quarta-feira, julho 16, 2014

Em Observação: "Teorema Zero" (2013) - o sentido da vida pela via negativa

Quase 20 anos depois, o diretor inglês Terry Gilliam está de volta ao gênero ficção-científica, mas as suas preocupações filosóficas continuam as mesmas. Misturando distopia e religião, Gilliam em “O Teorema Zero” (2013) pretende discutir qual o sentido da vida, já que a ciência nos informa que todo o Universo um dia acabará em uma singularidade no interior de um buraco negro. No interior de uma igreja abandonada o protagonista espera uma ligação telefônica que lhe traga a resposta, mas o diretor parece pouco preocupado com isso: ele abraça alegremente a ausência de sentido (a chamada "via negativa" da Filosofia), lembrando a máxima do personagem Tyler Durden em “O Clube da Luta”: “Depois que perdermos tudo, então estaremos livres”. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

terça-feira, julho 15, 2014

Mídia esportiva sofre de transtorno semiótico bipolar

Entre as palavras e as coisas existe uma estrutura fixa, pronta, que tenta capturar a dinâmica das coisas para congela-las em mitos. Com a mídia esportiva não seria diferente: a cada Copa do Mundo entra em funcionamento um discurso bipolar pronto para explicar os fracassos do futebol brasileiro – ora nos falta racionalidade, organização e planejamento; ora precisamos retornar “às nossas raízes” sufocadas pela mesma “modernidade” defendida na Copa anterior. Essa mitologização do futebol teria duas funções: neutralizar o acaso e a incerteza, eliminando a natureza lúdica do esporte, e evaporar a História – deixar de fora desse discurso bipolar os fatores midiáticos e político-econômicos que parasitam o futebol.

Na postagem anterior discutíamos que a goleada acachapante sofrida pela Seleção no jogo contra a Alemanha tinha sido mais do que um evento, mas o sintoma de fatores de influência midiática (“efeito Heisenberg” e esquizofrenia midiática – clique aqui). Mas nessa discussão acabamos achando outra coisa: descobrimos que a imprensa esportiva parece ter um discurso pronto a cada fracasso do futebol brasileiro em copas.

Embora seja um discurso estruturado e fixo, também é dinâmico como fosse um pêndulo semiótico: ora os jornalistas especializados culpam as derrotas pelo atraso, desatualização e falta de “modernidade” do futebol brasileiro (que chamaremos de “fase 1”), ora falam de um excesso de pragmatismo que faria a Seleção abandonar suas “raízes” (“fase 2”).

quinta-feira, julho 10, 2014

"Efeito Heisenberg" e esquizofrenia midiática derrubam a Seleção

A mídia parece ter um discurso pronto para cada traumática desclassificação nas Copas, em um movimento semioticamente pendular: ora diz que falta “modernidade”, ora defende “tradição” ao futebol brasileiro. Mas dessa vez, nada explica a anomalia de um 7 X 1. Pelo menos os comentários da imprensa especializada foram unânimes: não foi placar de um jogo de futebol profissional. Quem lida com semiótica e sincromisticismo sabe que quando eventos tornam-se bizarros e anômalos deixam de ser meros acontecimentos para se converterem em sintomas. No caso dessa partida, sintoma de dois fatores extra-esportivos: o chamado “efeito Heisenberg” (a patologia de toda cobertura midiática extensiva) e a esquizofrenia de uma mídia sob o desgaste de politicamente ter que sabotar o evento e ao mesmo tempo faturar comercialmente.

Holanda 2 X Brasil 0, o jogo na Copa de 1974 que desclassificou o Brasil para as finais; Itália 3 X Brasil 2, jogo que tirou a Seleção da Copa de 1982; Holanda 2 X Brasil 1, jogo que eliminou a Seleção nas quartas na Copa da África do Sul em 2010.

É interessante perceber nesses momentos de aguda comoção nas crises da chamada “pátria de chuteiras” a construção de um script midiático para racionalizar as catástrofes. Um script pendular que vai do discurso da necessidade de “modernização” ao do “retorno às raízes”: de um lado a ideia de que o futebol brasileiro está ultrapassado diante da modernidade europeia (a revolução tática do “carrossel holandês” em 1974 ou a crítica ao futebol bonito da seleção em 1982, mas sem a eficiência e aplicação europeias) e do outro um futebol que ficara tão pragmático que teria esquecido “a arte” – como no caso da comemoração do “fim da Era Dunga” acusada de abandonar o “futebol bem jogado” em 2010. Ora a modernidade, ora a tradição.

terça-feira, julho 08, 2014

Matemática e Surrealismo: Carroll, Escher e matemagos


Em que momento a Matemática, a ciência do raciocínio lógico e abstrato, pode converter suas deduções rigorosas em surreais paradoxos visuais e lógicos? Surrealismo e matemática não se opõem, mas podem ser excelentes aliados. A férrea lógica matemática pode contribuir eficazmente em desmascarar a falta de lógica dos esquemas de pensamento e o funcionamento de sistemas opressivos. Muitos paradoxos, charadas e falácias matemáticas constituem autênticas sátiras dos vícios de pensamento da nossa cultura. Os romances matemáticos de Lewis Carroll e o insólito fascínio pelas imagens de M.C. Escher acabaram criando a lógica do “non sense” presente tanto em escritores como Kafka quanto em filósofos como Jean Baudrillard. Vamos explorar as possibilidades de encontros entre o Surrealismo e a Matemática.

domingo, julho 06, 2014

Em Observação: "Equilibrium" (2002) - totalitarismo, artes marciais e anti-depressivos

