“O
gigante acordou”, “Vem pra rua”, “Padrão Fifa” e a camiseta da CBF escolhida
como símbolo da Pátria. Tantas vezes slogans publicitários e clichês midiáticos
foram apropriados pelas manifestações anti-Governo Federal na ruas desde 2013
que chegou-se a uma situação irônica: após as prisões efetuadas pelo FBI em
Zurique de cartolas do futebol mundial é irônico manifestações fazerem alusões
a instituições notoriamente corruptas em protestos contra
a corrupção. Nas redes sociais simpatizantes
desses movimentos respondem: foram apenas “leves metáforas”. Mas temos que
admitir: diga-me com o que fazes metáforas e direi quem és. Há um fato
semiótico novo – slogans e palavras de ordem deixaram o campo exclusivo da
propaganda política para entrar no pastiche das apropriações de criações
publicitárias. Porém, é da natureza do slogan publicitário interpelar muito
mais o indivíduo do que o coletivo. Estamos acompanhando uma tendência de
despolitização?
“Não
falamos para dizer alguma coisa, mas para obter um determinado efeito”
(Joseph
Goebbels)
O escândalo da Fifa que resultou na prisão de sete
cartolas, entre eles o ex-presidente da CBF José Maria Marin, sob acusação de
manterem um sistema corrupto de propinas e lavagem de dinheiro com direitos de
transmissão e comercialização de jogos criou uma inusitada ironia: desde as
grandes manifestações de rua de 2013, passando pelos protestos contra a Copa em
2014 para os atuais panelaços e mobilizações anti-Dilma, palavras de ordem como
“Padrão Fifa” (reivindicação por saúde e educação alusiva ao mesmo padrão dos
estádios construídos para a Copa) e manifestantes em massa vestindo camisetas
amarelas da CBF se transformaram em inesperada “piada pronta” – por que manifestações
por transparência e combate à corrupção constroem slogans e palavras de ordens
alusivas a instituições notoriamente corruptas?
Nas redes sociais os militantes e simpatizantes dos
protestos respondem que essas analogias eram “leves metáforas” – o padrão
exigido pela Fifa aos organizadores da competição deveria ser o mesmo para Saúde
e Educação e as camisetas da CBF por conta da cor amarela, para representar a
Pátria, sem partidarismos.
Desde 2013 a escalada das manifestações de rua foi
recebida por cientistas e comentaristas políticos como um fato novo, a expressão
dos jovens de um descontentamento contra a Política e os partidos. Diante dos
lentos canais representativos, os jovens responderam com flexibilidades e
rapidez na logística, desde as manifestações do Movimento Passe Livre contra o
aumento das tarifas do transporte público.
Mas por outro lado arrisco em observar que há
também um fato novo de natureza semiótica: os slogans e palavras de ordem
dessas manifestações também deixaram de ter uma natureza de propaganda política
para assumirem um aspecto publicitário. Explicando melhor: os slogans
abandonaram o velho campo das figuras de linguagem e da retórica aristotélica
para ingressar no pastiche da apropriação de slogans publicitários ou
midiáticos.
Pastiches e clichês publicitários
A essa “coincidência” entre slogans de campanhas
publicitárias que se transformaram em palavras de ordem de manifestações,
muitos analistas apontam como “reflexo de um mundo conectado” ou “processos
virais de contaminação de redes”.
Porém, acredito que associar demandas políticas a criações publicitárias ou virais de redes sociais iniciados por clichês
jornalísticos como “Padrão Fifa” vai mais além do que evidências tautológicas
de que “o mundo está mais conectado” - é como se dissesse: o
slogan viralizou porque as redes são virais. Há por trás desse fenômeno um
movimento de despolitização: a Política e a esfera pública são absorvidas pela
linguagem publicitária que, pela sua própria natureza, interpela muito mais o
indivíduo do que o coletivo.
