Diante da série "Sense8" os críticos parecem estar incertos: ou a produção
dos irmãos Wachowski é uma obra-prima ou um completo desastre. Para aqueles que
já assistiram aos filmes “Matrix”, “Cloud Atlas” ou mesmo “O Destino de
Júpiter”, perceberão que os Wachowski ingressam em um território familiar –
protagonistas que levam uma vida banal e que de repente descobrem um propósito
maior que os levará a enfrentarem um cruel sistema de dominação. Como em “Matrix”,
“Sense8” revisita a mitologia gnóstica, porém com uma novidade que faz a série
entrar em sintonia com o seu tempo: enquanto em Matrix a ilusão que aprisionava
o protagonista era uma sinistra simulação tecnológica, em “Sense8” culturas
regionais e nacionais criam rígidos modelos de gênero e identidade que mantém
os protagonistas presos a uma conspiração. E a iluminação espiritual não é mais
um processo ascético individual, mas agora uma rede mental coletiva e global.
Os irmãos
Wachowski serão de agora em diante chamados de “The Wachowskis” nos créditos das
suas produções. Essa não é a única novidade na série do Netflix Sense8. Para aqueles que se dedicam ao
estudo das recorrências do Gnosticismo na indústria do entretenimento, como faz
esse blog Cinegnose, a série
apresenta a principal novidade: uma nova interpretação da mitologia gnóstica
dentro daquilo que definimos como “Gnosticismo Pop” – o súbito interesse de
diretores, roteiristas e produtores de Hollywood pelos simbolismos e narrativas
míticas do Gnosticismo.
Uma tendência que
se iniciou no final do século passado, cujo ápice desse revival pop gnóstico
foi certamente o filme Matrix dos
Wachowskis que sintetizou o que muitos filmes anteriores já exploravam – Dark City (1998), A
Vida em Preto e Branco (1998), Show
de Truman (1998), O
Décimo Terceiro Andar (1999), Clube
da Luta (1999) entre outros.
Apesar do Gnosticismo clássico (séculos III e
IV DC) ter sido composto por diversas seitas, religiões iniciatórias e escolas
de conhecimento, todas elas parecem partilhar de uma narrativa comum: o
universo como nós conhecemos foi produto de uma catástrofe de dimensões
cósmicas – a Criação, produto de um Demiurgo que, enlouquecido de poder,
acredita ser o único Deus e mantém o homem aprisionado na sua criação
aberrante. Do homem o Demiurgo extrai fagulhas de Luz que mantém tudo em
funcionamento e produz a ilusão conhecida como “realidade” que mantém a
humanidade aprisionada.
Mas essa fagulha
é, ao mesmo tempo, a nossa secreta conexão com o Pleroma – a Luz que existe
acima do nosso mundo ocupado pela Plenitude. A Gnose seria a rememoração dessa
conexão perdida, a única maneira de nos libertarmos da Queda que as religiões
chamam pomposamente de “Gênesis”.
Em Matrix esse núcleo mitológico do
Gnosticismo foi traduzido a partir do hip das tecnologias virtuais e redes
digitais: o Demiurgo eram as máquinas inteligentes que subjugaram a humanidade,
condenada a viver numa réplica virtual de um mundo que não mais existia
enquanto de seus corpos era extraída a energia para alimentar a Matrix. Neo era a Gnose personificado na
figura do Escolhido.
A série Sense8 mantém esse appeal conspiratório
gnóstico (o que talvez seja um dos fatores que faz Hollywood sentir-se atraída
pelo Gnosticismo) e o gosto dos Wachowskis por narrativas sobre o despertar do
herói e sua iniciação para uma nova realidade. O espectador reconhecerá a
jornada da gnose dos protagonistas Neo de Matrix
ou da heroína Júpiter do filme O
Destino de Júpiter na série Sense8,
mas com uma diferença: agora há um grupo de escolhidos cuja gnose deve partir
de uma crítica radical à questão do gênero e identidade.