O filme “Equilibrium” um daqueles filmes que a gente nunca ouviu falar, mas que quando assistimos ficamos surpresos pelo anonimato. Com visual, figurino e fotografia que lembra muito Matrix dos irmãos Wachowski, o filme mostra um sistema totalitário baseado na repressão de tudo aquilo que poderia estimular no homem a expressão de sentimentos – arte, principalmente. Os sentimentos seriam a pior parte da natureza humana, capaz de provocar guerras e mortes. Por isso, todos seriam induzidos a tomar uma droga capaz de inibir qualquer expressão de sentimentos. “Sacerdotes” especializados em lutas marciais e concentração Zen caçariam todos os “ofensores” que teimam em manter objetos artísticos. Como um documento de época, “Equilibrium” representaria o imaginário atual da banalização de drogas como Prozac ou Ritalina onde um secreto sistema totalitário se desenha baseado na seletividade dos sentimentos que devemos ter.

sexta-feira, julho 04, 2014

"L'Immortelle" criou a mulher metafísica para o cinema

Filmes gnósticos como “Matrix” e “Vanilla Sky” apresentam uma galeria de personagens femininos fortes, sem história, que de repente surgem na vida do protagonista para retirá-lo de um mundo de ilusões. Esses filmes são tributários não só da mitologia gnóstica de Sophia, mas, cinematograficamente, do cult “L’Immortelle” (1963) de Allain Robbe-Grillet. Depois de mulheres pin-ups, objetos e femme fatales na história do cinema, o diretor e romancista francês inseriu a mulher em narrativas de mistério metafísico: misteriosas, etéreas, mas ao mesmo tempo sensuais e sedutoras. Dessa forma, a mulher metafísica de Robbe-Grillet converte o protagonista masculino em "Estrangeiro" – metáfora da condição humana de alienação e estranhamento.

Quem não se recorda da personagem Sofia (Penélope Cruz) em Vanilla Sky (2001) despertando o protagonista David Aymes aprisionado em uma simulação de realidade em um sonho lúcido? Ou de Trinity (Carie-Anne Moss) que, graças ao seu amor, fez Neo descobrir que era O Escolhido em Matrix (1999)? Ou ainda da personagem Sylvia que fez Truman descobrir que sua vida era uma prisão dentro de em um gigantesco reality show em Show de Truman (1998)? Personagens femininos fortes, sem história, que surgem de repente na vida do protagonista para despertá-lo do sono das ilusões que o prendem a esse mundo. Mulheres que muitas vezes sacrificam o seu amor e a si mesmas pela redenção do herói e de toda humanidade.

Pois essas mulheres por trás de todos esses heróis do gnosticismo pop cinemático descendem mitologicamente do personagem gnóstico de Sophia, o aeon que vai despertar no homem a fagulha de luz interior (a gnose) para conectá-lo de volta à Plenitude. Mas cinematograficamente, são devedoras de um cult do cinema onde a mulher foi elevada a outro patamar, depois de décadas de mulheres objetos, femme fatales e pin-ups: o filme francês L’Immortelle (1963). Aqui o diretor Alain Robbe-Grillet (romancista e roteirista indicado ao Oscar no filme de Allain Renais The Last Year at Marienbad - 1961) eleva a mulher a um patamar metafísico - mas sem deixar de ser carnal e provocante.

quarta-feira, julho 02, 2014

"Agnosia" revela formas alternativas da mente no cinema

O filme espanhol “Agnosia” de Eugenio Mira e “A Origem” de Christopher Nolan foram lançados no mesmo ano de 2010. São dois filmes com versões diferentes para o mesmo tema: um thriller de espionagem industrial que envolve a invasão da mente de alguém para extraírem um segredo que envolve interesses corporativos. Um exercício de análise comparativa entre os dois filmes revela diferentes formas de representar a mente humana: se na Europa a Psicanálise e a psicologia da percepção possuem prestígio no meio artístico e intelectual, nos EUA a mente não é pensada como uma máquina desejante, mas informática onde dados são deletados ou inseridos. Enquanto “Agnosia” é um conto gótico inspirado em psicanálise, “A Origem” é o inconsciente traduzido pelas neurociências.

A análise comparada em cinema (o exercício de analisar diferentes visões de filmes e diretores sobre um mesmo tema) sempre dá surpreendentes resultados ao revelar as diferenças ideológicas e culturais de países ou de polos de produção cinematográfica.

Um exemplo evidente é o filme espanhol Agnosia (2010) do diretor Eugenio Mira e escrito por Antonio Trashorras. Assistindo ao filme, é impossível não comprarmos com o filme de Christopher Nolan A Origem (Inception, 2010), produção norte-americana lançada no mesmo ano da produção espanhola. Ambos exploram o tema da espionagem industrial: há um segredo de grande interesse industrial que está na mente de uma pessoa e que deve ser extraído.

sexta-feira, junho 27, 2014

Por que nossa mente quer ser enganada?

Militantes do PSDB posando para fotografias ao lado de um display de papelão do candidato Aécio Neves em tamanho real na convenção do partido e um jornalista que confundiu o sósia do Felipão com o verdadeiro. Qual a secreta conexão entre esses dois episódios? O estranho desejo humano de querer ser enganado. E a filosofia da percepção e a neurologia podem explicar isso. Por que pacientes que sofriam de afasia global e agnosia tonal ridicularizaram um discurso na TV do presidente Ronald Reagan em 1985 enquanto os receptores normais o consideravam um “grande comunicador”? Talvez o caminho seja entender a natureza das “imagens-afecção” e a solução do enigma do porquê demoramos meio segundo para ter consciência das decisões que o nosso próprio cérebro teve. A contra-tática para combater a canastrice na política pode estar nas mão dos filósofos da percepção como Brian Massumi e em neurologistas como Oliver Sacks.

As imagens dos bonecos de papelão do candidato Aécio Neves na convenção do PSDB para que militantes posassem ao lado do display e a “barriga” jornalística cometida pelo colunista Mario Sergio Conti que confundiu o sósia com o verdadeiro Felipão revelam um secreto sincronismo: o estranho desejo humano de querer ser enganado.

