sábado, dezembro 13, 2025

Escapismo + tecnologia é a tempestade perfeita para os millennials em 'Daniela Forever'



Do misticismo ancestral à terapia moderna, o sonho lúcido sempre representou uma fronteira de autoconhecimento e liberdade onírica. Contudo, sob a lente do século XXI, essa prática colide com uma "tempestade perfeita": a fusão entre o novo ecossistema digital imersivo e a ansiedade crônica da geração millennial. É neste zeitgeist de escapismo tecnológico que a ficção científica "Daniela Forever" (2024) se instala. Ao narrar a busca de um homem que tenta "reprogramar" o luto através de sonhos induzidos, o filme de Nacho Vigalondo expõe o drama de uma geração que, diante da instabilidade e da dor, prefere se refugiar no solipsismo de uma fantasia controlável em alta definição a encarar a "baixa resolução" e a imperfeição da vida real.

O que é o sonho lúcido? Podemos dizer que é quando o sonhador tem consciência de que está sonhando enquanto o sonho acontece, podendo até controlar o enredo, ambientes e ações, como voar ou mudar personagens, explorando sua mente de forma vívida e realista.

 O arco das abordagens sobre o sonho lúcido vai do viés terapêutico (redução dos pesadelos, práticas de habilidades), passando pelo espiritualismo que vê na autoconsciência onírica a projeção da consciência em planos vibratórios e etéricos (projeciologia, lucidologia, budismo tibetano, Yoga Nidra etc.), chegando ao Gnosticismo samaélico (de Samael Aun Weor) do “sonho na consciência” – através de exercícios contínuos de auto-observação e autoconhecimento, compreender que a inconsciência do sonhador no sonho é reflexo da nossa própria inconsciência quando estamos despertos nos afazeres cotidianos.

O que há em comum entre os vieses desse arco de abordagem é que ainda estamos tratando do misterioso mundo onírico. Um mundo com uma ontologia própria, para além do mundo da vigília com suas demandas práticas – econômicas, políticas, agendas culturais, profissionais etc.

Mas o século XXI está criando uma, por assim dizer, “tempestade perfeita” em torno da questão da natureza dos sonhos lúcidos: a combinação entre a revolução criada pelo novo ecossistema digital e a ansiedade da geração millennial – aqueles nascidos aproximadamente entre 1981 e 1996.

Uma geração frequentemente caracterizada pelas crises de identidade e pressão, idealização do passado e cultura do escapismo.

Em primeiro lugar, é uma geração que cresceu em um mundo de hiperconectividade e expectativas elevadas, enfrentando instabilidade econômica e crises globais, o que gera uma ansiedade crônica – jovens que cresceram ouvindo o mantra de que poderiam fazer ou ser qualquer coisa em um mundo tecnológicos de infinitas possibilidades.

Tamanha pressão e ansiedade faz essa geração buscar conforto na nostalgia de épocas anteriores à crise ou na idealização de relacionamentos passados, como um refúgio da complexidade e frustração do presente.

Mas, principalmente, a facilidade de acesso a tecnologias de imersão (redes sociais, jogos, entretenimento sob demanda) oferece mecanismos de fuga potentes, criando uma hipermoderna cultura do escapismo. Exponencialmente mais potente do que o escapismo das celebridades da cultura de massas do século XX.

O filme de ficção científica e drama romântico, Daniela Forever (2024), dirigido por Nacho Vigalondo, oferece uma lente intrigante para examinar esse zeitgeist do século XXI, especialmente no que se refere à ansiedade e ao mal-estar da geração millennial.

A premissa central, onde o protagonista Nick busca reviver sua namorada falecida, Daniela, através de sonhos lúcidos induzidos por um experimento clínico e farmacológico, ressoa profundamente com temas contemporâneos de escapismo, dificuldade em lidar com o luto e a idealização do passado.




Daniela Forever se insere neste contexto ao transformar o escapismo em uma premissa de alta tecnologia e consequências psicológicas graves. Apenas que, diferente do século passado no qual acultura do escapismo das mídias de massa estava associado à alienação, no século XXI o escapismo é empoderado pelo solipsismo tecnológico: um ecossistema digital cujos algoritmos criam uma bolha de acordo com nossos hábitos, atitudes e escolhas.

Somado ao entretenimento de imersão (games, óculos de imersão em realidade virtual etc. onipresentes em feira e museus), os sonhos lúcidos passam a ser também vistos como uma espécie de extensão de ambientes virtuais compostos por personagens “jogáveis” de jogos controlados pelo jogador.

A ansiedade e o mal-estar millennials derivam, em grande parte, da dificuldade em aceitar o inevitável (o fracasso, a dor, o luto, a imperfeição).

Daniela Forever usa a ficção científica para argumentar que a verdadeira liberdade e crescimento só vêm com a aceitação estoica do que não pode ser mudado, e que a tentativa de fugir ou controlar o passado é um pesadelo tanto para o indivíduo quanto para a memória da pessoa amada.

