão da fuligem, para tentar identificar de onde partiu o fogo e
principalmente tentar identificar se foi um incêndio acidental ou intencional a
partir da construção de uma maquete virtual.
(b) Começam
agora a saltar notícias levantando suspeitas de má gestão do museu pela UFRJ: o
Corpo de Bombeiros informou que o Museu não tinha “Certificado de Aprovação”
emitido pela Corporação. E também de que um arquiteto teria denunciado em Julho
ao Ministério Público Federal que o Museu Nacional corria risco de incêndio. A
suposta denúncia falava em “descaso da administração da UFRJ”.
(c) Começou
com o especialista em tecnologia, Ronaldo Lemos, no programa "Estúdio i" da Globo
News. Para aliviar o ar pesado de luto e consternação que pairava sobre os
participantes do programa diante das imagens sobre incêndio e destruição de um
patrimônio histórico incalculável, Lemos acenou com um final feliz: seria
possível através de fotografias e selfies dos visitantes, reproduzir réplicas
com impressoras 3D. Agora, a vice-diretora do Museu, Cristiana Serejo, também
acena com essa espécie de ressurreição virtual do patrimônio incendiado com
réplicas impressas em 3D.
Como abordamos em postagem anterior
(veja links ao final), o incêndio no Museu Nacional se reveste de um papel mais
do que simbólico: é um sintoma de um projeto sócio-econômico que não tem a ver
apenas com a miniaturização do Estado: o Estado tem que ser drenado em seus recursos (que afinal tem
a ver com os da própria sociedade, provenientes do trabalho da economia real)
para o pagamento da dívida pública para os seus credores, a banca financeira –
cuja dívida bruta atual compromete 74% do PIB.
Um projeto que vende para a opinião
pública a “gestão eficiente” mediante dramático corte de gastos públicos,
sempre nas áreas sociais, culturais, educacionais, científicas e tecnológicas
(investimentos voltados para a sociedade real) para liberar a riqueza da
sociedade para ser drenada pelo sistema financeiro. Que pulverizará tudo na
espiral especulativa, numa acumulação de capital sem acumulação de valor – a
essência da financeirização e brutal liquidez global.
Aqui começa a originalidade do pensamento de
Bauman: essa noção de liquidez saiu do mundo hermético dos algoritmos dos
mercados financeiros para se transformar numa categoria de pensamento, numa
espécie de a priori kantiano através
do qual todos os eventos reais podem ser medidos, comparados e avaliados. Dessa
maneira, assim como o Estado é drenado pela banca, também a cognição será
drenada por uma ideia generalizada de liquefação.
Um incêndio “líquido”
Nessas notícias descritas acimas,
estão três sintomas dessa modernidade líquida.
Para começar o próprio incêndio do
Museu: patrimônio científico e histórico, assim como o patrimônio do Estado (estatais,
infraestrutura, riquezas minerais etc.) precisam ser “drenados” (incendiados,
privatizados, transferidos para o exterior, roubados, seja como for) para a sociedade
tornar-se “leve” para correr por esse rio rápido da liquidez.
Politicamente, a esquerda ainda é a
guardiã de uma nostálgica modernidade sólida: Petrobrás, Getúlio Vargas,
sindicalismo, direitos trabalhistas, Constituição, Pré-Sal, nacionalismo etc. Por
isso a atual judicialização da Política – para erradicar de vez a esquerda e
tornar a Política líquida: ao invés de discutir ideologias ou partidos, colocar
em pauta eficiência e gestão. Para quê? Para o Estado finalmente se transformar
num gestor de fluxos no rio revolto da liquidez.
Vejamos a notícia (a) descrita acima:
é notável a sofisticação tecnológica mobilizada e disponível para a Polícia
Federal - para solucionar o sinistro,
através de drones e mapeamento 3D será construída uma maquete virtual do Museu.
De certa forma, e ironicamente, o museu será reconstruído, como uma simulação.
Mas é também notável que toda essa
sofisticação não estivesse disponível para mantê-lo sólido e em pé. Só entrou
em cena depois que o Museu desapareceu!
De forma similar, enquanto a Polícia
Militar, nas suas funções cotidianas e reais nas ruas, dispõe de uma aparato
sucateado, quando há deflagração política com manifestações e protestos tudo
muda: surgem carros blindados negros, reluzentes e importados, além de uma impressionante
variedade de armas e dispositivos antimotim.
Em outras palavras, a nova função do Estado na
modernidade líquida é a gestão dos fluxos: eliminar tudo o que impeça o livre
fluxo (através da “destruição criadora” e virtualização) e reprimir os contra-fluxos:
o momento em que as massas querem também se tornar líquidas e agir como um
contra-fluxo em sentido contrário ao determinado pelo Estado Líquido.
Mas o projeto do Estado Líquido exige
a drenagem máxima dos seus recursos (reservas cambiais) para destruir a solidez
(soberania). E para isso, a figura da banca financeira como eminência parda por
trás da implementação desse projeto (afinal, o mercado financeiro é a própria
personificação da modernidade líquida) deve ser tirada de cena na opinião pública
e grande mídia.
Museu Nacional e Jurassic Park
Nesse ponto entramos na notícia (b): após
o incêndio do Museu Nacional e protestos da comunidade científica e cultural sobre
os cortes arbitrários de verbas, eis que começam a pipocar na grande mídia
notícias sobre “má gestão” e “improbidade administrativa” da UERJ, tentando
tirar da berlinda o Governo e o projeto do Estado Líquido.
Assim como dentro da meta de erradicar
as esquerdas (a “Modernidade Sólida”), o suposto atentado contra Bolsonaro
serve como álibi para a Polícia Federal voltar a linha de investigação para as
possíveis digitais do “Fórum de São Paulo”, PSOL, e carregar nas tintas a
descrição do perfil do agressor como “de esquerda”...
Mas a
notícia (c) é a mais emblemática, por demonstrar o quão fundo se aloja na
cognição o, por assim dizer, “líquido apriorístico”. Não há lutificação ou
sentimento de perda na modernidade líquida. Ou algum tipo de mal estar que
possa despertar a crítica e a indignação. Todas as peças históricas e
arqueológicas perdidas poderão ressuscitar como réplicas, indo muito além da
crítica da “perda da aura” no objeto artístico, como teorizava Walter Benjamin.
Estamos agora falando de ressurreição e indestrutibilidade.
Algo
como um “Jurassic Park” da história brasileira, não através do DNA de um mosquito
pré-histórico. Mas a partir das selfies dos visitantes. Não mais peças ao mesmo
tempo sólidas e frágeis, necessitando de cuidados especializados. Mas agora
convertidos em Gestalt pura, sem mais o estofo da História.
Baudrillard
diria que é a precessão dos simulacros sobre a realidade. Mas para Bauman seria
um fenômeno mais profundo: a categoria de pensamento do “líquido” transforma a
catástrofes e tragédias como essas em vulgata ou banalidade: a tecnologia
poderá trazer tudo de volta mesmo...
Claro
que a Modernidade Líquida não implica necessariamente destruir todos os museus,
como imaginava o Futurismo de Felippo Marinetti. Os grandes museus e
instituições culturais europeias não precisam ser destruídos pelos cortes de
verbas porque eles próprios já foram liquefeitos: transformaram-se em signos
fluidos, atrações turísticas e cartões postais para a indústria do
entretenimento.
Quem
sabe se todas aquelas obras artísticas ou arqueológicas já não são também
réplicas em 3D...
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