segunda-feira, janeiro 26, 2015

O fantasma da adolescência no filme "Divergente"

O fantasma da adolescência assombra o Capitalismo: como estender o período da vida que conhecemos como “juventude”, com toda a sua ansiedade e revolta, com a finalidade de adiar cada vez mais a entrada do jovem no mercado de trabalho? Filmes como "Divergente" (Divergent, 2014) é um exemplo da solução desse problema e, ao mesmo tempo, a descoberta de uma inesgotável fonte de lucros. Em cada década a indústria do entretenimento explorou essa “adolescência estendida”: rebeldes sem causa, punks, darks, góticos, emos. E agora, rebeldes “teens distópicos” de filmes como “Jogos Vorazes” ou “Ender’s Games”. Baseado em mais um indefectível romance infanto-juvenil, o filme “Divergente” traz a ambígua mensagem desses novos tradicionalistas de início de século: revoltem-se, sejam audaciosos, mas se abstenham de drogas e sexo e na segunda-feira voltem para a escola.

Divergente (Divergent, 2014) é mais um filme que se associa a outras franquias infanto-juvenis de sucesso como Crepúsculo e Jogos Vorazes. Desde Harry Potter (2001) Hollywood vem expandindo essa tendência em adaptar para as telas best sellers para o público jovem. Nesse início de século, a lista já é extensa, só para citar alguns: Eu Sou o Número 4 (2010), Cidade das Sombras (2008), Jogos Vorazes (2012), Instrumentos Mortais (2013), Ender’s Game (2013), Percy Jackson (2010) entre outros.

A procura da própria identidade e a descoberta do sexo e do amor são os temas universais da adolescência presentes nesses filmes, cujo desenvolvimento é amarrado por uma fórmula que parece comum: protagonistas que levavam uma vida aparentemente normal até um dia descobrirem que possuem estranhos poderes e que, por isso, são vigiados por entidades sombrias ou sistemas totalitários distópicos. E no transcorrer dessas sagas cinematográficas descobrirão o sexo e o amor que, em geral, tendem ou para os amores platônicos e impossíveis, ou então simplesmente para a abstinência sexual como um valor positivo.



São filmes que misturam inconformismo com conservadorismo – a desobediência adolescente como ritual de passagem. Na verdade são protagonistas que descobrem em si poderes extraordinários, assim como os adolescentes descobrem o futuro que os aguarda na vida com seus papéis e deveres e se revoltam, mesmo que brevemente.

Como veremos, essas sagas de revolta contra forças das trevas e sistemas totalitários é mais uma onda de um sub-zeitgeist que assombra cada década desde o pós-guerra (quando o jovem tornou-se um problemas econômico), e que é explorado regularmente pela indústria do entretenimento: rebeldes sem causa, hippies, darks, góticos etc.

O Filme


Adaptado do primeiro romance da trilogia best seller de Veronica Roth (Divergent, Insurgent, Allegiant), Divergente nos apresenta uma Chicago 100 anos no futuro, sobrevivente de uma guerra mundial, cuja sociedade é dividida por cinco facções com características primárias de personalidade que definem o grupo: os Candor (honestos), que prezam franqueza e ordem; os Abnegations (Altruístas), conhecidos pela modéstia e ajuda caridosa aos “sem facções” (os excluídos que vagam pelas ruas); os Erudites (Inteligentes) sérios estudiosos sempre em roupas sóbrias; os Amity (Pacíficos) cultivam a terra e vivem em harmonia sempre felizes; e os Dauntless (Audaciosos) bravos soldados que protegem a cidade.

Beatrice (Shailene Woodley) é um membro da Abnegação ao lado do seu irmão Caleb e seus pais. Se vestem com roupas simples e de cores monótonas. Seu princípio de abnegação é tão acentuada que só estão autorizados a dar uma olhada rápida no espelho a cada três meses, na hora de cortar o cabelo.

Basicamente não têm nenhum divertimento, mas Beatrice tem um ímpeto selvagem que a faz admirar a facção dos Audaciosos.

Quando ela se submete a um teste de aptidão, necessária a todos adolescentes com a finalidade de revelar a sua verdadeira natureza e determinar para qual facção se encaixarão na vida adulta, o resultado é inconclusivo: ela é uma “Divergente” - tem todas as qualidades de cada facção dentro dela, tornando-a potencialmente independente e perigosa para um sistema onde pensar de forma autônoma é intolerável.

Na Cerimônia anual de escolha da facção na qual viverão o resto das suas vidas, a qual os adolescentes se submetem pelos resultados dos testes, Beatrice escolhe a facção dos Audaciosos. Explicitamente, a Cerimônia é uma representação do mundo das escolhas adolescentes (profissão, faculdade etc.), tema que a franquia Harry Potter também explorou com o ritual da escolha das fraternidades no qual protagonistas eram submetidos.

