Filme "Ham on Rye": a impermanência da juventude entre o sonho e o conformismo

“Ham on Rye” (2019), do diretor Tyler Taormina, é um daqueles filmes para cinéfilos aventureiros: é um filme marcado pela estranheza porque, aparentemente, nada acontece. A única âncora narrativa é uma espécie de ritual de passagem tradicional de uma cidadezinha suburbana sem graça: grupos de adolescentes do final do ensino médio rumam para a lanchonete Monty’s no qual, de alguma maneira, será decidido o futuro adulto de cada um. “Ham on Rye” é um filme sobre a impermanência da juventude e a forma como ela parece desaparecer. É um filme vago, mas, estranhamente prazeroso. Há um subtexto sobre o dilema adolescente do “duplo vínculo”: o medo paralisante da rejeição criado pelo dilema de ficar entre o sonho e o conformismo; entre as aspirações e a resignação.

 

A adolescência é um período crucial das nossas vidas, porém espremido entre a infância (de vital importância para os estudos da Psicanálise por ser a origem da matriz dos nossos traumas e fantasias primárias) e a vida adulta (cujas instituições sociais e políticas são o objeto de tantas disciplinas das ciências humanas).

Período de transição marcado principalmente pelos rituais de passagem, escolares, sociais e mesmo profissionais. Por isso, embora efêmero, é um período da vida lembrado pelas aspirações, conformismo e resignação. É o momento em que a sociedade deve marcar a ferro e fogo, seja nos corpos (no caso das sociedades tribais em que os corpos são pintados ou marcados por tatuagens ou queimaduras) ou no psiquismo dos adolescentes a resignação no mundo adulto em que irá entrar. 

Um ritual tão importante que deve ser estendida das sociedades ocidentais com a sucessão de rituais de passagem para adiar a entrada no mercado de trabalho ou do casamento/maternidade ou paternidade – cada vez mais, as marcas em ferro e fogo devem ser mais fortes e redundantes.

Porém, um ritual paradoxal que faz a adolescência cair numa espécie de cilada comunicacional: de um lado a necessidade de ter uma aspiração, um sonho, uma utopia; e do outro, a necessidade de ser aceito, amado, a busca do sentimento de pertencimento. Um parece cancelar o outro: o brilho dos olhos adolescentes que acabam sendo embotados pelo peso do conformismo e resignação. Como veremos, é aquilo que o antropólogo Gregory Bateson (1904-1980) chamava de “duplo vínculo”.

   O cinema hollywoodiano sempre deu uma particular atenção à adolescência nos mais diversos gêneros (terror, drama, thriller etc.), construindo uma galeria de arquétipos, sempre dividindo entre “vencedores” e “losers”: o garoto popular, o nerd, a garota promíscua, o desajustado etc. São os dramas de adaptação mesclados com os dramas de amadurecimento.

Diante disso, o diretor estreante Tyler Taormina resolveu fazer um estudo descritivo dos dramas de amadurecimento da Geração Z sobre a vida, o destino, aspirações e frustrações de um grupo de adolescentes em um típico bairro suburbano norte-americano. Adolescentes cuja única aspiração é cair fora daquele lugar em busca da maioridade em uma universidade.

Mas antes, devem passar por um paradoxal ritual de passagem: ao mesmo tempo banal e estranho. Esse é o filme Ham on Hye (2019), uma sátira subversiva sobre conformidade urbana. Um filme estranho, porque a princípio parece ser um drama realista de amadurecimento adolescente. Todos os ingredientes dos dramas adolescentes hollywoodianos estão lá: um grupo de garotos populares (alguns nem tanto) do ensino médio em uma cidade sem graça se preparam para o que parece ser um tipo de ritual de passagem que envolve aceitação de alguém do sexo oposto como condição parar aspirar a vida adulta universitária fora dali.

Estranho porque, aparentemente, nada acontece: não há exatamente uma âncora narrativa (a não ser, o ritual de passagem para onde todos estão indo), mas apenas descrições de becos sem saída melancólicos, chances românticas, medos e ansiedades em torno da ideia de se libertar de uma cidade natal suburbana chata. E conseguir isso no suposto mundo glamouroso adulto para além das fronteiras familiares.

Tudo é registrado pela câmera, fotografia e edição de uma forma muitas vezes surreal, sombria, porém tudo banhado por uma luz vibrante e tons pastéis. Na verdade, Ham on Rye é uma meditação de Taormina sobre a adolescência com tons de Gus Van Sant e a expectativa nunca satisfeita de estarmos diante de um Veludo Azul de David Lynch: vemos roseiras, cercas floridas e jardins cuidadosamente podados. Mas não há um Frank comandando um submundo de freaks e crimes. Apenas uma ansiosa espera de algo que nunca acontece.

O Filme

Ham on Rye começa como uma comédia adolescente descompromissada, com uma série de desvios nebulosos, à deriva e orientados pelos problemas da juventude. E então, a história continua, o filme muda de rumo para se tornar algo inexplicável, magicamente surreal e misterioso de maneiras que não podem ser totalmente explicadas, mesmo até o final. 

