O cinema tem mais
de 50 anos de uma sólida tradição de filmes críticos à TV e à produção midiática
das notícias. Mas o filme “O Abutre” (Nightcrawler, 2014) de Dan Gilroy vai
mais além: não só faz uma didática apresentação de como os fatos são
semioticamente turbinados para se tornarem “noticiáveis”, mas principalmente
como parasitas midiáticos voam como aves de rapina em torno da carcaça daquilo
que um dia foi chamado de “notícia”. Para o diretor, o protagonista Lou Bloom (cinegrafista freelance
que vive de vender vídeos de acidentes e homicídios para a TV) é o protótipo do
homem do futuro – os sociopatas limítrofes que, através dos slogans do
empreendedorismo e autoajuda, tornam-se
os mais bem sucedidos manipuladores dos sentimentos humanos. E cada vez mais bem sucedidos na grande mídia.
Desde o filme A Montanha dos Sete Abutres (Ace in The Hole, 1951), o cinema criou
uma longa tradição de críticas impiedosas à dinâmica de produção de notícias,
principalmente pelas redes de TV. Network
– Rede de Intrigas de 1976 (a sádica exploração do desespero de um
evangelista televisivo), a ambição assassina da moça do tempo de um telejornal
feita por Nicole Kidman em Um Sonho Sem
Limites (To Die For, 1995), a
manipulação de um episódio com reféns em um museu feita por um repórter de TV
em baixa no filme O
Quarto Poder (Mad City,
1997), sem falar na exploração humana por reality e quiz shows como Show de Truman, The
Hunger Games ou Death Race 2000.
O mais recente
exemplar dessa tradição é O Abutre, estreia
do roteirista Dan Gilroy na direção e contando com a melhor performance até
aqui na carreira de Jake Gyllenhall no papel do protagonista Lou Bloom: armado com uma câmera de vídeo, um rádio
da polícia e uma cabeça cheia de dicas de negócios de segunda mão aprendidas na
internet repletos de slogans do empreendedorismo e autoajuda, Lou cruza as noites de Los Angeles como um vampiro. Alimenta-se do sangue
de vítimas de homicídios e acidentes de carros. Tanto melhor para rejuvenescer
a carreira da produtora de TV Nina Romina (Rene Russo). O vídeo dos sonhos de
Romina para turbinar a audiência é “uma mulher gritando e correndo rua abaixo
com a garganta cortada”. E Lou fará de tudo para corresponder e expandir o seu
negócio promissor.
Nina Romina foi claramente inspirado
no personagem Diana Christensen (Faye Dunaway) do filme Network – Rede de Intrigas, obra-prima de Sidney Lumet: “Sou muito
boa nessa maldita coisa que faço, e por isso me limito a isso”, dizia ela,
enquanto atiçava a ameaça de suicídio ao vivo de um âncora para fazer subir
ainda mais a audiência.
Um abordagem nova e perturbadora
Mas O Abutre não é apenas mais um filme que mantém o olhar crítico do
Cinema sobre a TV. A visão da grande mídia como um terreno dominado por pessoas
ambiciosas descontroladas, irresponsáveis e amorais permanece no filme de
Gilroy. Mas o diretor atualizou a crítica à TV a um ponto novo e perturbador.
Enquanto nos filmes anteriores
vemos anti-heróis carregados de culpa e resignação como mostra a fala de Diana
em Network, em O Abutre há algo de incômodo: tanto o freelance Lou quanto a
produtora Nina são sociopatas bem sucedidos e sem um pingo de arrependimento.
Lou e Nina aplicam ao pé da letra as lições do empreendedorismo, pro-atividade
e livre-iniciativa, tal como qualquer profissional de RH de uma empresa espera
de seus candidatos. A sociopatia levada até o momento em que as ações deixam de
se preocupar com as outras pessoas, o respeito e a dignidade humana.
Como o próprio diretor Dan Gilroy
declarou em entrevistas, o filme tenta colocar o sensacionalismo midiático
dentro da perspectiva do “uber-capitalism” (ou “hiper-capitalismo”): “o
hiper-final do mercado livre”, nas palavras do diretor, onde as pessoas
acreditam no que fazem e são recompensadas por isso, sem culpa ou ressentimentos
– leia “Interview:
Nightcrawler diretor Dan Gilroy on manipulation and ditching the caracter arc”
.
O Filme
O
Abutre
acompanha Lou Bloom, um homem que vive à margem da sociedade, vivendo de
pequenos bicos e contravenções. Vemos na primeira cena Lou durante a noite
cortando uma cerca de arame para roubar sucata para que possa vender. Durante
uma das suas ações noturnas, Lou flagra um acidente de carro onde cinegrafistas
captam as imagens. Com seu apurado sexto sentido oportunista, ele para e
conversa com um dos cinegrafistas – e descobre que são freelances que monitoram
rádios da polícia para correr atrás de incêndios, acidentes homicídios para
vender suas melhores imagens para as emissoras de TV.
