Depois de pouco mais de duas décadas o País está às voltas com
manifestações de apoio ao impeachment de um presidente da República. As
manifestações do último domingo na Avenida Paulista, em São Paulo, foram
consideradas “sem precedentes”, tanto em número de participantes quanto à
infraestrutura formada por trios elétricos, canhões de luzes, áreas VIP e todo
um aparato voltado para o “ethos” de um perfil sócio-econômico acostumado a
serviços e hábitos de consumo de alto nível. Pesquisas como a do Datafolha confirmaram
isso. É importante comparar por dentro, nas ruas, as manifestações anti-Collor
de 1992 e a atual anti-Dilma em aspectos como atmosfera, comportamento, marcas
geracionais, signos de consumo etc. Essa comparação pode revelar as profundas
mudanças na opinião pública brasileira – midiatização, neomoralismo e a
ascensão do “cinismo esclarecido”.
Vinte quatro anos depois surgem nas ruas do País manifestações de apoio
a um impeachment de um presidente da República. Esse humilde blogueiro tem
idade suficiente para ter vivido essas duas épocas: das manifestações marcadas
pelo protagonismo dos jovens chamados “caras-pintadas” em 1992 aos protestos
atuais cercado de toda uma parafernália de adereços e fantasias como patos
amarelos gigantes, bonecos infláveis “pixulecos” e Dilma presidiária chagando a
grupos vestidos de Batman e toda a sorte de super-heróis.
Sem falar das indefectíveis camisas amarelas da CBF, contrastando com as
camisetas pretas do passado como símbolos de protesto ao então presidente Collor.
Durante as manifestações em 1992 esse blogueiro era professor da
Faculdade Cásper Líbero, em pleno coração da Avenida Paulista, e local de uma
série de manifestações na época. O que me permitiu ser um observador
participante daquelas mobilizações.
Curioso em fazer uma comparação das manifestações atuais com as minha
memórias de 1992, rumei à Avenida Paulista nesse último domingo para observar
por dentro a concentração dos manifestantes.
A comparação dos signos visuais que deram expressão midiáticas às
manifestações de 1992 e a atual pode nos revelar mudanças profundas na opinião
pública e esfera pública brasileiras e, principalmente, sobre a politização ou
despolitização de manifestações que foram seguidamente convocadas pelos meios
de comunicação e que vivem a reboque do timing das bombas de cada delação
premiada vazada pelas grandes mídias.
A marca geracional
Chegando à concentração de manifestantes na Avenida Paulista, a primeira
coisa que chamou a atenção foi a faixa etária dos participantes. Um grande
número senhores e senhoras de meia idade, em geral formando casais. Alguns
esbaforidos, aparentemente por terem atravessado toda a avenida. Impressão
visual confirmada pela pesquisa Datafolha: 73% dos manifestantes se enquadravam
na faixa etária entre 36 a 51 anos ou mais.
Um violento contraste com minhas memórias de 1992 onde os manifestantes
eram majoritariamente estudantes universitários e secundaristas com forte
engajamento político em entidades civis como UNE e UBES. O script que a grande
mídia criou para enquadrá-los foi o dos “cara-pintadas” para criar uma alusão a
minissérie da TV Globo da época Anos
Rebeldes.
Muitos deles eram egressos de famílias politizadas de esquerda e se
tornaram líderes de Centros Acadêmicos em Universidades. Ao contrário, nas manifestações
de domingo era nítido o discurso anti-política e anti-partidário.
E uma inferência lógica sobre essa faixa etária dominante nos protestos:
são da geração das mídias de massas e
que atenderam às convocações diárias das grandes mídias. Onde estavam os mais
jovens? Alheios à tudo no Festival Lollapaloza no autódromo de Interlagos.
Jovens que não assistem mais TV.
Atmosfera
Em 1992 havia a lembrança do fim recente da Ditadura Militar (1985) e a
associação da polícia com a repressão política. Por isso a atmosfera das
manifestações era dominada pela tensão e adrenalina de estar tomando um espaço
público para protestos.
Havia no ar uma atmosfera de transgressão e quebra de ordem, sempre à
espera de uma possível repressão ou punição.
Bem diferente a atmosfera que encontrei nesse último domingo: pessoas
caminhando tranquilamente como fosse mais um passeio em uma avenida que é
fechada todo domingo para os pedestres pela Prefeitura. Filhos, netos,
carrinhos de bebê... como fosse o encontro da família em uma preguiçosa tarde
de domingo.