No geral o filme é um conto sobre o final da adolescência e o amadurecimento. Somente que é estranho, desde o início. Um amontoado de pessoas e lugares povoando um primeiro ato do filme puramente descritivo em uma espécie de miniverso suburbano: as gangues itinerantes de meninas e meninos com distintas personalidades; os aglomerados de incidentes e sentimentos desenterrados pelas sessões de bate-papo sem objetivo, até mesmo misteriosas, e tensões adolescente. É um mundo que parece familiar, mas sem fazer sentido. 

Parece familiar porque todos os personagens são esboços vagos de arquétipos reconhecíveis do ensino médio que todos nós conhecemos da cultura pop dos anos 80-90: o idiota, o desajustado, a “It girl”, a garota popular, o garanhão, o proletário, o misterioso homem taciturno com o cabelo pegajoso e olhos que ameaçam comer a sua alma. Alguns dos atores parecem velhos demais para seus respectivos papéis, mas isso só contribui para a atmosfera sobrenatural do filme. Esta não é a vida real, mas parece assustadoramente próxima. O que contribui para uma experiência fílmica ao mesmo tempo banal e ameaçadora. 

Haley (Haley Bodell) faz parte de um grupo de garotos populares do ensino médio em uma cidade suburbana e sem graça que estão se preparando para participar de algum tipo de tradição local. Ela e algumas outras garotas estão usando vestidos esvoaçantes de um branco sacrificial e se preparando para irem a uma lanchonete local chamada Monty's (junto com uma multidão de outros jovens que estão vindo de todos os lugares) para o que parece ser um ritual de acasalamento. Aparentemente, há muita coisa envolvida nisso, e Haley não consegue se convencer se quer mesmo participar.

Após o primeiro ato do filme, acabamos nos perguntando: do que se trata? Qual é o ponto? Não há um perigo evidente, um antagonista ou uma ameaça. Tudo é mais descritivo do que narrativo: são como fossem esquetes, todos aparentemente destinados a resumir a condição predominante desses adolescentes. Um menino a caminho do baile tem um ataque de pânico. Duas jovens abordam um assunto constrangedor, alguma referência a uma coisa que aconteceu (não sabemos o quê). Enquanto outra jovem ouve que alguém está falando mal sobre ela e, em poucos instantes, está dando um soco na cara do sujeito. O que ele disse? Qual é a tensão? Enquanto isso, vemos um adolescente que aparentemente corre o risco de dormir e perder a hora e o importante compromisso no Monty’s.  

O filme é prazerosamente sonolento, lânguido da maneira que apenas a falta de perigo e a segurança embalsamada da juventude parecem permitir.  

Ham on Rye é um filme sobre a impermanência da juventude e a forma como ela parece desaparecer – aquela lenta evaporação de um período da vida de uma pessoa. E o que temos, quando seguimos este filme para onde quer que ele esteja tentando nos levar, é um vislumbre do que pode estar reservado para a pós-juventude – vemos aqueles que acabaram ficando naquela vidinha suburbana por não terem encontrado um parceiro no Monty’s. E a vida insossa de seus familiares.

O Monty’s parece ser a metáfora do grande ritual de passagem que constitui a adolescência na sociedade. A ansiedade criada pelo dilema de ficar entre o sonho e o conformismo; entre as aspirações e a resignação.

Ham on Rye parece ser uma grande descrição detalhada daquilo que o antropólogo Gregory Bateson certa vez definiu como “double bind”: Trata-se de uma situação na qual a pessoa se vê diante de mensagens simultâneas e contraditórias de aceitação e rejeição (“duplo vínculo”). Diante de tal paradoxo, a vítima vê-se presa num jogo que “não pode ganhar. O duplo vínculo cria uma situação externa ameaçadora para o indivíduo porque incompreensível. Como resultado a pessoa procura modificar a realidade para que ela se mostre menos ameaçadora. A consequência final pode ser a alienação mental.

O drama que parece ser o subtexto de Ham on Rye é essa cilada comunicacional que parece envolver a própria adolescência: de um lado as aspirações de inovação, criatividade, da necessidade de fugir de uma vida sem graça, chata e sem horizontes; e do outro, a necessidade de ser aceito, desejado, amado. 

Essa cilada emocional parece ser a tensão, cujo ápice é o ritual da lanchonete Monty’s. Basicamente um ritual de aceitação ou rejeição (como podemos perceber no próprio pôster promocional do filme – os gestos indicativos de aceitação ou rejeição), cujo desfecho determinará a vida adulta que espera aqueles jovens.

 

 

Ficha Técnica

Título: Ham on Rye

Diretor: Tyler Taormina

Roteiro: Tyler Taormina, Eric Berger

Elenco:  Haley Bodell, Audrey Boos, Gabriella Herrera, Adam Torres, Sam Hernandez

Produção: Omnes Films, Tago Clearing Film Studio

Distribuição: Factory 25

Ano: 2019

País: EUA

 

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