segunda-feira, junho 01, 2015

Diga-me com o que fazes metáforas e direi quem és

“O gigante acordou”, “Vem pra rua”, “Padrão Fifa” e a camiseta da CBF escolhida como símbolo da Pátria. Tantas vezes slogans publicitários e clichês midiáticos foram apropriados pelas manifestações anti-Governo Federal na ruas desde 2013 que chegou-se a uma situação irônica: após as prisões efetuadas pelo FBI em Zurique de cartolas do futebol mundial é irônico manifestações fazerem alusões a instituições notoriamente corruptas em protestos contra a corrupção.  Nas redes sociais simpatizantes desses movimentos respondem: foram apenas “leves metáforas”. Mas temos que admitir: diga-me com o que fazes metáforas e direi quem és. Há um fato semiótico novo – slogans e palavras de ordem deixaram o campo exclusivo da propaganda política para entrar no pastiche das apropriações de criações publicitárias. Porém, é da natureza do slogan publicitário interpelar muito mais o indivíduo do que o coletivo. Estamos acompanhando uma tendência de despolitização? 

“Não falamos para dizer alguma coisa, mas para obter um determinado efeito”
(Joseph Goebbels)

O escândalo da Fifa que resultou na prisão de sete cartolas, entre eles o ex-presidente da CBF José Maria Marin, sob acusação de manterem um sistema corrupto de propinas e lavagem de dinheiro com direitos de transmissão e comercialização de jogos criou uma inusitada ironia: desde as grandes manifestações de rua de 2013, passando pelos protestos contra a Copa em 2014 para os atuais panelaços e mobilizações anti-Dilma, palavras de ordem como “Padrão Fifa” (reivindicação por saúde e educação alusiva ao mesmo padrão dos estádios construídos para a Copa) e manifestantes em massa vestindo camisetas amarelas da CBF se transformaram em inesperada “piada pronta” – por que manifestações por transparência e combate à corrupção constroem slogans e palavras de ordens alusivas a instituições notoriamente corruptas?

Nas redes sociais os militantes e simpatizantes dos protestos respondem que essas analogias eram “leves metáforas” – o padrão exigido pela Fifa aos organizadores da competição deveria ser o mesmo para Saúde e Educação e as camisetas da CBF por conta da cor amarela, para representar a Pátria, sem partidarismos.


Desde 2013 a escalada das manifestações de rua foi recebida por cientistas e comentaristas políticos como um fato novo, a expressão dos jovens de um descontentamento contra a Política e os partidos. Diante dos lentos canais representativos, os jovens responderam com flexibilidades e rapidez na logística, desde as manifestações do Movimento Passe Livre contra o aumento das tarifas do transporte público.

                  Mas por outro lado arrisco em observar que há também um fato novo de natureza semiótica: os slogans e palavras de ordem dessas manifestações também deixaram de ter uma natureza de propaganda política para assumirem um aspecto publicitário. Explicando melhor: os slogans abandonaram o velho campo das figuras de linguagem e da retórica aristotélica para ingressar no pastiche da apropriação de slogans publicitários ou midiáticos.



Pastiches e clichês publicitários


A essa “coincidência” entre slogans de campanhas publicitárias que se transformaram em palavras de ordem de manifestações, muitos analistas apontam como “reflexo de um mundo conectado” ou “processos virais de contaminação de redes”.

Porém, acredito que associar demandas políticas a criações publicitárias ou virais de redes sociais iniciados por clichês jornalísticos como “Padrão Fifa” vai mais além do que evidências tautológicas de que “o mundo está mais conectado” -  é como se dissesse: o slogan viralizou porque as redes são virais. Há por trás desse fenômeno um movimento de despolitização: a Política e a esfera pública são absorvidas pela linguagem publicitária que, pela sua própria natureza, interpela muito mais o indivíduo do que o coletivo.