Em postagem anterior discutíamos como era possível que ainda hoje a opinião pública ainda seja mobilizada por táticas publicitárias e de propaganda tão estereotipadas, exageradas, com personagens tão canastrões, caricatos, com gestos, expressões faciais e poses tão overacting. Péssimos atores que não conseguiriam passar pelo mais simples teste de seleção do cast do filme de mais baixo orçamento - sobre esse tema clique aqui.

Assistindo ao filme O Grande Ditador de Chaplin, somos dominados por uma estranha sensação ao se questionar sobre quem teria inspirado quem: a pantomima de Chaplin também estava presente nos gestuais e discursos de Hitler e Mussolini. Quem se inspirou em quem? O gênio de Chaplin não foi o de fazer uma caricatura genial de um ditador, mas de revelar a todos que na política levamos a sério maus atores – Chaplin mostrou de uma forma profissional o que Hitler e Mussolini faziam de forma canastrona.

terça-feira, junho 24, 2014

Curta "BlinkyTM" mostra as obscuras relações humanas com a tecnologia

O curta metragem “BlinkyTM - Bad Robot” (2011) dirigido pelo irlandês Ruairi Robinson segue a trilha temática análoga ao filme premiado pelo Oscar “Ela” de Spike Jonze: a relação mágica e fetichista com os gadgets tecnológicos. Se no filme de Jonze um usuário se apaixona por um sistema operacional, no curta de Robinson uma criança acredita na promessa de um anúncio publicitário de que um robô de estimação será capaz de reunificar a sua família, cujos pais estão em constantes brigas. O curta é uma ótima oportunidade para discutir os efeitos do descompasso entre os modelos de família perfeita apresentados pelo discurso publicitário e as relações reais entre pais e filhos. Curta sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

Em um futuro próximo toda casa terá um robô ajudante capaz não só de entreter seu filho como de também fazer o almoço. Mas não se preocupe. É perfeitamente seguro... mas, cuidado com o que você pedir para ele: o robô poderá interpretar ao pé da letra o que você desejar e as consequências podem ser imprevisíveis.

O diretor e animador irlandês Ruairi Robinson (indicado ao Oscar em 2002 com o curta Fifty Percent Grey) com o curta BlinkyTM - Bad Robot nos sugere como pode ser perigosa a combinação dos velhos problemas humanos com a moderna tecnologia, não só incapaz de resolvê-los como ainda podendo ampliá-los. Máquinas e seus programadores são incapazes de inserir julgamentos éticos ou morais entre os O e 1 das codificações. Mas os usuários dos gadgets tecnológicos não veem dessa maneira e passam a ter uma relação fetichista ou mágica, acreditando que aplicativos, programas ou robôs irão misticamente encontrar soluções para nós.

sábado, junho 21, 2014

Barrigas e não-notícias na Operação Anti-Copa

Da “barriga” do cão Caramelo em 2011 até a atual que envolveu o experiente jornalista Mário Sérgio Conti e um sósia do técnico Felipão entrevistado como fosse o verdadeiro, revela como jornalistas da grande mídia transformam-se em metralhadoras giratórias sob a pressão do papel assumido de oposição política: atira-se primeiro para pensar depois. Mas nesse momento a pressão só aumenta com o hipotético cenário negativo para um ano eleitoral: de que não só a Copa seja um sucesso de organização como, pior, a seleção brasileira seja campeã. Pela dificuldade em montar bombas semióticas nesse momento (o ritmo dos jogos e dos debates televisivos tem isolado protestos e incidentes de organização), a grande mídia passou a mobilizar seu braço armado: os colunistas, sob o apoio das não-notícias na Operação Anti-Copa.

Para quem acompanha de perto as transformações da linguagem midiática, a tragédia dos mortos nas enchentes e deslizamentos de terra nas serras fluminenses em 2011 marcou o início das coberturas jornalísticas politicamente comprometidas com o papel de oposição ao governo federal.

Depois de uma disputa eleitoral polarizada no ano anterior entre Dilma e Serra onde se misturou política com religião, bolinhas de papel, intolerância e preconceito, a grande mídia iniciou naquele ano um processo de coberturas jornalísticas cuja pressão oposicionista que partia das reuniões de pauta explodia nos repórteres que deveriam nas reportagens, enquetes, entrevistas ou depoimentos buscar ansiosamente qualquer índice ou evidência da incompetência gerencial do governo.

 Um dos reflexos dessa ansiedade é a construção de personagens nas narrativas jornalísticas, estratégia discursiva onde se busca a legitimação de uma pauta por meio de um personagem elaborado muitas vezes com signos retóricos e ficcionais. Na corda bamba entre a ficção e a realidade, algumas vezes o jornalista despenca e surgem as vexatórias “barrigas” - gíria jornalística para designar uma grave bobeada de um jornalista que pensa estar publicando um “furo” quando não passa de engano ou má fé do próprio repórter.

sexta-feira, junho 20, 2014

Por que Nova York precisa ser destruída?

Quantas vezes Nova York já foi destruída no cinema, literatura, rádio e TV? Monstros, alienígenas, catástrofes geológicas, climáticas, destruições provocadas por lutas de super-heróis com vilões.  Por que essa insistência das imagens de destruição da “Big Apple” na cultura norte-americana? Pode parecer uma questão supérflua de um cinéfilo diletante, mas se considerarmos que essas imagens são irradiadas para todo o planeta pela indústria do entretenimento norte-americana, passa a ser uma questão ideológica: o que na verdade Hollywood exporta para o mundo: paranoia? Motivação subliminar para a obsolescência de produtos? Ou a elaboração de um neoapocalipse necessário para a criação de uma nova religião global? Vamos explorar algumas hipóteses sobre os porquês dessa obsessão norte-americana.  