Explicando melhor,
são oito mentes que precisam combinar e partilhar experiências que envolvem o
enfrentamentos a costumes, tradições, autoridades, poderes de diferentes partes
do planeta. Enfrentamentos que, em comum, guardam a necessidade de transcender
gêneros e identidades que a sociedade tanto preza.
Se Matrix e O Destino de Júpiter tinham um
tom mais metafísico ou mesmo platônico, em Sense8
a gnose é muito mais mundana e emergencial. O ascetismo da jornada do herói dá
lugar aos prazeres sensoriais.
A série
Sense8 inicia estabelecendo a premissa básica de uma
maneira vaga: oito pessoas díspares (etnicamente diversos e em diferentes
pontos do planeta) progressivamente começam a unificar suas mentes, permitindo
partilhar experiências e conhecimentos. Todo processo parece que foi disparado
a partir da sua “mãe” (Daryl Hannah, personificado o mito gnóstico de Sophia, aquela que "acende" a fagulha espiritual nos homens) que vemos no primeiro episódio caçada por
um personagem sombrio e, simultaneamente, aparecendo para cada um dos
“sensates” (sensitivos) em estranhas visões como se estivesse convocando a
todos para algum tipo de missão.
Depois disso,
Sense8 torna-se bem mundana, com uma narrativa caótica seguindo a vida de seus
personagens: Nomi (Jamie Clayton) uma mulher transgênero em São Francisco que
enfrenta o preconceito de sua família; Lito (Miguel Angel Sivestre) uma estrela
de telenovela mexicana que tenta esconder seu homossexualismo do público;
Kala (Tina Desai),
uma mulher indiana prestes a se casar contra sua vontade; Riley (Tuppence
Middleton), uma DJ islandesa com problemas envolvendo gangue de drogas e um
trauma familiar no passado; Sun, dublê de lutadora marcial e executiva submissa
coreana que se vê obrigada a assumir uma falcatrua financeira e ser presa para
salvar a honra e a empresa da família;
Capheeus (Aml
Ameen), onde em Nairobi na África tenta desesperadamente ganhar dinheiro para
salvar sua mãe aidética, envolvendo-se involuntariamente com mafiosos locais;
Wolfgang (Max Riemelt), filho de um famoso arrombador de cofres russos, que em
Berlim participa do crime organizado; Will Gorski (Brian Smith), um policial de
Chicago que enfrenta problemas com seus superiores ao manifestar sua
sensitividade.
Todos são
auxiliados nos primeiros passos da sua missão por Jonas (Naaven Andrews, ator
cuja conexão com a série Lost foi proposital), uma espécie de líder dos
sensates.
Todos serão
caçados pela sombria figura que aparece no primeiro episódio: Mr. Whispers
(Terrence Mann), um sensate que se virou contra a sua própria espécie, ligado a
uma agência quase governamental especializada em manipulações genéticas
determinada a anular (por meio intervenções cirúrgicas) ou mesmo matar os
sensates.
A narrativa
desenvolve-se em oito cidades diferentes no planeta. Os personagens se cruzam
através de uma espécie de sistema nervoso coletivo chamado psycellium onde não só partilham emoções e empatia mas emprestam
habilidades para que cada um consiga sair de situações perigosas e violentas –
eles parecem aos poucos adquirir a capacidade da ubiquidade.
Em grande parte
dos 12 episódios da primeira temporada de Sense8
o espectador é desafiado a encontrar pistas e tentar encontrar os nexos que
unem personagens, geografias e culturas tão distintas. Aos poucos vamos tomando
conta da sinistra conspiração de Mr. Whispers, o modus operandi dos sensates e
apenas deixadas sugestões sobre a natureza da missão deles, o que certamente
será desenvolvido na segunda temporada.