Na facção aprenderá a lutar, atirar, saltar de trens, atirar facas, controlar sua mente em uma série de angustiantes simulações, tudo ao mesmo tempo em uma competição com outros iniciantes em um sistema de classificação exigente onde os perdedores serão expulsos, tornando mais um pária social na não-facção – mais representações do mundo competitivo escolar e profissional que angustia os adolescentes espectadores.

Mas ela é uma Divergente e, junto com seu líder e par romântico Four (Theo James), descobrirão uma conspiração para a erradicação de todos aqueles que querem pensar de forma autônoma, fora dos parâmetros limitadores das facções.

A juventude estendida


Divergente é tudo sobre identidade, sobre a busca de quem você é e como se encaixará nos papéis sociais quando sair da adolescência e entrar no mundo adulto.


No Pós-Guerra esse ritual de passagem da adolescência tornou-se um problema cultural para o Capitalismo: a juventude deveria ser estendida por uma simples questão macro-econômica – adiar a entrada do jovem no mercado de trabalho, estender a adolescência e a sua dependência econômica para que o sistema econômico tivesse tempo para absorvê-lo como sujeito economicamente ativo.

Essa necessidade estrutural do Capitalismo, somente alongou o período de ansiedades, dilemas, inconformismo e raiva  da adolescência. A vida escolar foi ampliada (segundo grau, universidade, pós-graduação, especializações etc.) por uma suposta necessidade de preparação do jovem para empregos futuros que, na verdade, se esvaziavam de sentido.

Mas, ao mesmo tempo, a indústria do entretenimento descobriu nesse período uma mina de ouro: cada década encontramos produtos culturais, modismos ou tendências que expressam essa perplexidade, raiva, angústia e depressão do jovem.

Os rebeldes sem causa dos anos 1950 representados por James Dean e Marlon Brando no cinema; hippies e a contracultura na década de 1960 onde da Direita à Esquerda, da Revolução Sexual aos Maoístas, tudo exalava contestação e protesto; nos anos 1970, novamente, por todo o leque social, do Glam Rock e androginia dos jovens de classe média ao Punk Rock das hordas desempregadas das periferias urbanas.

Nos anos 80 o “Dark” sintetizado em ícones como Robert Smith do The Cure e Peter Murphy da banda Bauhaus. Músicas cujas letras se inspiravam no universo gótico da literatura romântica dos séculos XVIII e XIX. Replicantes melancólicos (como os do filme Blade Runner, 1982), amores platônicos e a sensação de uma geração ter alcançado a adolescência e juventude no final da festa (daí a nostalgia pós moderna pela década de 50 na moda, arquitetura e filmografia).

Nos anos 90 o “Dark” é reciclado pelo “Gótico” e a literatura romântica é substituída pelos contos de terror. Jovens cuja aspiração é a de se tornar seres da noite, com longas capas pretas e lentas de contato especiais que alteram a cor dos olhos.

Na primeira década do século XXI temos a franquia de filmes Crepúsculo e o imaginário musical "Emo" destilando essas tendências depressivas em jovens e adolescentes.

Novos tradicionalistas?


E na década atual, a tendência representada em filmes como Divergente – o mix de sociedades totalitárias distópicas (o futuro mundo adulto) com reality games (a juventude artificialmente estendida pela crescente competitividade escolar, exames e concursos).

O paradoxo de todas essas tendências da indústria do entretenimento é que, aparentemente, alimentariam o inconformismo e a desobediência civil. Hollywood anarquista? Claro que não. Esse negócio lucrativo e inesgotável se baseia numa fórmula simples: quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem.

O filme Divergente explicita essa fantasia-clichê: o diretor Neil Burger e a escritora Veronica Roth querem que os jovens aproveitem a vida, sejam audaciosos, pulem de trens em movimento, façam esportes radicais e se revoltem contra o “sistema”. Mas tudo com responsabilidade: abstinência sexual, amores românticos e platônicos e fugir de drogas, seringas e de qualquer substância que altere seu estado de consciência.

O “sistema” em Divergente são os escritórios cleans repletos de gente engravatada: é o mundo careta onde os jovens estarão no futuro. A “revolta” dos protagonistas é contra eles, os engravatados corruptos. Quanto a coisa em si (o “sistema”), essa permanecerá. Afinal, é o futuro dos jovens – após a revolta, um emprego onde, nos seus tempos livres, praticarão bungee jumping e outras atividades cheias de adrenalina. Para na segunda-feira retornar ao “sistema”.


Ficha Técnica


Título: Divergente
Diretor: Neil Burger
Roteiro: Evan Daughtery baseado no romance de Veronica Roth
Elenco: Shailene Woodley, Theo James, Kate Winslet
Produção: Summit Entertainment, Red Wagon
Distribuição: Paris Films
Ano: 2014
País: EUA




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