Meridth Blake, 28, vive no Brooklyn, Nova York. Ele relata uma insólita cena quando estava em uma estação do metrô: “Saí do trem e dei de cara com um pôster do filme Cloverfield com a Estátua da Liberdade decepada. Subi as escadas para, em seguida, ver o pôster do filme Eu Sou a Lenda com a ponte do Brooklin em ruínas. Pensei, ora! Outro filme que destrói Nova York!”.

Com uma diferença de um mês de lançamentos, ambos os filmes contavam as desventuras de protagonistas em uma Nova York destruída por monstros ou por epidemias. Isso foi em 2008, quando os nova-iorquinos ainda sentiam os ecos da queda das torres do WTC em 2001: “lembro-me da cena do filme Cloverfield com pessoas correndo para se esconder em uma delicatessen com poeira e escombros por toda parte. É tão obviamente uma alusão ao 11/09...”, destacou Blake - leia "Filmakers View New York as a Disaster Waiting to Happen".

segunda-feira, junho 16, 2014

O ódio envenena e mata no curta "Cólera"

Selecionado e premiado em todos os festivais de horror e fantástico nos quais foi exibido, o curta espanhol “Cólera” (2013) de Aritz Moreno é uma preocupante representação contemporânea da escalada do espírito de linchamento, ódio e intolerância. O curta comprova como o gênero, desde o filme “O “Gabinete do Dr. Caligari” de 1919 que teria antevisto o nazismo, é um termômetro da cultura e da sociedade em cada momento: na Espanha, a crise econômica e o crescimento da xenofobia e o ódio racial; no mundo a intolerância e o racismo como um mal viral e endêmico, assim como a cólera. Além disso, o curta consegue em seus seis minutos de um único plano sequência fazer uma síntese do psiquismo da personalidade autoritária: o ódio pode matar sua vítima, mas também envenenar o próprio algoz.

O ódio envenena e mata. O seis minutos do curta metragem Cólera do espanhol Aritz Moreno nos impacta como um raio pela sua mensagem direta e contundente. Rodado em um único plano-sequência que mistura os pontos de vista de todos os personagens, o curta foi baseado em um comic book do norte-americano Richard Corben.

Selecionado e premiado em mais de cem festivais em todo o mundo, podemos ler no poster promocional um verbete curto e direto: “Cólera: m. Pat. Enfermidade contagiosa epidêmica aguda e muito grave” - veja o curta abaixo.

O curta relata de forma crua a população agressiva e colérica de um vilarejo que pretende fazer justiça com as próprias mãos. Armados com paus, pedras e espingardas pagarão as consequências desse linchamento. Todos estão se dirigindo a um pequeno casebre construído de forma precária com tábuas velhas e papelão, isolado no meio de um campo. Lá se encontra o objeto de todo ódio da população, alguém que, segundo eles, já teria causado “problemas demais”. “Finalmente uma vila limpa!”, brada o líder do populacho enfurecido e levantando uma espingarda.

domingo, junho 15, 2014

Atratores estranhos e paradoxos da viagem no tempo em "Primer"

Vencedor no Festival de Sundance e odiado por aqueles que vão ao cinema apenas para comer pipoca e se divertir, o filme “Primer” (2004) do diretor Shane Carruth é um quebra-cabeça sobre questões lógicas sobre a viagem no tempo: paradoxos, lacunas, pontas soltas, causalidade. Esqueça o famoso “paradoxo dos gêmeos” (Paradoxo de Langevin) sobre a relatividade das viagens no tempo. Esse é o menor dos problemas nesse filme. Influenciado pelo ocultismo de Aronofsky de “Pi” e os “warmholes” de “Donnie Darko”, o filme se defronta com as grandes interdições estruturais do contínuo tempo-espaço que impedem o homem se libertar do Tempo: as noções de atratores estranhos e da geometria recursiva da Teoria do Caos. Filme sugerido pelo nosso leitor Marcos Garcia.

Primer se insere em um subgênero dos filmes de ficção científica que poderíamos chamar de low sci-fi como Another Earth, Sound of My Voice, Safety Not Guaranteed etc. Filmes de baixíssimo orçamento (Primer foi realizado com sete mil dólares) onde os temas científicos são pretextos e muitas vezes apenas um cenário para questões éticas e morais sobre relacionamentos humanos.


Carruth obviamente foi influenciado pela intensidade ocultista de Darren Aronofsky do filme Pi e os “warmholes” de Donnie Darko. Primer mostra como jovens engenheiros, com poucos recursos em uma pequena garagem, constroem alguma coisa que envolve campo magnético e manipulação da gravidade em pequenos objetos, mas que produz um inesperado efeito colateral de possibilidade de viagem no tempo.

quinta-feira, junho 12, 2014

Praça Victor Civita é a Disneylândia do hiperliberalismo

Estátuas e instalações artísticas de lixo reciclado, teatro infantil falando sobre a escassez da água, uma modelo sorridente num estande da Sabesp abrindo uma torneirinha em um bebedouro para servir os visitantes com um copo d' água. Tudo isso com os ventos trazendo o mau cheiro do Rio Pinheiros. Essa é uma tarde na Praça Victor Civita, em São Paulo. Todos esses elementos têm uma secreta conexão. Essa não é uma praça comum, mas um autêntico parque temático, a Disneylândia de uma nova ordem futura onde a nossa sensibilidade está sendo moldada para aceitar a suposta realidade que a Natureza é finita e escassa. Tudo em um mix de entretenimento, cultura e estilo de vida que poderíamos chamar de “estética da escassez”, embalagem estética da nascente ideologia do hiperliberalismo: convergência do ambientalismo com a elite financeira e rentista como álibi para a mercantilização da água. E o Estado de São Paulo é a vanguarda desse movimento no Brasil.

Sábado à tarde com as crianças e esposa na Praça Victor Civita, em Pinheiros. Clima leve, descontraído e colorido com ciclistas descansando preguiçosamente, crianças gritando e correndo por todos os lados e uma simpática modelo ao lado do que parecia um grande bebedouro com o logo da Sabesp em um pequeno estande.