Aqui e ali algumas vezes eram puxadas palavras de ordem ou músicas de
protestos. Mas o que chamava mesmo a atenção era o caminhar desencontrado para
várias direções dos participantes. Ao contrário de 1992 onde a massa
concentrava-se e se movimentava em uma única direção, domingo na Avenida
Paulista haviam muitos momentos de dispersão alternando-se com concentrações
irregulares quando um trio elétrico ou alguém munido de microfone postado em
algum nível acima das cabeças dos participantes ensaiava algum discurso ou
palavra de ordem.
Shows musicais, raios lasers, cerveja e abadás completavam essa estranha
atmosfera (para um ato de protesto) de uma tarde de domingo de diversão. Em
outras palavras, parecia que o evento tinha sido muito mais preparado para
“ocupar” a avenida e render bons planos gerais e aéreos das câmeras do que um
protesto onde os indivíduos estão organicamente ligados por uma causa ou
reivindicação.
Signos de consumo
Outra coisa espantosa foi a infraestrutura sem precedentes montada pelos
organizadores (Movimento Brasil Livre, Revoltados On Line e Partido
Solidariedade) com uma espécie de “área VIP” envidraçada, efeitos cenográficos
com fumaça verde-amarela e canhões de luz.
Cruzei com um carro alegórico e bloco carnavalesco chamado “Fora Dilma”.
Tudo parecia algum tipo de carnaval fora de época. Somado ao caminhar
desencontrado descrito acima, viam-se pessoas concentradas em seus Iphones e
preparando-se para selfies.
Toda uma infraestrutura voltada para uma alta faixa etária de
pessoas com alto nível de renda (segundo o Datafolha: 46% de 10 a 20 salários mínimos) e
que, por isso, habituadas às conveniências do consumo e serviços de alto nível.
Desde as grandes manifestações de 2013, o Cinegnose vem apontando para
um discurso desses manifestantes marcado pelos signos do ethos da classe média: “Vem pra Rua” (retirado de um jingle
publicitário da FIAT), “O Gigante Acordou” (campanha do uísque Johnnie Walker),
“Desculpe o Transtorno, Estamos Mudando o Brasil” (paráfrase das placas de
obras que irritam motoristas no trânsito) etc.
Discutíamos naquela oportunidade se isso não seria um sintoma de como a
Política e a esfera pública estariam sendo absorvidas pela esfera privada de
consumo que pela sua própria natureza, interpela muito mais o indivíduo do que
o coletivo – o sociólogo Richard Sennett chamou certa vez esse fenômeno como o “declínio
do homem público” em uma “sociedade intimista” – sobre isso clique aqui.
Um passeio no shopping com a família e essa manifestação na Avenida
Paulista não guardam muitas diferenças, a não ser um evento ao ar livre. Tudo
com uma infraestrutura difícil de acreditar que seja mantida unicamente com a
venda de “Kits Impeachment Já” (camiseta polo, boné e adesivos), botons e
cupcakes. Quem pagou tudo isso? De onde vem toda essa grana?
Muito diferente dos signos políticos que dominavam as manifestações
anti-Collor em 1992: bandeiras de entidades civis, de partidos políticos,
punhos levantados etc.
Cada época com a sua série de TV
Em 1992 a minissérie que marcaram os protestos foi Anos Rebeldes da TV Globo que abordava o período da luta contra a
ditadura militar brasileira a partir do romance entre dois jovens. A série
tentava capturar o idealismo político de uma geração cuja conexão foi imediata
com os protestos dos jovens cara-pintadas nas ruas. A Política e a discussão
ideológica em seu momento forte como formador de opinião.
Bem diferente do momento atual onde a crise política brasileira é
comparada às intrigas palacianas da série Netflix House of Cards sobre um operador político dos Democratas que
conspira contra o presidente para assumir a Casa Branca. A Política na sua
representação mais niilista, antiética da qual o cidadão de bem deve manter-se
distante à procura de algum salvador que faça o serviço sujo por ele.
Deuses Ex Machina
Talvez por isso as manifestações anti-Dilma e anti-PT sejam tão retro:
as velhas ameaças comunistas, o perigo da bandeira nacional tornar-se vermelha,
conspirações sobre o suposto “politicamente correto” macomunada com gays
comunas. Os álibis da Guerra Fria retornam e os militares são chamados como uma
espécie de deus ex machina.