Se não vejamos alguns exemplos:

a) “Vem pra rua”: canção criada para ser jingle publicitário da Fiat para a Copa das Confederações de 2013 no Brasil. Composta em apenas 3 horas por Henrique Nicolau, levou a assinatura da produtora S de Samba que produz canções para o mercado publicitário desde 1988. Virou hino das manifestações nos protestos do mesmo ano.

b) “O Gigante Acordou”: criada para o uísque Johnnie Walker por Alexandre Gama (diretor de Criação da Neogama/BBH), a campanha foi uma resposta ao desafio lançado pela equipe internacional da Diageo. Otimistas com o Brasil, queriam uma campanha específica do produto para a importância do País para a Diageo e para o mundo. De repente cartazes e faixas na manifestações estamparam esse slogan, popularizado em vídeos na TV e YouTube. É claro que esse slogan já tinha sido utilizado no passado em manifestações políticas como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade que antecedeu ao Golpe de 1964. O ex-presidente Nixon também se referiu aos EUA em 1980 usando esse slogan. Mas, no caso, a inspiração foi claramente da campanha do uísque escocês.

c) “Desculpe o Transtorno, estamos mudando o Brasil”: uma paráfrase das indefectíveis placas que atormentam motoristas no trânsito, avisos de blogs ou sites da Internet fora do ar em manutenção ou em áreas de shoppings ou supermercados em reformas. A mensagem não é propriamente midiática – pertence ao anódino mundo das placas de sinalização. Mas a sua apropriação por um movimento de protesto revela uma característica importante da apropriação dos slogans publicitários: assim como no mundo publicitário, no mundo semiótico das placas de sinalização o destinatário da mensagem é sempre o indivíduo e não o coletivo.




                 d) “Padrão Fifa”: expressão jornalística que surgiu na cobertura sobre os preparativos da Copa do Mundo no Brasil, principalmente pelos pitacos que o Secretário-geral da Fifa, Jerome Valcke, dava ao criticar aos supostos atrasos e imperfeições nas obras dos estádios e infra-estrutura. A cada pitaco de Valcke, era como se aumentassem ainda mais os custos da Copa para o Governo. A expressão virou um mantra para a grande mídia, que queria ver o circo pegar fogo.

e) Camisetas amarelas da CBF: o uniforme é do Brasil ou da Confederação? CBF é uma instituição pública ou privada? Representa a Pátria ou uma instituição desgastada por denúncias de corrupção que culminaram com a ação do FBI em Zurique? Pela primeira vez se utilizou a camiseta da seleção brasileira de futebol como vestimenta em um protesto político. Isso é muito mais do que uma novidade: pode representar um ato falho que revela a verdadeira natureza por trás dessas apropriações de slogans e clichês midiáticos pelas manifestações, como veremos abaixo.

Slogans políticos versus slogans publicitários


A existência do slogan antecede à Publicidade. Sempre esteve no campo da propaganda política, até ocorrerem as mudanças estruturais da esfera pública no século XIX e a discussão político-ideológica ser aos poucos substituída pela competição de marcas e produtos pela relevância de um suposto interesse público – até a própria Política ser absorvida e se tornar também uma competição por imagens e produtos.

O especialista em retórica e filosofia da educação Olivier Reboul (1925-2002) em seu livro clássico O Slogan discutia as diferenças entre o slogan político e o publicitário que podemos sintetizar da seguinte forma:

a)     o slogan político:

a.     parte de uma causa, partido ou país que almeja o poder;
b.     faz um apelo a interesses coletivos (Nação, Pátria etc. e sacrifício de interesses individuais, passando-se com uma caráter de “desinteressado”;
c.     por isso, cria um laço horizontal entre os receptores;
d.     tira o receptor da passividade – o “diz-se” cede lugar ao “dizemos”.

b)     o slogan publicitário:

a.     tem o objetivo de vender por meio de prestígio e imagem de marcas diferidas;
b.     faz apelo a interesses do indivíduo – indivíduo anônimo definido de maneira estatística;
c.     por isso, dissocia os indivíduos ao invés de integrá-los horizontalmente;
d.     deixa o destinatário passivo – de forma subliminar baseia-se no “diz-se” e não no “dizemos”; anuncia uma suposta novidade que não foi compartilhada ou discutida anteriormente.