Os lucros do
negócio não são lá essas coisas, mas Lou pretende aplicar na iniciativa todos
os seus “conhecimentos” esparsos das cartilhas de empreendedorismo e autoajuda
que aprende em seus momentos de ócio na Internet. Por meio de roubos e
permutas, Lou compra uma câmera e um receptor de rádio amador.
Isso o leva a
uma estação local onde conhece Nina Romina, diretora de notícias que precisa
tirar o seu noticiário do último lugar para não ser demitida. Sentindo uma
oportunidade de ouro, Lou passa a fornecer imagens muito mais arrojadas e
sangrentas do que os freelances concorrentes.
Lou cria um
pequeno negócio ao lado do seu “estagiário” chamado Rick – e devidamente
explorado e humilhado como todo estagiário numa corporação...
Aos poucos, a
liberdade de inciativa e empreendedorismo acabam se confundindo com manipulação
da ansiedade e infelicidade das pessoas ao seu redor. Rapidamente Lou aprende que imagens de desgraças em bairros pobres ou de não-brancos pouco interessam para
o público.
Lembrando a famosa frase de Napoleão (“Circunstâncias? Eu
crio as circunstâncias!”), Lou percebe que seu negócio não se trata mais de
captar imagens dos acontecimentos, mas de fazer coisas acontecerem. As montagens “inspiradas” de Lou, a maneira
como sua câmera se aproxima dos bombeiros e policiais para propositalmente
quebrar a concentração e interferir nos trabalhos e até, no final, omitir
informações cruciais para a polícia sobre um crime envolvendo traficantes para
que o caso não fosse rapidamente solucionado e seus vídeos redessem mais
notícias, procuram encaixar a realidade à pauta que Nina Romina tanto precisa:
evidências da chegada da violência nos bairros dos brancos e ricos como forma
de disseminar o terror e vender notícias.
Enfim, o filme
O Abutre mergulha na gênese do fenômeno midiático que denominamos de “bombas
semióticas” – violentar a realidade dos fatos para que eles se encaixem numa
pauta pré-estabelecida pelos editores nas redações.
O homem do futuro
Em 1961 o
historiador norte-americano Daniel Boorstin percebeu uma contradição
fundamental na grande mídia: a demanda crescente e ininterrupta de notícias
(para atender a necessidade de conteúdos que justifiquem o espaço dos
anunciantes) é muito maior do que a capacidade que o mundo tem em produzir
fatos noticiáveis. Isso requer que muitos acontecimentos sejam turbinados para
que se tornem “noticiáveis”.
Por isso, em O Abutre o diretor Dan Gilroy não faz apenas uma crítica ao
sensacionalismo da indústria das notícias, mas principalmente, desenvolve uma
análise do caráter dos seus profissionais: jornalistas, repórteres, produtores,
freelances e parasitas que voam como aves de rapinas em torno da carcaça daquilo
que um dia foi chamado de “notícia”.
Lou é o
protótipo do homem do futuro do chamado hiper-capitalismo: ele acredita no
sistema, ao mesmo tempo que explora suas fraquezas. Acredita que a experiência
humana nesse planeta se resuma à ascensão de uma escadaria do sucesso.
Ele é um
sociopata limítrofe que ironicamente é recompensado pela forma que é: não
importa o que você faz, desde que consiga fazê-lo. Lou é vibrante, acredita no
que faz, é contagiante e sedutor. Ele é tudo isso porque nada tem a perder: sem
esposa, filhos ou pessoas ao redor a depender dele, é destituído de culpas,
remorsos.
Lou é o futuro
que nos aguarda (não é à toa que o sobrenome de Lou é “Bloom” – “florescer”, em
inglês – irônico trocadilho do diretor): um mundo dominado pelos verdadeiros
sociopatas. Aqueles que vivem entre nós, bem sucedidos e sedutores e que nunca
sabemos que são os verdadeiros doentes. São a maioria daqueles bem sucedidos
que sobem os degraus das corporações e da grande mídia – o sociopata não é
alguém que não se preocupa com as emoções humanas. Pelo contrário, ele é
ironicamente sensível, porém num sentido perverso: é alguém que mais entende o
ser humano a ponto de poder manipular o medo e a ansiedade em um grau
extraordinário.
Lou Bloom é o
último “humanista”.
Ficha Técnica |
Título: O
Abutre (Nightcrawler)
|
Diretor:
Dan Gilroy
|
Roteiro:
Dan Gilroy
|
Elenco: Jake Gyllenhaal, Rene Russo, Bill Paxton
|
Produção:
Bold Films
|
Distribuição:
Open Road Films
|
Ano: 2014
|
País: EUA
|
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