Vivemos uma sociedade de consumo que
ama tudo aquilo que está cheio: sonhos, sacolas de compras, cabelos. Odeia o
vazio porque cria uma “incontrolável sensação de desgosto”. E os carecas seriam
a síntese de tudo isso que as pessoas temem: carregam o vazio sobre suas
cabeças. Esse é o tema do surreal curta francês “O Futuro Será Careca” (“Le
Futur Sera Chauve”, 2016), de Paul Cabon. Um jovem protagonista cabeludo
descobre numa refeição em família o futuro que lhe espera: a calvície
hereditária. E revela o sintoma de uma sociedade que criou o mito da juventude
como estratégia publicitária sedutora e pervasiva – a inabilidade de crescer e
envelhecer.
Chega um momento na vida que pensar nos cabelos é como
pensar na morte: sabemos que um dia ela chegará, assim como a queda dos
cabelos. E, por razões biológicas e hormonais, principalmente para os homens.
A História nos oferece diversos exemplos das
representações do cabelo: bíblicas como força e sabedoria em Sansão ou Moisés,
os longos cabelos que cobriam a nudez de Afrodite na arte, ou ainda na Grécia
Antiga onde muitas pessoas ofertavam seus cabelos em troca de promessas e o
cabelo estilo moicano como sinal de boa condição social de antigos guerreiros
celtas.
Mas nunca a contradição entre a condição biológica e
cultural se tornou tão crucial como no pós-guerra com o surgimento da sociedade
de consumo e toda a mitologia da juventude como estratégia publicitária
principal de sedução e persuasão.
Os cabelos nas suas diversas formas (topetes, espetados,
com dreadlocks, longos, curtos etc.) tornaram-se símbolos atemporais da
juventude. Muito mais do que representações de ideologias, tribos ou formas de
afirmação racial como os blackpower,
tornaram-se formas de mercadorias. E como toda mercadoria, seu valor é fixado
no mercado pela sua escassez.
Mercadoria perfeita: sabemos que, um dia, os cabelos
cairão totalmente ou perderão o viço, o volume ou a força. É um fato biológico,
assim como a velhice e a morte. Mas numa sociedade que se promove através da
mitologia da juventude, isso significa perda, assim como quando vemos uma
propriedade (uma casa ou um carro) se depreciar e perder o valor. Por isso,
gastaremos ainda mais para mantê-los.
É em torno dessas reflexões em torno dos cabelos (ou a
sua perda) que trata o curta de animação francês O Futuro Será Careca (Le
Futur Sera Chauve, 2016), de Paul Cabon.
Durante uma refeição em família o jovem protagonista
cabeludo finalmente toma consciência da sua triste sina: todos os membros
masculinos da família são calvos ou carecas. E o reflexo da ausência de cabelos
aparece no espelho humano – esse será também o futuro dele, já prescrito desde
o nascimento, em cada célula do corpo, codificado nos genes como uma senteça
inexorável.
O curta é uma narrativa da auto-aceitação das diferença.
Mas também uma crítica às normas sociais: o que determinou que uma
característica física particular fosse inaceitável? Por que as pessoas carecas
são vistas tão negativamente?
Horror ao vazio
Enquanto as pessoas fingem que não é assim tão mau, o que
se vê no cinema é que gente calva ou completamente careca são vilões
mesquinhos, fora de forma e violentos.
Gente feia, pouco confiável, em síntese, perdedores.
Para Paul Cabon, a sociedade de consumo ama somente
aquilo que é “cheio” – cabelo, sacolas de compras etc. Enquanto os espaços
vazios são atemorizantes porque criariam uma “incontrolável sensação de
desgosto”. E os carecas seriam a síntese de tudo isso que a sociedade de
consumo odeia: carregam o vazio sobre suas cabeças. Numa hipérbole surreal,
Cabon nos diz que os crânios dos carecas nos dão uma “vertigem cósmica”.
A partir desse ponto, o cabeludo protagonista imagina
tudo o que perderá na sua vida enquanto caem os fios de cabelo: êxito, uma
“bela e louca companheira”, ser reconhecido pela sociedade, até explorar os
mistérios da natureza humana até alcançar um “despertar místico”.
Paul Cabon |
Dizem que a juventude tornou-se idolatrada no pós-guerra
porque velhos e adultos morreram nos campos de batalha. Sobraram apenas os
jovens para se tornarem modelos de beleza e aceitação para sociedades que eram
reconstruídas.
Porém, por trás de tudo isso, estava o esgotamento da
propaganda como forma de criação de consenso social: com seus slogans e
doutrinações (“uma mentira martelada diversas vezes se torna verdade”, teria
dito o ministro da propaganda nazi Goebbles) a propaganda estava desgastada
pelos horrores da guerra. Surgem a Publicidade e as Relações Públicas, levadas
para os EUA pelo sobrinho de Freud, Edward Bernays (1891-1995), desde que abriu
seu escritório em Nova York: a Psicanálise transformada em ferramenta de sedução
e persuasão, muito mais sutil do que slogans repetidos como tambores militares.
Inabilidade para envelhecer
E então vieram de uma vez só o rock and roll do “Elvis The Pelvis”, o ator e mártir James Dean
morto com o seu topete num carro em alta velocidade, o selvagem da motocicleta Marlon
Brando, as jovens pinups
representadas por Marylin Monroe, até chegar à criação máxima do Instituto
Tavistock (Institute Tavistock of Human Relations, instituição de engenharia
social) na Inglaterra: os cabeludos Beatles, para acelerar a cultura jovem de
consumo em um país ainda conservador. Enquanto os EUA estavam bem à frente.
Cabelos esvoaçantes ao vento em um carro conversível,
sobre moto velozes ou cabelos molhados na chuva como símbolos de liberdade
imortalizados pelo cinema e vídeos publicitários tornaram-se tão pervasivos que
acabaram criando uma inabilidade crônica em crescer e envelhecer. Uma geração
que se tornou conhecida como “Baby Boomer”, que tentou colar em si mesma a
etiqueta do “jovens para sempre”.
Hoje, temos novas gerações, como a ”X”, “Y” e os
“Millennials”. Se no início da sociedade de consumo, a juventude refletia a
abundância do pleno emprego da reconstrução pós-guerra, na atualidade o jovem
se confronta com crises financeiras globais e a recessão dos países chamados
“emergentes”. Economicamente a “juvenilização” do adulto tem uma outra função:
adiar a entrada definitiva no mercado de trabalho com cursos e estágios que
estendem a condição de estudante universitário. E, imaginariamente, a condição
de jovem adulto.
Assim como as catracas das estações de metrô servem de
contenção para as multidões não lotarem as plataformas e se tornarem agressivas
à espera de trens sempre atrasados.
Porém, persiste a crônica incapacidade dos “jovens
adultos” lidarem com o envelhecimento. Principalmente, porque carregam um dos
principais legados que a geração “Boomer” deixou: os computadores, mídias
sociais e dispositivos móveis que prometem a eterna juventude com os seus
aplicativos descolados.
O curta O Futuro
Será Careca é um sintoma de como na atualidade os jovens adultos se tornam
adultos-infantis.
Assista abaixo ao curta. Legendas disponíveis em inglês e espanhol.
Assista abaixo ao curta. Legendas disponíveis em inglês e espanhol.
Ficha Técnica
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Título: O
Futuro Será Careca (Le Futur Sera Chauve) - curta
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Diretor: Paul Cabon
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Roteiro: Paul
Cabon
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Elenco: Animação
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Produção: Wag Prod
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Distribuição: Vimeo
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Ano: 2016
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País: França
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