No Manifesto Futurista, Marinetti
falava em “destruir museus” para libertar as consciências dos “inúmeros
cemitérios”, e nos prepararmos para o futuro. Em visita ao Rio em 1926,
Marinetti repetiu tudo isso e viu no Brasil um país futurista porque não teria
“nostalgia das suas tradições”... Claro, Marinetti era um iconoclasta. Mas o
Brasil é mais realista que o rei. Leva ao pé-da-letra coisas como “austeridade
fiscal” (cuja realização máxima foi, até aqui, a “PEC da Morte”) que até o
próprio FMI criticou em 2016. O incêndio do Museu Nacional foi um acontecimento
irônico e sincrônico, na cidade em que Marinetti via a “realização acidental”
do futurismo: resultado do neoliberalismo levado à sério num momento em que o
fascismo se aproxima no segundo turno das eleições – um fascismo próximo ao de
Marinetti. E, mais uma vez, o motor dessa austeridade levada à sério foi a
cobertura tautista (tautologia + autismo midiático) pela Globo da catástrofe
científico-cultural. Sinal dos tempos: a cobertura de Carlos Nascimento ao vivo
dos choques dos aviões contra as torres gêmeas em 2001 conseguiu ser mais
objetiva do que os relatos sobre o incêndio, encaixados nos dois eixos
narrativos globais: “esse país é uma merda!” e “corrupção, corrupção e
corrupção...”.
O poeta Menotti Del Picchia era um dos artistas
brasileiros mais entusiasmados com a visita do pai do movimento do Futurismo no
Brasil em 1926. Via o Brasil um país talhado para o Futurismo, por não sofrer
“a nostalgia das tradições e que nunca tivera a preocupação de queimar museus”.
Ao contrário de Marinetti, cujo manifesto futurista na Itália falava em
“destruir museus e fuzilar todos os comendadores”.
Marinetti viu no Rio de Janeiro a própria realização
futurista: favelas que eram “acidentalmente futuristas” e a cidade como “um
fruto tropical que produz um delicioso suco: a velocidade dos automóveis”. Para
retornar ao País em 1936, dessa vez como representante do Governo italiano
fascista de Mussolini, vendo na guerra a realização máxima do Futurismo: a
destruição de toda tradição – leia BARROS, Orlando de, O Pai do Futurismo no País do Futuro, E-Papers, 2010.
É claro que Marinetti era um iconoclasta: jamais mandaria
Roma pelos ares e destruiria museus e bibliotecas. Era a linguagem da
propaganda elevada a condição de arte. Por isso, modernistas como Mário de
Andrade não o levavam a sério e recusavam qualquer comparação do modernismo
brasileiro com o Futurismo.
Mas hoje tudo mudou.
Somos mais realistas que o rei: responsabilidade fiscal, teto de gastos
(a chamada “PEC da Morte” - congelamento por 20 anos dos recursos destinados à
ciência, educação, saúde e cultura) e todo o conteúdo do saco de maldades das
políticas neoliberais aqui são levadas à sério. Enquanto nos países que deram
origem ao discurso do “Estado Mínimo”, desde o crash financeiro de 2008, o
neoliberalismo não resistiu ao rescaldo da crise e foi relativizado até pelo
FMI com críticas em seus relatórios em 2016: as medidas neoliberais “aumentam a
desigualdade e colocam em risco uma expansão duradoura” – clique
aqui.
“Acelerar!”
Dessa maneira, a catástrofe científica e cultural no
incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro mostra como o país que Marinetti
tanto elogiou no poema-reportagem “Brasiliane Velocitá” em 1926 realizou também
ao pé-da-letra os slogans propagandistas do Futurismo. Definitivamente, o
Brasil não sabe brincar...
Num conjunto de
sincronismos, o Brasil pós-golpe torna real os delírios de Marinetti: destruir
o passado, o patrimônio, a História e a memória para nos tornarmos mais leves e
acelerarmos rápido para o futuro – temos até um ex-prefeito e candidato a
governador do Estado de São Paulo obcecado com a ideia de “acelerar”!
Memória, Ciência e História Natural viraram cinzas
justamente na cidade brasileira mais amada pelo fascista Marinetti num momento
em que um candidato fascista de extrema-direita se aproxima das eleições com
reais possibilidades de chegar ao segundo turno – tá certo que Bolsonaro não é
um “fascista” nos moldes de Mussolini, mas é tão deletério quanto...
Para o neoliberalismo brasileiro levado ao pé-da-letra, o
passado pesa demais na nossa corrida para o futuro: Petrobrás, Getúlio Vargas,
trabalhismo, Lula, sindicalismo, estatais, nacionalismo etc.
Para um país que almeja o empreendedorismo, a
terceirização, as flexibilizações, as desregulamentações, as privatizações e o
livre comércio, a redução a cinzas do Museu Nacional é simbólica – os custos da
manutenção do conhecimento e memória pesam demais na futura miniaturização do
Estado. E para o mercado, História e patrimônio não dão lucro. É tudo sólido
demais para a “Modernidade Líquida” (Zygmunt Bauman) tão almejada pelos
luminares do mercado financeiro.