Se não vejamos alguns exemplos:
a) “Vem pra rua”: canção criada para ser jingle
publicitário da Fiat para a Copa das Confederações de 2013 no Brasil. Composta
em apenas 3 horas por Henrique Nicolau, levou a assinatura da produtora S de
Samba que produz canções para o mercado publicitário desde 1988. Virou hino das
manifestações nos protestos do mesmo ano.
b) “O Gigante Acordou”: criada para o uísque
Johnnie Walker por Alexandre Gama (diretor de Criação da Neogama/BBH), a
campanha foi uma resposta ao desafio lançado pela equipe internacional da
Diageo. Otimistas com o Brasil, queriam uma campanha específica do produto para
a importância do País para a Diageo e para o mundo. De repente cartazes e
faixas na manifestações estamparam esse slogan, popularizado em vídeos na TV e
YouTube. É claro que esse slogan já tinha sido utilizado no passado em
manifestações políticas como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade que
antecedeu ao Golpe de 1964. O ex-presidente Nixon também se referiu aos EUA em
1980 usando esse slogan. Mas, no caso, a inspiração foi claramente da campanha
do uísque escocês.
c) “Desculpe o Transtorno, estamos mudando o
Brasil”: uma paráfrase das indefectíveis placas que atormentam motoristas no
trânsito, avisos de blogs ou sites da Internet fora do ar em manutenção ou em
áreas de shoppings ou supermercados em reformas. A mensagem não é propriamente
midiática – pertence ao anódino mundo das placas de sinalização. Mas a sua
apropriação por um movimento de protesto revela uma característica importante
da apropriação dos slogans publicitários: assim como no mundo publicitário, no
mundo semiótico das placas de sinalização o destinatário da mensagem é sempre o
indivíduo e não o coletivo.
d) “Padrão Fifa”: expressão jornalística que surgiu na cobertura sobre os preparativos da Copa do Mundo no Brasil, principalmente pelos pitacos que o Secretário-geral da Fifa, Jerome Valcke, dava ao criticar aos supostos atrasos e imperfeições nas obras dos estádios e infra-estrutura. A cada pitaco de Valcke, era como se aumentassem ainda mais os custos da Copa para o Governo. A expressão virou um mantra para a grande mídia, que queria ver o circo pegar fogo.
e) Camisetas amarelas da CBF: o uniforme é do
Brasil ou da Confederação? CBF é uma instituição pública ou privada? Representa
a Pátria ou uma instituição desgastada por denúncias de corrupção que
culminaram com a ação do FBI em Zurique? Pela primeira vez se utilizou a
camiseta da seleção brasileira de futebol como vestimenta em um protesto
político. Isso é muito mais do que uma novidade: pode representar
um ato falho que revela a verdadeira natureza por trás dessas apropriações de
slogans e clichês midiáticos pelas manifestações, como veremos abaixo.
Slogans políticos versus slogans publicitários
A existência do slogan antecede à Publicidade.
Sempre esteve no campo da propaganda política, até ocorrerem as mudanças
estruturais da esfera pública no século XIX e a discussão político-ideológica
ser aos poucos substituída pela competição de marcas e produtos pela relevância
de um suposto interesse público – até a própria Política ser absorvida e se
tornar também uma competição por imagens e produtos.
O especialista em retórica e filosofia da educação Olivier
Reboul (1925-2002) em seu livro clássico O
Slogan discutia as diferenças entre o slogan político e o publicitário que
podemos sintetizar da seguinte forma:
a)
o
slogan político:
a. parte
de uma causa, partido ou país que almeja o poder;
b. faz
um apelo a interesses coletivos (Nação, Pátria etc. e sacrifício de interesses
individuais, passando-se com uma caráter de “desinteressado”;
c. por
isso, cria um laço horizontal entre os receptores;
d. tira
o receptor da passividade – o “diz-se” cede lugar ao “dizemos”.
b)
o
slogan publicitário:
a. tem
o objetivo de vender por meio de prestígio e imagem de marcas diferidas;
b. faz
apelo a interesses do indivíduo – indivíduo anônimo definido de maneira
estatística;
c. por
isso, dissocia os indivíduos ao invés de integrá-los horizontalmente;
d. deixa
o destinatário passivo – de forma subliminar baseia-se no “diz-se” e não no
“dizemos”; anuncia uma suposta novidade que não foi compartilhada ou discutida
anteriormente.