A certa altura, todos começam a se dirigir ao pequeno anfiteatro do parque. Ótimo! Um espetáculo infantil para a criançada e a chance dos pais recuperarem o fôlego depois de tanta correria. E a primeira atração era interessante: a trupe do Mad Science onde através de pequenas experiências com muita confusão e risadas, ensinam para a criançada princípios básicos de física, química e ecologia. Nada mais politicamente correto em um parque cercado de instalações e esculturas feitas com lixo reciclado e diversas hortas autossustentáveis em um lugar que, no passado, era um grande incinerador de lixo.

O show inicia e o vento começa a bater, trazendo o incômodo mau cheiro do rio Pinheiros, bem próximo dali. Nesse momento, os atores do Mad Science, em seus jalecos de cientistas e jeito amalucado, faziam uma breve exposição sobre o ciclo da água e, numa alegoria envolvendo um galão cheio de pequenas bolinhas de isopor, iam mostrando a proporção entre água salgada e potável no planeta... Como a água potável é um bem escasso... Principalmente com as alterações climáticas do planeta... por isso, a pouca chuva em São Paulo e as represas secando... logo, devemos economizar para enfrentarmos o futuro...

segunda-feira, junho 09, 2014

Conceito "Cinegnose" é agora verbete em nova edição do Dicionário da Comunicação

O conceito criado por esse humilde blogueiro e a razão da existência desse blog – a noção de “cinegnose” – foi transformado em verbete no “Dicionário da Comunicação – segunda edição revista e ampliada”, lançado na semana passada pela Editora Paulus. Juntamente com os verbetes “filme gnóstico” e “adgnose”, também criados nas pesquisas do blog, o "Dicionário da Comunicação" organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho abre a oportunidade para que as pesquisas sobre as confluências entre Gnosticismo, Cinema e Comunicação que foram iniciadas pelo “Cinema Secreto: Cinegnose” se fortaleçam e ganhem espaço dentro dos estudos científicos da área. As pesquisas iniciadas por esse blog se juntam, portanto, às pesquisas da chamada Nova Teoria da Comunicação: o estudo do fenômeno comunicacional como acontecimento e transformação pessoal e coletiva. E para o blog, a abertura para fenômenos espirituais como a gnose.

Na semana passada foi lançado em São Paulo o Dicionário da Comunicação - segunda edição revista e ampliada, pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho da ECA/USP. Esse humilde blogueiro fez parte dos 80 colaboradores nacionais e internacionais que trouxeram novas correntes de pesquisas e olhares para a comunicação, incluindo diferentes linhas de pensamentos.

Nesta nova edição do dicionário esse blogueiro que escreve essas mal traçadas linhas foi convidado a transformar em verbetes alguns conceitos desenvolvidos por esse blog dentro do nosso projeto de convergência dos conceitos da Teoria da Comunicação e Cinema com o Gnosticismo: “adgnose”, “filme gnóstico”, “cinegnose”, “arquétipos contemporâneos”, “agenda tecnocientífica”, “cinema esquizo”, além de conceitos tradicionais da ciência da comunicação como “agenda setting” e “mitologia” – no sentido dado pelo semiólogo francês Roland Barthes.

sábado, junho 07, 2014

A Copa das não-notícias

A grande mídia esperou até o último instante, aguardando talvez alguma “bala de prata” que prejudicasse, suspendesse ou, no mínimo, colocasse em xeque a realização da Copa do Mundo no Brasil. Um evento que se tornou uma verdadeira dor de cabeça para uma mídia que assumiu explicitamente a oposição política. Mas a Copa vai começar e agora nada pode passar impune: uma nova etapa da guerrilha semiológica iniciada no ano passado se inicia. A pauta negativa, “recomendação” interna da TV Globo para todos os jornalistas na cobertura da Copa, revela uma novidade no paiol das bombas semióticas: a não-notícia. Produto das revistas de celebridades e das coberturas esportivas extensivas como Olimpíadas e Copa do Mundo, elas agora estão sendo turbinadas politicamente por meio de duas estratégias semióticas: fazer o espectador confundir causa e efeito dos acontecimentos e a armadilha da generalização nas indefectíveis enquetes.

Desde as grandes manifestações de junho do ano passado, a grande mídia (que de início execrou como vandalismo e infantilismo político para, logo depois, procurar inseri-las no plot narrativo da oposição na proximidade de ano eleitoral – mensalão, PEC 37 etc.) mobilizando uma pesada artilharia semiótica de construção de textos e imagens que sintetizem em um frame, fotograma, parágrafo, legenda de foto etc. um conjunto de percepções e fragmentos ideológicos. Chamamos esse arsenal de recursos retóricos e semiológicos de “bombas semióticas”.

Desde junho do ano passado uma variedade
de bombas semióticas assolaram
a opinião pública
Ao longo desse período detectamos diversos tipos de bombas: dessimbolizações, infotenimento, a black bloc good bad girl, fotos-choques, cavalos de Tróia, guerrilha de memes, exploração fetichista de animais e mulheres, tomates e inadimplência. Isso sem falar de acidentes com jornalistas no momento em que montavam bombas como, por exemplo, o caso da bomba semiótica do Enem ou a “barrigada” darepórter da rádio CBN que via no campus da USP mensagens cifradas análogas às do tráfico de drogas nos morros do Rio de Janeiro. Essa variedade de bombas semióticas teve um objetivo em comum: manter a opinião pública em estado de constante tensão em um País supostamente à beira do abismo econômico e em situação pré-insurrecional.