Memória afetiva tautista da Globo
E o tautismo (tautologia + autismo midiático) da emissora
hegemônica de corações e mentes brasileiras, a Rede Globo, é o motor dessas
coisas que aqui foram levadas a sério.
Como não poderia deixar de ser, a cobertura da emissora
do terrível sinistro do Rio de Janeiro foi marcada por uma interpretação
tautista de repórteres e apresentadores que, de tão fechados nas bolhas
televisivas dos estúdios, passaram a relatar o incêndio a partir de uma
narrativa que a Globo faz de si mesma.
O ponta pé inicial dos sintomas começou na Globo News, cobrindo o início da
catástrofe no início da noite do domingo: “pega fogo um museu com DEZENAS de
anos”... Na verdade com duas centenas de anos. Definitivamente, a História é um
problema para a visão de mundo “líquida” da Globo.
A cobertura ao vivo de Carlos Nascimento na Globo durante
os choques dos aviões contra as torres gêmeas em Nova York em 2001 foi mais
objetiva, comparada com a cobertura do traumático incêndio no Rio.
O que se via ao longo da programação eram memórias
afetivas do museu de repórteres e apresentadores falando das suas infâncias
vendo as múmias, o fóssil de 11 mil anos de “Luzia” (que fez parte das
primeiras populações que entraram no continente americano) e os esqueletos de
dinossauros.
Telejornais mostravam repetidamente cenas da novela “Novo
Mundo” (2017) para explicar que o museu foi o endereço da família real no
século XIX e que lá foi assinada a independência do Brasil por dom Pedro I.
Mesmo na tragédia, a Globo precisa marcar a “ferro e
fogo” a ficção global no imaginário brasileiro.
Esse, por assim dizer, tautismo virtual chegou ao ápice
no dia seguinte quando, no programa “Estúdio i”, o especialista em tecnologia
Ronaldo Lemos cantou loas à possível ressurreição do Museu Nacional com
réplicas em impressoras 3D das peças perdidas a partir de fotografias e selfies
que os telespectadores poderiam enviar... Assim como foi feito com o Arco do
Trinfo de Palmira da Síria, destruído pelo Estado Islâmico.
Então o ar de consternação deu lugar a de um leve
otimismo... a iniciativa privada salvará o dia... Mais uma vez, Bauman tem
razão sobre a liquidez dos paradigmas atuais: não há espaço para lutos e perdas
que poderiam criar o impulso para a transformação a partir da dor – tudo pode
ser virtualmente ressuscitado e recriado como réplica. Ou simulacro, como
definiria o pensador francês Jean Baudrillard.
Eixos narrativos globais
Mas um incidente catastrófico
como esse, com terríveis imagens noturnas das enormes chamas das telas globais
na noite de domingo, precisa ser encaixado em uma narrativa tautista. A mesma
que há anos a Globo vem repetindo, um discurso genérico que, entre outras
vitórias, turbinou o impeachment de 2016. Afinal, é necessário levantar o
astral dos brasileiros que precisavam voltar à realidade na segunda-feira.
Uma narrativa composta por dois eixos básicos:
(a) “Esse País é
uma merda!” - Repetidas matérias dos
correspondentes internacionais sobre como os museus europeus são tão rigorosos
com suas treinadas brigadas anti-incêndio e sofisticados sistemas de detecção
de calor. Típica pauta jornalística de contraste para mais uma vez, marcar a ferro
e fogo (literalmente!) que o Brasil é um país que cronicamente não dá certo.
Por isso, temos que levar ao pé-da-letra os “remédios” recomendados para nós.
Somente esquecem de dizer que em países como França e Inglaterra museus não
sofrem os danos das austeridades fiscais. Porque lá as medidas dos “Chicago
boys” são relativizadas. E o anarco-capitalismo ridicularizado.
(b) “Corrupção,
corrupção e corrupção!...” – Quem é
o culpado pelo incêndio do Museu Nacional? Pergunta-se Sandra Annenberg na
bancada do “Jornal Hoje” no dia seguinte. A resposta é disparada como uma
rajada de metralhadora: “burocracia, má gestão, corrupção!...”. Com o início da
busca de culpados na UFRJ que supostamente não repassava as verbas do MEC para
o Museu.
Busca que acabou se concretizando em uma inacreditável
entrevista com o secretário-geral da Associação Contas Abertas: a culpa é do
salário líquido do reitor da UFRJ e do dinheiro destinado para lavar os carros
dos deputados... disparou Gil Castello Branco na Globo News e prontamente repercutida pelo restante da grande mídia.
Definitivamente, 200 anos de Brasil foram mais fatais
para o fóssil “Luzia” do que os 11 mil anos de intempéries.
A única coisa que resistiu ao incêndio foi o meteorito
Bendegó, achado em 1784 no Nordeste: se um objeto extraterrestre sobreviveu à
entrada na atmosfera, não seriam agora as questões terrenas que o destruiriam.
Única coisa que restou: o meteorito Bendegó - um objeto extraterrestre está alheio às questões terrenas |