É surpreendente como manifestantes continuavam a tirar selfies com policiais militares. Mas
quando apareceu na avenida um caminhão blindado de choque da PM as poses para
fotos e selfies se multiplicaram
junto ao enorme “caveirão” preto.
Orgulhosos, manifestantes posavam ao lado de policiais vestidos em pesados
trajes, armados até os dentes e prontos para combate.
O fascínio e o fetiche por signos de força, intervenção e “solução
final” se materializavam em inúmeras camisetas, adereços e faixas homenageando
o comandante da Operação Lava Jato, juiz Sérgio Moro, e o militar da reserva e
deputado Jair Bolsonaro – “Bolsomito” ou “Bolsonaro Presidente” eram os dizeres
mais vistos.
Enquanto eram colocados para correr políticos como Alckmin, Aécio e
Marta Suplicy – esta teve que se esconder no prédio da FIESP ao lado de um gigantesco
pato amarelo.
Um pastiche de militarismo, judicialização da política e fetichismo da
“solução final”. A manifestação desse domingo foi uma expressão visual daquilo
que os analista políticos apontam como a formação de um cartel
judicial-midiático: a submissão da Democracia e o Estado de Direito a um Estado
policial que poderá, a qualquer momento no futuro, voltar-se contra cada uma
daquelas pessoas que estavam alegres desfilando pela Avenida Paulista.
O neomoralismo
E por fim, a essência motivadora desses
movimentos de protestos tanto em 1992 como atual: o moralismo do combate à
corrupção.
Historicamente sabemos que a opinião pública da Alemanha pré-nazismo foi
moldada por matérias elogiosas na imprensa sobre a luta de Hitler contra a
corrupção e o comunismo. Diversos estudos apontam como na época os alemães
foram inebriados por matérias jornalísticas e propagandas.
Naquela época tínhamos o discurso da “moralização da política” que, na
verdade, serviu de álibi para a ocupação militarista do Estado pelo Nazismo.
Mas como escreveu certa vez o pensador alemão Theodor Adorno, um dos
membros da chamada Escola de Frankfurt, toda ideologia tem o seu momento de
verdade. O moralismo como discurso político fazia sentido na época onde o
Capitalismo era regido pela ética da operosidade e poupança, nos moldes da
ética protestante tão bem descrita por Max Weber.
O desenvolvimento do Direito Administrativo na Era Moderna que procurava
racionalizar o realismo político das negociações e barganhas, encontrava uma
opinião pública sensível a uma assepsia na Política. Uma Política virtuosa e
não mais dominada pelo “realismo” ia de encontro à ética do valor ao trabalho e
o mérito.
Com o crescimento da chamada “sociedade intimista” onde o mundo público
da Política e do Trabalho são absorvidos pelas esferas do consumo e
entretenimento, o discurso da moralidade transforma-se em farsa – uma bandeira
para objetivos bem menos nobres.
Como farsa transforma-se em neomoralismo ou “cinismo esclarecido”
(Peter Sloterdijk): todos são contra a corrupção, mas convivem confortavelmente
com a “corrupção boa”: sonegar impostos no cotidiano ao não emitir nota fiscal,
por exemplo. Afinal, não queremos “pagar o pato” da corrupção alheia. Por isso,
combatemos a corrupção com outras práticas corruptas.
O neomoralista defende a eficiência dos serviços públicos de um Estado
supostamente ineficiente, mas não consegue estabelecer a conexão entre a
legalidade tributária e esses próprios serviços. Sua percepção de Estado e
esfera pública se enfraqueceram a partir do momento em que toda a sociedade é
medida pelos princípios do consumo e entretenimento.
Nas manifestações de 1992 ainda tivemos o eco do tempo forte da
Política: o discurso moralista como esperança de trazer a assepsia na gestão
pública e no Poder. Agora, o cinismo esclarecido do neomoralismo toma conta da
opinião pública. Uma percepção niilista e pessimista da Política cuja única
solução só pode ser a final – um deus ex
machina forte, determinado e impiedoso como o Deus do Velho Testamento
bíblico.
Por isso, no espaço público da Avenida Paulista máscaras, faixas e
adereços do juiz Sérgio Moro e do “Bolsomito” para presidente conviviam
confortavelmente com um verdadeiro carnaval fora de época onde trios elétricos,
shows e canhões de luzes convocavam não o coletivo mas indivíduos que
caminhavam desencontrados para lá e para cá na avenida.
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