Mas agora quando a agenda nacional passa a ser dominada pela Copa do Mundo, entra em cena uma nova bomba semiótica: a da não-notícia. A grande mídia caiu em si que não só vai ter Copa, mas como também manifestações de protestos podem ficar isoladas ou, no mínimo, deslocadas na opinião pública em relação ao evento esportivo internacional.

quinta-feira, junho 05, 2014

Max Headroom antevia o fim do jornalista e as bombas semióticas

Voz sampleada, gaguejante e distorcida de um personagem dotado de senso de humor cínico e irônico. Era Max Headroom, personagem digital resultante de uma secreta experiência da gigantesca Rede 23 de TV para substituir o jornalista estrela da emissora numa conspiração para encobrir uma bomba subliminar que matava espectadores. “Max Headroom” (Max Headroom, 1985), criado por Peter Wagg e exibido pela emissora inglesa Channel 4, além de ser um ícone do imaginário ciberpunk da então nascente tecnologia digital, foi um filme profético: já estava lá a futura precarização do trabalho do jornalista até o seu desaparecimento através da tecnologia telemática (repórteres guiados por telemetria e dependentes de controladores) e as bombas semióticas criadas na atual guerrilha semiológica das mídias, simbolicamente representados no filme pelos mortais “blipverts”.

As representações dos jornalistas no cinema sempre ficaram em um movimento pendular entre de um lado heróis investigativos e idealistas vivendo no underground da sociedade e, do outro, ambiciosos e potencialmente corruptos. Filmes como A Montanha dos Sete Abutres (Ace in the Hole, 1951) e O Quarto Poder (Mad City, 1997) mostram jornalistas inescrupulosos, ambiciosos e manipuladores, enquanto Todos Os Homens do Presidente (All the President’s Men, 1976) mostram Bernstein e Woodward como a quintessência do jornalismo investigativo capaz de derrubar o presidente da maior potência do mundo.

Já o filme piloto de uma série chamado Max Headroom, criado por Peter Wagg para o Channel 4 inglês em 1985, rompe com essa dualidade das representações cinematográficas do jornalismo ao vislumbrar um futuro (na verdade, a atualidade) onde as tecnologias telemáticas modificam radicalmente o papel do jornalista: do profissional que buscava a notícia, que pesquisava os dados brutos e buscava conexões, ao mero veículo de uma suposta transparência da imagem tecnológica onde o repórter vira o protagonista da própria notícia. Tudo isso para encobrir a própria precarização da profissão.

terça-feira, junho 03, 2014

Por que as aves atacam em "Os Pássaros"?


Hitchcock não levava a sério as ideias freudianas e irritava-se com as interpretações psicanalíticas de seus filmes, principalmente do filme “Os Pássaros” (The Birds, 1963): “Idiotas estúpidos! Sempre estive consciente do que fiz em todas as minhas obras”, esbravejava. Mas as imagens dos pássaros atacando seres humanos em um pequeno vilarejo litorâneo tornaram-se atemporais, como se Hitchcock, mais do que roteirizar, dirigir, montar e editar, inconscientemente tivesse buscado seus insights tanto em fatos científicos ocorridos com aves em 1961 na Califórnia, quanto nos arquétipos do inconsciente coletivo da humanidade. Por isso, de todos os filmes do diretor (Hitchcock considerava o filme como o “menos Hitchcock” da sua carreira), “Os Pássaros” foi o filme que mais rendeu interpretações, sejam científicas, psicanalíticas, filosóficas e gnósticas: por que os pássaros de Hitchcock atacaram? É o que vamos tentar responder.

A crítica especializada em geral considera o filme Os Pássaros o último grande filme de Hitchcock, rodado em 1963 quando a reputação do diretor estava no auge. O filme anterior Psicose (1960) tinha sido um sucesso e a Universal Pictures deu para o diretor três milhões de dólares para o seu próximo projeto. Hitchcock já havia se tornado a marca exclusiva do cinema de suspense com narrativas sobre espionagem, psicopatia, frieza, romance e muito humor negro.

Porém, Os Pássaros foi o filme que o redefiniu ou, como o próprio diretor considerou, era o filme “menos Hitchcock” da sua cinematografia até aquele momento: ele pela primeira vez se valeu da tecnologia como os efeitos sonoros construídos por um instrumento eletrônico chamado Mixtur-trautonium (o filme não possui trilha musical a não ser diegéticas – crianças cantando na escola, som do rádio do carro ou quando a protagonista toca ao piano); efeitos especiais indicados ao Oscar para criar os temíveis pássaros assassinos; e a utilização de muitas tomadas externas, técnica que ele nunca preferiu – costumava rodar os filmes completamente em estúdios.

sábado, maio 31, 2014

A bomba semiótica Forte Apache

Depois de 14 anos das comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil onde os índios foram recebidos com armas e bombas pela polícia e a grande mídia relatou tudo de forma burocrática e irônica, repentinamente eles foram redescobertos e levados a sério. “Índios cercam o Palácio do Planalto” é o tom geral das manchetes com muitas fotos com flechas e índios em poses ameaçadores em contraste ao futurismo de Brasília. É a bomba semiótica Forte Apache. Esse conceito não tem nada de ironia ou deboche: o núcleo dessa bomba linguística são fotos onde poses e situações forçam a associação com o imaginário hollywoodiano do western. Seja apanhando, sejam fotografados, os indígenas brasileiros continuam estranhos em sua própria terra: às vésperas do campo de batalhas simbólico decisivo da Copa do Mundo, tornam-se, agora, suportes passivos dos signos construídos por espertos fotógrafos. São as “fotos-choques”, estado semiótico intermediário entre o fato real e o fato alterado.

O presidente eleito pelo colégio eleitoral em 1985, Tancredo Neves estava entre a vida e a morte no Hospital das Clínicas em São Paulo. E eu iniciava minha carreira no jornalismo como um "foca" na reportagem do jornal A Tribuna de Santos. Ficava impressionado como, apesar do caos que era uma redação, o jornal conseguia ser finalizado e chegava diariamente nas bancas. Aos poucos ia pegando os macetes: as notícias e os textos jornalísticos eram praticamente padronizados, bastando apenas preencher as variáveis: o que, quem, quando, como, onde e por que.

