sexta-feira, janeiro 16, 2015

A humanidade está no fogo cruzado entre deuses e reis no filme "Êxodo"

O homem está colocado em uma espécie de fogo cruzado entre deuses e reis, demiurgos vingativos e ciumentos perante os quais somos apenas aquilo que representa a mosca para uma criança. Ao homem nada mais resta do que desafiá-los para, no final, resgatar dentro de si o bem mais precioso – aqueles a quem ama. Esse é o tema que perpassa a obra do diretor Ridley Scott e que, mais uma vez, está presente na versão do Êxodo bíblico feita por um cineasta assumidamente ateu. “Êxodo: Deuses e Reis” (2014) retrata um Moisés convertido em anti-herói amargurado: “É tudo vingança!”, critica em um dos ríspidos diálogos com Deus. Scott repete a mesma desesperança dos tripulantes da nave Prometheus que, ao descobrirem a raça dos criadores do homem em um planeta distante, na verdade encontraram “Engenheiros” enlouquecidos.

O diretor Ridley Scott tem um inegável talento para lidar com narrativas em diferentes épocas históricas: da Roma antiga (Gladiador, 2000) para a época das Cruzadas ( Cruzada, 2005; Robin Hood, 2010); da era do Renascimento (1492 – A conquista do paraíso, 1992) para o século XIX (Os Duelistas, 1977); e no futuro com Alien (1979), Blade Runner (1982) e Prometheus (2012).

Confirmando uma velha crença de que um artista conta uma única história em toda a sua vida, em Scott percebe-se que ele volta sempre ao tema do estranho que desafia a tudo e a todos ao seu redor para, no final, resgatar algo que é exclusivamente precioso para si mesmo.

Foi assim com Deckard em Blade Runner (o simbolismo do unicórnio que o protagonista resgata para saber se ele é humano ou mais um replicante) e também com a Dra. Elizabeth Shaw em Prometheus (desafiando a tudo para manter a fé em um sentido para a criação humana perpetrada pelos “Engenheiros”).



E não é diferente com o Moisés interpretado por Christian Bale no filme Êxodo - Deuses e Reis. E quando se fala que os protagonistas de Scott desafiam a tudo e a todos isso significa desafiar a própria figura de Deus.

Assistimos em Êxodo o protagonista Moisés colocado em uma linha de fogo entre Deus e o Faraó Ramsés. A certa altura, antes das pragas caírem sob o Egito e impaciente com as táticas de guerrilha utilizadas por Moisés para libertar o povo hebreu, Deus (que se expressa sempre através de uma criança mensageira, Malak) se enfurece: “Ramsés se diz um deus vivo e escraviza o meu povo. Eu quero que ele fique de joelhos”. A partir desse ponto, Deus perde a paciência com Moisés que, a contragosto, é colocado no meio de uma luta entre deuses: de um lado as pragas e as mortes, e do outro Ramsés vingando-se nos escravos hebreus com enforcamentos públicos.

Moisés desabafa em um dos “diálogos” com Deus: “é só vingança, vingança!”. E mais à frente no filme, Ramsés desafia: “Vamos ver quem mais eficiente para matar. Esse Deus, você [Moisés] ou eu!”.

Ao contrário do clássico Os Dez Mandamentos com Charlton Heston onde Deus se manifesta como uma voz grandiosa em ambientes mais calmos como jardins e montanhas mais fotogênicas, em Êxodo Deus é impaciente, vingativo, representado por uma criança sempre abanando a cabeça negativamente e com um olhar que não inspira a menor compaixão ou amor – bem, afinal estamos em uma história do Velho Testamento bíblico.

O Filme

Por isso, a versão de Ridley Scott para a história bíblica de Moisés está menos para a Bíblia e mais para a narrativa da Odisseia de Homero: o filme descreve a longa trajetória de Moisés que abandona sua família para libertar o povo hebreu escravizado no Egito, enfrentando as consequências da ira e vingança do confronto entre Deus e Ramsés, atravessar o Mar Vermelho com o seu povo liberto e reencontrar sua amada esposa e filhos. Não há como não lembrar da Odisseia de Ulisses enfrentando conspirações dos deuses e do destino para que, depois de anos de provações, conseguisse retornar para os braços de Penélope em Ítaca.

Na sua essência, Êxodo é a história sobre dois irmãos: o filho adotivo do Faraó chamado Moisés e Ramsés, seu filho verdadeiro. Ambos são líderes naturais dos exércitos, sendo depois Ramsés escolhido pelo pai debilitado a ser o governante do Egito.