Ao contrário do passado onde slogans político e
publicitários mantinham-se em campos distintos, a novidade dessas manifestações
de rua anti-Governo Federal é que se apropriaram dos slogans da Publicidade como
pastiche – não como paródia ou subversão do sentido original, mas explorando
uma familiaridade de conhecimento que associa o slogan ao estilo de vida
individualista de classe média.
Carros, uísque, futebol e placas em
congestionamentos de trânsito fazem parte do ethos das classes médias. Como um pastiche ou patchwork, são signos recortados do dia-a-dia da cultura midiática
das classes médias, para serem colados em palavras de ordem das manifestações
públicas.
O indivíduo e o coletivo
Como pastiches publicitários interpelam o indivíduo
e não o coletivo: “vem pra rua” era um apelo ao indivíduo como espectador de um
espetáculo midiático (a Copa das Confederações), jingle motivacional que,
apropriado pelas manifestações de rua, transpôs esse espírito motivacional para
a política. Mas a política é muito mais do que “motivação” publicitária – é
antes de tudo convicção ideológica, cimento coletivo.
Da mesma forma, “o gigante acordou” foi outra
campanha motivacional publicitária para aumentar o “market share” da marca do
Johnnie Walker no País através de “atitudes positivas” – transposta para o
campo da política converteu-se em hino tão genérico que se confundiu
musicalmente com o grito de torcidas “o campeão voltou” na Copa – isto é, até o
fatídico 7 X 1 contra a Alemanha...
Por isso
pastiches como “Padrão Fifa” e camisetas da CBF (de repente apropriadas como
símbolos patrióticos) são mais do que metáforas ou “leves” analogias. Dizem
muito sobre quem as faz: estilo de vida e hábitos de consumo cotidianos.
Enquanto os slogans políticos unem ou catalisam
climas de opinião (seja para o bem ou para o mal), ao contrário os slogans
publicitários desunem. São até capazes de criar comoção e mobilizações em torno
de alguma causa, mas são efêmeras e se dissolvem assim que um evento, show ou
campanha termina.
Panelaços: atomização e individualização do protesto resultante do pastiche publicitário |
Enquanto os slogans políticos têm a marca do
messianismo, drama e tragédia (“Brasil: Ame-o ou Deixe-o” da ditadura militar;
ou “O povo unido Jamais será vencido” da resistência às ditaduras), os
pastiches publicitários são ao mesmo tempo motivadores e banais. Talvez isso
explique o comportamento de manifestantes em meio aos atos fazendo selfies,
como se a ação política se confundisse com mais um programa de final de semana.
Não é à toa que nesse momento as manifestações anti-Dilma
enfraquecem-se pelo País e a chamada marcha da “coluna Aécio” (grupo que ficou
em doze manifestantes) chegou em Brasília para se tornar um mero veículo do
líder Kim Kataguiri estrelar na mídia.
E também por isso as manifestações e protestos tiveram
que receber a “injeção” de drama e energia dos black blocs, já que os slogans-pastiches mais dissociam do que
unem.
O pastiche dos “panelaços”
O mesmo destino pastiche parece ter tido os
panelaços brasileiros. Os primeiros panelaços surgiram no Chile em protestos
contra o presidente socialista Salvador Allende em 1973 para depois , em 1986 e
1989, se reverterem contra o ditador Pinochet.
Em 1996 retornam na Argentina contra o presidente
Carlos Menem e 2001 e 2002 ressurgem de forma quase diária contra o presidente
Fernando De La Rua durante a recessão econômica pós medidas neoliberais dos
anos 1990.
Sedentos por internacionalização dos protestos
(haja vista faixas e cartazes em inglês para os jornalistas de agências de
notícias estrangeiras), o panelaço é apropriado como signo de globalização –
assim como os panelaços que ocorreram em protestos na Espanha e Canadá em 2012.
Assim como torcidas de times brasileiros na Copa Libertadores esticam faixas
coloridas em vertical nas arquibancadas para imitar as aguerridas torcidas
argentinas.
Porém, a marca publicitária e pastiche está
presente: predomina o caráter individual e atomizado com famílias de classes
médias batendo panelas nas varandas de apartamentos, numa forma cômoda de
demonstrar inconformismo.
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