Enquanto Tancredo agonizava em São Paulo e o País torcia pela sua recuperação, descobri que a lógica de linha de produção das redações era fria e pragmática: nas gavetas da mesa do diretor da redação já estavam prontos obituários, biografia, editoriais, retrancas (palavra ou pequena frase sobre manchetes para apresentar o tema da matéria), fotos e páginas inteiras já diagramadas sobre vida e morte de Tancredo Neves.

Logo entendi todo o processo semiótico de produção noticiosa que permitia que aquela loucura de vai e vem na redação desse certo: editores e diretores produziam uma forma, uma estrutura de texto onde a reportagem apenas preenchia as lacunas com as variáveis da chamada “pirâmide invertida” da matéria jornalística. Tempo era racionalizado e as matérias prontas em minutos. Um processo tão técnico e pragmático que os repórteres não percebiam o viés, o enfoque ideológico que sempre estava nessa estrutura pré-fabricada que descia do "aquário" das reuniões de pauta para nós, os "focas".

sexta-feira, maio 30, 2014

Em Observação: "Irreversível" (2002) - o tempo nos devora

Quem não conhece a célebre pintura de Goya de Saturno (Cronos na mitologia grega) devorando seu próprio filho? Como filhos de Cronos, também somos devorados pelo tempo, tornando cada tomada de decisão nossa em causas de efeitos que serão irreversíveis. Esse é o tema do filme francês “Irreversível” de Gaspar Noé. “O tempo destrói tudo” diz a frase de abertura, em um filme que lembra “Amnésia” de Nolan: a história é contada no sentido inverso onde acompanhamos a desconstrução de personagens que de selvagens e brutais vão se tornando sensíveis e apaixonados. Noé propõe uma reflexão incômoda e brutal sobre o tempo, através de duas cenas que já são consideradas antológicas na história do cinema: um estupro e a briga em uma boate gay onde um rosto é desfigurado por um extintor de incêndio. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

Título: Irreversível (2002)

Diretor: Gaspar Noé

Plot: Contado de trás para frente, o filme narra a busca por vingança de Marcus e Pierre, depois que Alex (Mônica Belucci) namorada de Marcus e ex de Pierre, é estuprada violentamente.

Por que está “Em Observação”? – O blog se interessa por filmes que exploram a questão do tempo na narrativa. Irreversível, ao lado de Amnésia de Christopher Nolan, é um desses filmes: a história é contada ao contrário e cada cena é rodada totalmente sem cortes, até a câmera dar uma pirueta e jogar o espectador para outra cena, a parte anterior da história. E por que? O sentido já é dado logo no início do filme com a frase “o tempo destrói tudo”.  Muitos críticos definem o filme como uma fábula sobre o destino. A cada cena que passa o filme parece indagar porque as coisas não tomaram outro rumo, porque somos vítimas do destino.

O plot é extremamente simples, mas a grande atração é a edição e cenas violentas como a do estupro e o estrago que o extintor de incêndio faz no rosto de um personagem na sequência da briga em uma boate gay. Tudo no filme parece feito para criar no espectador estranhamento, repulsa e incômodo. Na primeira exibição no Festival de Cannes 2002 Irreversível foi definido como “repulsivo”, “doentio” e “gratuito”. O enquadramento da câmera não centraliza ninguém na tela, gira de forma desfocada e surreal para marcar o recuo no tempo da narrativa e a narrativa parece desconstruir os personagens: à medida que o tempo passa (ou volta) os protagonistas Pierre e Marcus vão se tornando totalmente diferente daqueles seres brutais e selvagens do início do filme. De homens sedentos por vingança, vão se transformando em seres apaixonados e bem menos agressivos, incapazes de fazer mal a uma mosca.

Por isso, a grande questão que o Gaspar Noé quer discutir: a irreversibilidade do tempo, o porquê das nossas tomadas de decisões e como elas, a cada instante, influenciam de forma irreversível, o futuro. De certa forma, o diretor francês parece querer desconstruir um dos grandes mitos do cinema, principalmente norte-americano: o mito da segunda chance, a possibilidade da vida nos oferecer sempre uma segunda oportunidade para nos redimir de erros cometidos no passado. Noé parece ter em mente o mito grego de Cronos devorando seus próprios filhos. Como filhos do tempo que somos, também somos devorados por ele, vencidos pela sua irreversibilidade. Tudo finda e é consumido, tornando nossas decisões fatalidades.

Por isso essa discussão do tempo é essencialmente gnóstica, já que para os gregos Cronos refere-se a apenas uma faceta da existência: o tempo cronológico e linear das coisas terrenas. É imperfeito e produz a entropia e caos. Ainda existiria Kairos (o momento indeterminado no tempo onde algo de novo acontece) e Aeon (o tempo divino onde as horas não passam cronologicamente, o tempo de Deus). Daí o descompasso que sempre vivemos entre Cronos e o nosso psiquismo,o efêmero versus o eterno.

Daí a linguagem fílmica intensiva do diretor nas cenas: sem cortes, elas são pensadas para serem impactantes e duradouras em nosso psiquismo, apesar da transitoriedade que a linguagem fílmica impõe – a história tem que ser contada, o tempo deve passar.