Ramsés acaba descobrindo que Moisés é na verdade judeu. Embora na primeira meia hora do filme vejamos um Moisés administrador das obras construídas pelos escravos judeus e seja profundamente crítico à fé ao deus do povo hebreu, ele sente-se um estrangeiro dentro do Egito. A revelação de que, na verdade, era um filho sobrevivente de uma ordem do Faraó de matar todos os bebês judeus e adotado inadvertidamente pela corte, faz Moisés partir do Egito em busca da sua própria identidade.

Fora do Egito, Moisés cria sua raízes com esposa e filho, prometendo jamais abandoná-los. A partir desse ponto, observamos uma guinada na narrativa com a multiplicação de conflitos: Scott coloca irmão contra irmão, raça contra raça e, o que é mais importante, o próprio homem contra Deus.

Deus é real ou fruto de uma alucinação?


Ridley Scott é assumidamente ateu, ou “funcionalmente não-religioso”, como costuma dizer. Sabemos que os melhores filmes religiosos foram feitos por cineastas ateus como, por exemplo, Robert Bresson com o filme Diário de um Padre (1951), talvez o filme que conseguiu melhor expressar cinematicamente a persistência da fé diante de uma realidade de dor e rejeição.

Scott projeta o seu “ateísmo funcional” e criticismo em relação a fé no primeiro momento em que Deus aparece para Moisés: depois de uma queda numa montanha, onde bate a cabeça e perde os sentidos. Após acordar tem o primeiro contato ao ver a sarça queimando e o mensageiro Malak, com o seu olhar intimidador. Será que a missão de retirar o povo Hebreu do Egito, destinada por Deus, é real ou fruto de uma alucinação?

Nas entrevistas, Ridley Scott afirma que quis fazer um filme “realista”. Não há halos, aparições mágicas ou desaparecimentos. Por exemplo, quando Joshua tenta observar à distância as conversas de Moisés com Deus, ele nada vê. Acha que seu líder perdeu a cabeça...

Até mesmo as pragas do Egito, enviadas por Deus depois de perder a paciência com as demoradas táticas de guerrilha de Moisés, são mostradas como eventos lógicos, com causa e efeito: crocodilos atacam pescadores, o que faz o Nilo ficar banhado de sangue, fazendo sapos e rãs migrarem em massa para a terra, o que causa um desequilíbrio ecossistêmico que produzirá as demais pragas em sucessões de causa-efeito. 

Vemos até esse momento Moisés transformado em um anti-herói amargurado: abandonou a família por Deus para libertar o Seu povo para ser deixado de lado por uma divindade vingativa que espalha doenças e envenena as águas. “Como podem adorar um Deus que mata crianças!”, desespera-se Ramsés com o seu filho morto nos braços.

Como moscas para um menino


Moisés discute e revolta-se contra os métodos de Deus, ao ponto de confessar ao seu inimigo, Ramsés, a impotência para reverter os terríveis eventos que se precipitarão sobre o Egito.

Se Ridley Scott transformou uma história bíblica em uma odisseia trágica de um anti-herói que se apega mais à família do que ao próprio Deus, seu ceticismo e ateísmo o faz se aproximar da frase de Shakespeare em Rei Lear: “Como moscas para um menino, somos nós para os deuses. Eles nos matam por esporte”.

O subtítulo do filme Êxodo (“Deuses e Reis”), reflete essa visão de um niilismo gnóstico que permeia a obra de Ridley Scott: tanto deuses como reis não passam de demiurgos - decepcionamo-nos com eles, desafiamos, lutamos para buscarmos dentro de nós o bem mais precioso como uma boia de salvação em um cosmos sem sentido.

Se em Blade Runner os replicantes descobrem que seu criador não passava de um ser arbitrário e destituído de compaixão; se em Cruzada o protagonista declara no final para o bispo corrupto: “você me ensinou muito sobre a religião”; e se em Prometheus os tripulantes de uma nave descobrem da pior maneira possível a loucura dos demiurgos criadores da humanidade em um planeta distante, em Êxodo, da mesma forma, Moisés se confronta com o Deus do Velho Testamento: vingativo, ciumento, impaciente que reduz a sua criação a peças de um jogo cósmico.

 “Deuses e Reis” é o título perfeito para essa intepretação da lenda bíblica de Moisés: assim como ele, todos nós estamos na linha de fogo de uma guerra entre demiurgos – Estados contra deuses, religiões contra religiões, governos contra governos. Para no final, resgatarmos aquilo que para nós seja o bem mais precioso. Para Moisés, o reencontro com a família após uma longa odisseia acompanhado por um Deus vingativo.


Ficha Técnica


Título: Êxodo – Deuses e Reis
Diretor: Ridley Scott
Roteiro: Adam Cooper, Bill Collage
Elenco: Christian Bale, Joel Edgerton, Ben Kingsley, John Turturro, María Valverde
Produção: Chernin Entertainment, Scott Free Productions
Distribuição: 20th Century Fox
Ano: 2014
País: EUA, Reino Unido





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