Do misticismo ancestral à terapia moderna, o sonho lúcido sempre representou uma fronteira de autoconhecimento e liberdade onírica. Contudo, sob a lente do século XXI, essa prática colide com uma "tempestade perfeita": a fusão entre o novo ecossistema digital imersivo e a ansiedade crônica da geração millennial. É neste zeitgeist de escapismo tecnológico que a ficção científica "Daniela Forever" (2024) se instala. Ao narrar a busca de um homem que tenta "reprogramar" o luto através de sonhos induzidos, o filme de Nacho Vigalondo expõe o drama de uma geração que, diante da instabilidade e da dor, prefere se refugiar no solipsismo de uma fantasia controlável em alta definição a encarar a "baixa resolução" e a imperfeição da vida real.
O que é o sonho lúcido? Podemos dizer que é quando o sonhador tem consciência
de que está sonhando enquanto o sonho acontece, podendo até controlar
o enredo, ambientes e ações, como voar ou mudar personagens, explorando sua
mente de forma vívida e realista.
O arco das abordagens sobre o sonho lúcido vai do viés
terapêutico (redução dos pesadelos, práticas de habilidades), passando pelo
espiritualismo que vê na autoconsciência onírica a projeção da consciência em
planos vibratórios e etéricos (projeciologia, lucidologia, budismo tibetano,
Yoga Nidra etc.), chegando ao Gnosticismo samaélico (de Samael Aun Weor) do
“sonho na consciência” – através de exercícios contínuos de auto-observação e
autoconhecimento, compreender que a inconsciência do sonhador no sonho é
reflexo da nossa própria inconsciência quando estamos despertos nos afazeres
cotidianos.
O que há em comum entre os vieses desse arco de abordagem é que
ainda estamos tratando do misterioso mundo onírico. Um mundo com uma ontologia
própria, para além do mundo da vigília com suas demandas práticas – econômicas,
políticas, agendas culturais, profissionais etc.
Mas o século XXI está criando uma, por assim dizer, “tempestade
perfeita” em torno da questão da natureza dos sonhos lúcidos: a combinação
entre a revolução criada pelo novo ecossistema digital e a ansiedade da geração
millennial – aqueles nascidos aproximadamente entre 1981 e 1996.
Uma geração frequentemente caracterizada pelas crises de
identidade e pressão, idealização do passado e cultura do escapismo.
Em primeiro lugar, é uma geração que cresceu em um mundo de
hiperconectividade e expectativas elevadas, enfrentando instabilidade econômica
e crises globais, o que gera uma ansiedade crônica – jovens que cresceram
ouvindo o mantra de que poderiam fazer ou ser qualquer coisa em um mundo
tecnológicos de infinitas possibilidades.
Tamanha pressão e ansiedade faz essa geração buscar conforto na
nostalgia de épocas anteriores à crise ou na idealização de relacionamentos
passados, como um refúgio da complexidade e frustração do presente.
Mas, principalmente, a facilidade de acesso a tecnologias
de imersão (redes sociais, jogos, entretenimento sob demanda) oferece
mecanismos de fuga potentes, criando uma hipermoderna cultura do escapismo.
Exponencialmente mais potente do que o escapismo das celebridades da cultura de
massas do século XX.
O filme de ficção científica e drama romântico, Daniela Forever
(2024), dirigido por Nacho Vigalondo, oferece uma lente intrigante para
examinar esse zeitgeist do século XXI, especialmente no que se refere à
ansiedade e ao mal-estar da geração millennial.
A premissa central, onde o protagonista Nick busca reviver sua
namorada falecida, Daniela, através de sonhos lúcidos induzidos por um experimento
clínico e farmacológico, ressoa profundamente com temas contemporâneos de
escapismo, dificuldade em lidar com o luto e a idealização do passado.
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Daniela Forever se insere
neste contexto ao transformar o escapismo em uma premissa de alta tecnologia e
consequências psicológicas graves. Apenas que, diferente do século passado no
qual acultura do escapismo das mídias de massa estava associado à alienação, no
século XXI o escapismo é empoderado pelo solipsismo tecnológico: um ecossistema
digital cujos algoritmos criam uma bolha de acordo com nossos hábitos, atitudes
e escolhas.
Somado ao entretenimento de imersão (games, óculos de imersão em
realidade virtual etc. onipresentes em feira e museus), os sonhos lúcidos
passam a ser também vistos como uma espécie de extensão de ambientes virtuais
compostos por personagens “jogáveis” de jogos controlados pelo jogador.
A ansiedade e o mal-estar millennials derivam, em grande parte, da
dificuldade em aceitar o inevitável (o fracasso, a dor, o luto, a
imperfeição).
Daniela Forever usa a ficção
científica para argumentar que a verdadeira liberdade e crescimento só vêm com
a aceitação estoica do que não pode ser mudado, e que a tentativa de fugir ou
controlar o passado é um pesadelo tanto para o indivíduo quanto para a memória
da pessoa amada.