O que esperar do filme? – A crítica afirma que a violência e o desconforto (produzido pelo enquadramento e ausência da decupagem nas cenas) fazem muitos espectadores abandonarem o filme na metade. Assim o crítico de cinema Tony Pugliesi sintetiza o que o leitor do Cinegnose pode esperar do filme Irreversível: “Incômodo. Se tivéssemos que escolher apenas uma palavra para descrever Irreversível, com certeza, a palavra escolhida seria "incômodo". Ou então poderíamos utilizar palavras similares como intrigante e chocante. Entretanto, incômodo, como você irá perceber ao longo desta análise, nada tem a ver com a possibilidade que o filme de Gaspar Noe seja uma película ruim, muito pelo contrário. Chocante porque a produção possui duas tomadas (seqüências) fantásticas que já entram para a história do cinema devido a forma de como foram gravadas e, também, claro, pela coragem de Noé em gravar essas seqüências. Acredite, elas são muito difíceis de serem até mesmo assistidas. Intrigante, óbvio, pelo modo como a película fora filmada; edição fantástica, brilhante. E ela que faz o filme.”

quarta-feira, maio 28, 2014

A bomba semiótica fashion da Ellus

Modelos vestindo uma camiseta onde se lia “Abaixo Este Brasil Atrasado”. Dessa forma terminava o desfile da Ellus no último SPFW após um desfile repleto de signos militares estilizados. Mais tarde, a irônica foto da mesma camiseta na vitrine de uma loja da grife tendo ao lado um manequim carregando uma blusa com o icônico Mickey Mouse estampado. Essa é a mais nova bomba semiótica, dessa vez fashion. E por que? Porque o niilismo político é fashion, assim como os radicais chics com o seu visual “heroin hero”. Desde que o dandismo morreu com Oscar Wilde, a moda sente a necessidade de expiar o fantasma da sua suposta futilidade e superficialidade. O niilismo político da camiseta que protesta contra o “Brasil Atrasado” é a reedição da estratégia de tornar a moda supostamente sintonizada com a realidade do seu tempo, assim como Viviene Westwood fez com o Punk. E para isso, a Ellus foi buscar na atmosfera turva e tensa da atualidade o mote para tentar mostrar que Moda possui alguma relevância política.

Em uma vitrine de uma loja da grife Ellus em um shopping na Zona Sul do Rio de Janeiro vemos vários manequins com modelos da marca. Chama a atenção uma camiseta preta com os dizeres “Abaixo Este Brasil Atrasado”. Ironicamente, ao lado vemos outro manequim com uma blusa em que vemos o icônico personagem do Mickey Mouse estampado.

A engajada camiseta teve sua estreia no desfile da coleção Primavera-Verão 2014-15 no São Paulo Fashion Week (SPFW) em abril desse ano, com toda pompa e circunstância, com direito até a “carta-manifesto”. Ciceroneado pelo galã global Cauã Reymond, ele entra na passarela ao final com os fashionistas Adriana Bozon, Lea T., Laís Ribeiro e Rodolfo Murilo, todos vestindo a engajada camiseta da Ellus, para finalizar com uma selfie diante dos fotógrafos.

A “carta-manifesto” (na verdade uma colcha de retalhos com os principais mantras repercutidos por redes sociais e nas colunas econômicas da grande mídia) fala em “Brasil=ineficiência, improdutividade”, “custo Brasil”, “políticos e governos antiquados”, “protecionismo” e a ameaça de ficarmos “isolados nas geleiras do Polo Sul”.

segunda-feira, maio 26, 2014

Semiótica do amor revela o desencontro marcado

Dia dos Namorados se aproxima como mais uma data dentro da agenda comercial que envolve Páscoa, Dia das Mães, Black Friday etc. Os críticos mais ingênuos acusam de materialismo a imposição comercial da necessidade em demonstrar amor, afeto ou carinho com presentes caros. Mas a crítica perde de vista algo de mais profundo e perverso: se para a sociedade de consumo o amor é uma mercadoria, ela deve ser inserida na lógica básica mercantil: a escassez do produto conduz a sua valorização no mercado. Por isso, na atualidade estamos presenciando uma intensa estratégia semiótica de produção de, por assim dizer, desencontros marcados: frustrações afetivas, insatisfações sexuais e carências amorosas. Tudo para criar a percepção de que o amor é um bem precioso porque está em falta, agregando cada vez mais valor a jantares românticos, caixas de bom bons e joias. Dessa forma, o amor é mais um bem que se insere na lógica mais geral de criação de escassez para a criação de commodities como a água, meio ambiente, segurança e felicidade.

Dia dos namorados se aproxima, dessa vez ofuscada pela abertura da Copa do Mundo de futebol no Brasil. Celebrado como o dia dos casais apaixonados, surgiu até movimento publicitário de uma marca de cerveja para que o evento seja antecipado um dia antes e os namorados possam acompanhar a abertura da Copa.

Realmente, toda a publicidade e a sociedade de consumo sempre necessitaram do fluxo incessante de amor, paixão, afeto e desejos como matéria prima para a promoção de campanhas de produtos e serviços. Mas ao longo dos tempos o Dia dos Namorados na mídia não se contentou apenas em usar o amor como isca subliminar para vender carros, perfumes, chocolates, roupas e cosméticos. Mais do que isso, hoje o amor é oferecido como mercadoria: como algo que você busca, encontra, experimenta e conquista.

quarta-feira, maio 21, 2014

O que matou Theodor W. Adorno?


O sociólogo, musicólogo e pensador Theodor W. Adorno sempre foi um estrangeiro no seu próprio país e nos EUA para onde fugiu com a ascensão do nazifascismo na Alemanha. Expoente máximo da chamada Escola de Frankfurt, sua crítica da sociedade e da indústria cultural inspirou estudantes que em 1969 se levantavam em manifestações radicais de esquerda e que se inconformaram com a recusa de Adorno em ser uma espécie de guru do movimento. Quarenta e cinco anos depois, pesquisadores como Bill Niven da Notthingan Forest University afirmam que os conflitos pessoais de Adorno com líderes estudantis e a pecha em torno dele de “apocalíptico e pessimista” podem tê-lo matado. Ao contrário desse estereótipo, sua morte prematura interrompeu o seu projeto mais otimista e libertário onde através de uma via “negativa” (e gnóstica) tentava encontrar a “metafísica em queda” que o levaria a fazer uma arqueologia das oportunidades perdidas: a busca das experiências singulares impossíveis de serem dominadas pelos conceitos da Filosofia, ideologias e poderes.

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