O fim do modelo “Matrix” de Gnosticismo Pop
Como vimos em postagem anterior, com explosão
da bolha especulativa em torno das empresas “ponto com” em 2000, houve uma
desaceleração de toda uma ciberutopia envolvendo a Internet e as tecnologias
virtuais. Por isso a interpretação hollywoodiana do gnosticismo a partir das
tecnologias computacionais (o que chamamos de “modelo Matrix de Gnosticismo
Pop”) entrou em declínio. A partir de filmes como Vanilla Sky (2001) e Identidade
(2003), aquilo que aprisiona o protagonista deixa de ser a matrix tecnológica
(mundos simulados por computadores) para tornar-se a própria mente: alucinações
ou ilusões criadas pelo próprio funcionamento da mente – sobre isso clique
aqui.
Em Sense8 os Wachowskis renovam mais uma
vez o Gnosticismo Pop dando uma interpretação muito mais mundana à narrativa
central do Gnosticismo: dessa vez a ilusão que aprisiona o homem à esse mundo é
produzida pelos costumes, moralidade, conservadorismo, gênero e identidades
fixas.
E, principalmente,
a gnose não é mais uma reforma íntima individual por meio de um ascetismo
(treino, disciplina, esforço e persistência como o protagonista Neo em Matrix), mas agora um esforço coletivo,
em rede – a gnose a partir de um sistema nervoso central que uniria toda a
humanidade, e que os sensates seriam os primeiros a descobrir e explorar a
potencialidade libertadora dessas conexões mentais.
O ascetismo de um
lutador marcial como em Matrix ou Clube da Luta cede lugar ao prazer
trans-sexual, trans-gênero, gay e hetero. Se no modelo clássico de Gnosticismo as
armas do Demiurgo para iludir a humanidade e impedir o aprimoramento espiritual
seriam a religião consoladora, o prazer hedonista e a Razão (o ascetismo e o
silêncio seriam os caminhos da iluminação), em Sense8 o amor e o sexo são
experiências intensas que auxiliariam a conexão por meio do psycellium.
Comparativo do Gnosticismo em "Matrix" e "Sense8"
Matrix versus Sense8
Esse modelo de
gnose proposto pelos Wachowskis mais uma vez está sintonizado com o seu tempo:
se em Matrix a iluminação espiritual
estaria na transcendência das ilusões produzida pelas tecnologias de mediação e
simulação, agora a gnose está nas redes que nos conectam globalmente. Por isso,
Sense8 é o Gnosticismo das redes
sociais onde o global transcende o local: o conservadorismo das tradições e
culturais regionais ou nacionais cede lugar ao globalismo de uma nova
cibercultura em rede planetária.
Para entender essa
mudança propomos um quadro comparativo acima entre o modelo de Gnosticismo dos
filmes Matrix e a série Sense8: temos “P” (o Pleroma), “H”
(Homem) e “p” (a fagulha de Luz que nos reconectaria ao Pleroma). Enquanto em Matrix a ilusão que aprisiona o homem é
a simulação produzida pela matrix tecnológica, em Sense8 são os costumes, o poder, a autoridade, o gênero, identidade
que prozem o medo e o isolamento. Ao contrário de Matrix que produz um modelo
de gnose individual (1,2,3...), em Sense8 a gnose é estabelecida por uma rede
onde as gnoses individuais são apenas momentos de uma iluminação coletiva –
1+2+3...
O “não estamos só”
deixa de ser um lema metafísico ou religioso (o homem partilharia a existência
com Deus ou seres alienígenas) para ser a descoberta de que todos nós estamos
conectados e que a solidão e o medo são ilusões criadas por um Demiurgo para
nos manter dentro de modelos rígidos de gênero e identidade.
Ficha Técnica |
Título: Sense8
(série de TV)
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Diretor: The Wachovskis
|
Roteiro: The Wachovskis e J. Michael Straczynski
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Elenco: Aml Ameen, Daryl Hannah, Doona Bae, Jamie Clayton, Tina Desai,
Tuppence Middleton, Max Riemelt, Miguel Angel Silvestre, Brian Smith,
Terrence Mann, Naveen Andrews
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Produção: Netflix
|
Distribuição: Netflix
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Ano: 2015
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País: EUA
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