Ironicamente Nick está matando a Daniela real pela segunda vez ao
tentar aprisionar uma versão dela.
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O Filme
Daniela Forever começa
imerso na depressão de Nicolas “Nick” (Henry Golding). Após a morte repentina
de sua namorada, Daniela (Beatrice Grannò), em um acidente de trânsito, a vida
de Nick é retratada visualmente como uma fita VHS antiga: a tela está na
proporção 4:3 (quadrada), as cores são opacas e a imagem é granulada. Ele vive
em Madrid, uma cidade onde nunca planejou ficar, preso em um apartamento cheio
de memórias.
Nicolas é um músico britânico, tocando como DJ em uma boate em
Madri. Vive uma encruzilhada profissional entre a estagnação artística e a
volta para a Inglaterra sem perspectivas.
Incapaz de seguir em frente entre o luto e a falta de perspectivas,
Nick se inscreve em um ensaio clínico experimental para uma droga que induz
sonhos lúcidos. A promessa é terapêutica: permitir que o paciente processe o
luto em um ambiente controlado.
Porém, acidentalmente, Nicolas burla um roteiro previamente
entrega para ele para dirigir os seus sonhos, invertendo as premissas do
experimento aceito contratualmente – ele imerge ainda mais em seu luto
recriando uma Daniela onírica como fosse um jogador controlável.
Ao tomar a pílula e adormecer, a linguagem visual do filme muda
drasticamente. A tela se expande para widescreen (cinematográfico), as
cores tornam-se vibrantes e a definição é nítida. Neste mundo onírico, Nick
reencontra Daniela.
Inicialmente, é o paraíso. Nick descobre que tem controle absoluto
sobre este mundo. Ele pode voar, alterar a arquitetura e, o mais importante,
estar com Daniela novamente. No mundo real (o mundo “VHS”) ele começa a passar
cada vez mais tempo dormindo, negligenciando sua higiene, alimentação e
relacionamentos no mundo real, que se torna cada vez mais insuportável em
comparação com a utopia HD do sonho.
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O ponto de virada (e a crítica central à ansiedade millennial de
controle) ocorre quando a lua de mel do sonho acaba. Nick percebe uma falha
fundamental: a Daniela do sonho não é autônoma; ela é limitada pelo
conhecimento e memória dele: ela não pode contar novidades; ela não pode
surpreendê-lo; ela não pode ler livros que ele nunca leu.
Quando Daniela age de uma forma que Nick não gosta ou quando a
interação se torna entediante, ele simplesmente "reinicia" a cena ou
altera o cenário. Ele começa a agir como um diretor tirânico ou uma divindade
petulante. Para tentar torná-la mais "real" e interessante, ele
começa a forçá-la a "aprender" coisas no sonho — ensinando-lhe sobre
arquitetura ou gostos que, na verdade, são dele.
Conforme o filme avança, o sonho começa a se degradar. A obsessão
de Nick em "editar" Daniela para ser a companheira perfeita começa a
apagar quem ela realmente era. Ele percebe que, ao tentar mantê-la viva
artificialmente, ele está, na verdade, matando a memória verdadeira dela — a
pessoa imperfeita, imprevisível e real que morreu.
Vigalondo parece se divertir bastante com a premissa de dois
mundos, alterando tanto a proporção da tela quanto a fidelidade da imagem. O
mundo real da depressão de Nicolás é uma fita de vídeo VHS em tela cheia. A
utopia de sua criação é widescreen em alta definição.
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Até que, claro, seu reconhecimento consciente de que esse plano
não está funcionando permite que os dois mundos se sobreponham e troquem de
lugar. Isso é, ao mesmo tempo, um bom desenvolvimento — significa que a
construção não está mais sustentando a mentira de que a terapia, embora usada
incorretamente, está funcionando — e um mau: ameaça destruir sua própria
sanidade, se não sua vontade de viver.
Daniela Forever é mais um
filme de uma linhagem sobre o antagonismo e a luta entre o mundo onírico e as
memórias contra a realidade: Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças
(2004), A Origem (2010), Sonhando Acordado (2006), Nuit Noire
(2005), Corpo e Alma (2017), The Good Night (2007) entre outros.
Em todos esses filmes encontramos um mundo onírico não só à beira
de ser derrotado pela realidade. Mas de ser também cooptado pelas agendas do
mundo real: as agendas econômicas, políticas e assim por diante. Isto é,
transformar o outro mundo misterioso dos sonhos em uma realidade transparente,
motivadora e terapêutica.
Ficha Técnica |
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Título: Daniela
Forever |
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Direção: Nacho
Vigalondo |
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Roteiro: Nacho
Vigalondo |
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Elenco: Henry Golding,
Beatrice Grannò, Aura Garrido |
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Produção: Filmin,
Mediacrest |
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Distribuição: Well Go
USA Entertainment |
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Ano: 2024 |
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País: Espanha, EUA,
Bélgica |
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sábado, dezembro 13, 2025
Wilson Roberto Vieira Ferreira





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