                 Ao contrário do passado onde slogans político e publicitários mantinham-se em campos distintos, a novidade dessas manifestações de rua anti-Governo Federal é que se apropriaram dos slogans da Publicidade como pastiche – não como paródia ou subversão do sentido original, mas explorando uma familiaridade de conhecimento que associa o slogan ao estilo de vida individualista de classe média.



Carros, uísque, futebol e placas em congestionamentos de trânsito fazem parte do ethos das classes médias. Como um pastiche ou patchwork, são signos recortados do dia-a-dia da cultura midiática das classes médias, para serem colados em palavras de ordem das manifestações públicas.

O indivíduo e o coletivo


Como pastiches publicitários interpelam o indivíduo e não o coletivo: “vem pra rua” era um apelo ao indivíduo como espectador de um espetáculo midiático (a Copa das Confederações), jingle motivacional que, apropriado pelas manifestações de rua, transpôs esse espírito motivacional para a política. Mas a política é muito mais do que “motivação” publicitária – é antes de tudo convicção ideológica, cimento coletivo.

Da mesma forma, “o gigante acordou” foi outra campanha motivacional publicitária para aumentar o “market share” da marca do Johnnie Walker no País através de “atitudes positivas” – transposta para o campo da política converteu-se em hino tão genérico que se confundiu musicalmente com o grito de torcidas “o campeão voltou” na Copa – isto é, até o fatídico 7 X 1 contra a Alemanha...

 Por isso pastiches como “Padrão Fifa” e camisetas da CBF (de repente apropriadas como símbolos patrióticos) são mais do que metáforas ou “leves” analogias. Dizem muito sobre quem as faz: estilo de vida e hábitos de consumo cotidianos.

               Enquanto os slogans políticos unem ou catalisam climas de opinião (seja para o bem ou para o mal), ao contrário os slogans publicitários desunem. São até capazes de criar comoção e mobilizações em torno de alguma causa, mas são efêmeras e se dissolvem assim que um evento, show ou campanha termina.


Panelaços: atomização e individualização do protesto resultante do pastiche publicitário

Enquanto os slogans políticos têm a marca do messianismo, drama e tragédia (“Brasil: Ame-o ou Deixe-o” da ditadura militar; ou “O povo unido Jamais será vencido” da resistência às ditaduras), os pastiches publicitários são ao mesmo tempo motivadores e banais. Talvez isso explique o comportamento de manifestantes em meio aos atos fazendo selfies, como se a ação política se confundisse com mais um programa de final de semana.

Não é à toa que nesse momento as manifestações anti-Dilma enfraquecem-se pelo País e a chamada marcha da “coluna Aécio” (grupo que ficou em doze manifestantes) chegou em Brasília para se tornar um mero veículo do líder Kim Kataguiri estrelar na mídia.

E também por isso as manifestações e protestos tiveram que receber a “injeção” de drama e energia dos black blocs, já que os slogans-pastiches mais dissociam do que unem.

O pastiche dos “panelaços”


O mesmo destino pastiche parece ter tido os panelaços brasileiros. Os primeiros panelaços surgiram no Chile em protestos contra o presidente socialista Salvador Allende em 1973 para depois , em 1986 e 1989, se reverterem contra o ditador Pinochet.

Em 1996 retornam na Argentina contra o presidente Carlos Menem e 2001 e 2002 ressurgem de forma quase diária contra o presidente Fernando De La Rua durante a recessão econômica pós medidas neoliberais dos anos 1990.

Sedentos por internacionalização dos protestos (haja vista faixas e cartazes em inglês para os jornalistas de agências de notícias estrangeiras), o panelaço é apropriado como signo de globalização – assim como os panelaços que ocorreram em protestos na Espanha e Canadá em 2012. Assim como torcidas de times brasileiros na Copa Libertadores esticam faixas coloridas em vertical nas arquibancadas para imitar as aguerridas torcidas argentinas.


               Porém, a marca publicitária e pastiche está presente: predomina o caráter individual e atomizado com famílias de classes médias batendo panelas nas varandas de apartamentos, numa forma cômoda de demonstrar inconformismo.


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