Ironicamente Nick está matando a Daniela real pela segunda vez ao tentar aprisionar uma versão dela.


O Filme

Daniela Forever começa imerso na depressão de Nicolas “Nick” (Henry Golding). Após a morte repentina de sua namorada, Daniela (Beatrice Grannò), em um acidente de trânsito, a vida de Nick é retratada visualmente como uma fita VHS antiga: a tela está na proporção 4:3 (quadrada), as cores são opacas e a imagem é granulada. Ele vive em Madrid, uma cidade onde nunca planejou ficar, preso em um apartamento cheio de memórias.

Nicolas é um músico britânico, tocando como DJ em uma boate em Madri. Vive uma encruzilhada profissional entre a estagnação artística e a volta para a Inglaterra sem perspectivas.

Incapaz de seguir em frente entre o luto e a falta de perspectivas, Nick se inscreve em um ensaio clínico experimental para uma droga que induz sonhos lúcidos. A promessa é terapêutica: permitir que o paciente processe o luto em um ambiente controlado.

Porém, acidentalmente, Nicolas burla um roteiro previamente entrega para ele para dirigir os seus sonhos, invertendo as premissas do experimento aceito contratualmente – ele imerge ainda mais em seu luto recriando uma Daniela onírica como fosse um jogador controlável.

Ao tomar a pílula e adormecer, a linguagem visual do filme muda drasticamente. A tela se expande para widescreen (cinematográfico), as cores tornam-se vibrantes e a definição é nítida. Neste mundo onírico, Nick reencontra Daniela.

Inicialmente, é o paraíso. Nick descobre que tem controle absoluto sobre este mundo. Ele pode voar, alterar a arquitetura e, o mais importante, estar com Daniela novamente. No mundo real (o mundo “VHS”) ele começa a passar cada vez mais tempo dormindo, negligenciando sua higiene, alimentação e relacionamentos no mundo real, que se torna cada vez mais insuportável em comparação com a utopia HD do sonho.



O ponto de virada (e a crítica central à ansiedade millennial de controle) ocorre quando a lua de mel do sonho acaba. Nick percebe uma falha fundamental: a Daniela do sonho não é autônoma; ela é limitada pelo conhecimento e memória dele: ela não pode contar novidades; ela não pode surpreendê-lo; ela não pode ler livros que ele nunca leu.

Quando Daniela age de uma forma que Nick não gosta ou quando a interação se torna entediante, ele simplesmente "reinicia" a cena ou altera o cenário. Ele começa a agir como um diretor tirânico ou uma divindade petulante. Para tentar torná-la mais "real" e interessante, ele começa a forçá-la a "aprender" coisas no sonho — ensinando-lhe sobre arquitetura ou gostos que, na verdade, são dele.

Conforme o filme avança, o sonho começa a se degradar. A obsessão de Nick em "editar" Daniela para ser a companheira perfeita começa a apagar quem ela realmente era. Ele percebe que, ao tentar mantê-la viva artificialmente, ele está, na verdade, matando a memória verdadeira dela — a pessoa imperfeita, imprevisível e real que morreu.

Vigalondo parece se divertir bastante com a premissa de dois mundos, alterando tanto a proporção da tela quanto a fidelidade da imagem. O mundo real da depressão de Nicolás é uma fita de vídeo VHS em tela cheia. A utopia de sua criação é widescreen em alta definição.



Até que, claro, seu reconhecimento consciente de que esse plano não está funcionando permite que os dois mundos se sobreponham e troquem de lugar. Isso é, ao mesmo tempo, um bom desenvolvimento — significa que a construção não está mais sustentando a mentira de que a terapia, embora usada incorretamente, está funcionando — e um mau: ameaça destruir sua própria sanidade, se não sua vontade de viver.

Daniela Forever é mais um filme de uma linhagem sobre o antagonismo e a luta entre o mundo onírico e as memórias contra a realidade: Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004), A Origem (2010), Sonhando Acordado (2006), Nuit Noire (2005), Corpo e Alma (2017), The Good Night (2007) entre outros.

Em todos esses filmes encontramos um mundo onírico não só à beira de ser derrotado pela realidade. Mas de ser também cooptado pelas agendas do mundo real: as agendas econômicas, políticas e assim por diante. Isto é, transformar o outro mundo misterioso dos sonhos em uma realidade transparente, motivadora e terapêutica.


 

Ficha Técnica

Título:  Daniela Forever

Direção: Nacho Vigalondo

Roteiro: Nacho Vigalondo

Elenco: Henry Golding, Beatrice Grannò, Aura Garrido

Produção: Filmin, Mediacrest

Distribuição: Well Go USA Entertainment

Ano: 2024

País: Espanha, EUA, Bélgica

 

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