Pesquisando o banco de
dados das produções cinematográficas por gênero do IMDB (Internet Movie Data
Base) descobrimos uma curiosa recorrência: os filmes-catástrofe, gênero fílmico
surgido na década de 1970, encontra seu pico de produção a cada contexto de
crises econômicas globais. Vivemos atualmente a terceira grande onda de filmes
desse gênero que coincide com a crise da Zona do Euro. Será apenas
coincidência? Historicamente Hollywood moldou o imaginário social por meio de uma
tática de deslocamento: a transformação em “objeto fóbico” de tudo aquilo que
nos causa medo e repulsa. Com os filmes-catástrofe temos a confirmação disso: a
naturalização das crises por meio dos cataclismos geológicos ou cósmicos
ficcionais e a criação de uma fobia ou medo coletivo por qualquer aspiração por
mudança.
O cinema sempre teve uma íntima
ligação com os momentos históricos de crise, sejam elas econômicas, políticas
ou sociais. Podemos considerar o cinema um perfeito sismógrafo das tendências
implícitas da sociedade que o produz, como solução imaginária de tensões
sociais ou ainda como sintoma coletivo. A análise dos filmes, principalmente no
que se refere à evolução dos seus gêneros (terror, sci-fi, drama etc.), são excepcionais por revelar verdadeiros
sintomas sociais. Como veremos, é o caso do gênero disaster movies, ou “filmes-catástrofe”.
Desde o início, nos dois lados
do oceano Atlântico, o cinema mostrava essa excepcional característica
sismográfica. Filmes expressionistas alemães como “O Gabinete do Dr. Caligari”
de Robert Wiener (1920), “Nosferatu” de F.W. Murnau (1922), “Dr. Mabuse, O
Jogador” (1922), “Metrópolis” (1926) e
“O Vampiro de Dusseldorf” de Fritz Lang com suas atmosferas de pesadelo
dominadas por linhas e planos tortuosos coincidiam com a turbulenta fase da República
de Weimar na Alemanha e anunciavam a chegada iminente do nazismo.
Enquanto isso nos EUA, a
economia mais poderosa do capitalismo era quebrada pelo crash de 1929 que trouxe um fenômeno surpreendente: a retomadas dos
investimentos cinematográficos e a acelerada expansão de Hollywood, principalmente
com a sonorização dos filmes. Aparentemente um paradoxo: a multiplicação das
salas de cinema e dos espectadores em meio a uma conjuntura de desemprego e
depressão econômica. É o caso da Warner Bros., à beira da falência em 1927,
refaz a fortuna em plena depressão econômica dos anos 1930 através do cinema
falado.
Cinema como sismógrafo da História: o expressionismo alemão anunciava a chegada do nazismo |
Filmes como “As Vinhas da Ira”
(1940) de John Ford, o retrato dos desempregados que vagavam pelo país à
procura de meios para sobreviver, os heróis idealistas e otimistas dos filmes
de Frank Capra ou gêneros simplesmente escapistas como os musicais eram o
remédio hollywoodiano para almas desesperançadas.
Se na
Europa o cinema mostra-se como sismógrafo de uma conjuntura turbulenta, nos EUA
sua aplicação é mais prática: como solução imaginária para as crises. Isso se
mostrou evidente na Segunda Guerra Mundial nos esforços de propaganda de
Hollywood, onde o soldado norte-americano era glamurizado e super-heróis dos
quadrinhos (Super-Homem, Capitão América etc.) tornam-se a resposta de contra-propaganda
aos novos super-heróis promovidos pela propaganda nazi.
Cinema e objeto fóbico
A
partir do pós-guerra, o cinema principalmente hollywoodiano assume outra
função: a de sintoma. Mais precisamente, a de expiação daquilo que em psicanálise
entende-se por “objeto fóbico”. Temas recorrentes como a invasão de alienígenas
seja por meios de tecnologias avançadas (“A Invasão dos Discos Voadores”, 1956)
ou por contaminação viral (“Vampiros de Almas”, 1956), monstros resultantes de
mutações genéticas nucleares (“O Mundo em Perigo”, 1954) ou a simples revolta
da natureza (“Os Pássaros” (1963) de Hitchcock) prenunciam essa função
imaginária de expiação daquilo que nos causa medo ou repulsa.
É o
habitual fenômeno de deslocamento de Hollywood onde a ansiedade e medo coletivo
da guerra nuclear e da guerra fria são transferidos para um objeto fóbico
representados por invasores alienígenas, formigas gigantes ou pássaros
assassinos.
Mas
esse conceito de “objeto fóbico” é muito mais complicado: não se trata
simplesmente de medo a um objeto. O próprio medo e o objeto, em si, já são
sintomas. Como Freud afirmava em 1909, “aquilo
que é hoje o objeto de uma fobia, no passado deve ter sido também a fonte de um
elevado grau de prazer” (Cf. FREUD, S. “Análise de uma fobia de um menino de
cinco anos”, Capítulo III parte II).
As ondas de filmes-catástrofe
Isso pode ser explicado melhor com o surgimento do
gênero “filme-catástrofe” nos anos 1970. Filmes sobre catástrofes (incêndios,
maremotos, terremotos, panes tecnológicas, enchentes etc.) que surgiam de
repente e abalavam a harmonia de uma comunidade começam a se multiplicar desde
o filme “Aeroporto” (1970). Seguem-se “O Destino de Poseidon” (1972),
“Terremoto” (1974), “Inferno na Torre” (1974), “Heat Wave” (1974), “Aeroporto
1975”, “Flood!” (1976) entre outros.
Depois de décadas de crescimento e estabilidade
econômica no pós-guerra, os anos 1970 foram marcados pela aceleração da
inquietude com a crise do petróleo associado às sucessivas derrotas
norte-americanas do Vietnã, conflitos raciais, o escândalo de Watergate e a
moratória disfarçada de Nixon ao romper o acordo de Breton Woods e decretar o
fim do lastro-ouro para o dólar.
Segundo Ignácio Ramonet, esse gênero de blockbuster teria o papel habitual de
“deslocamento”: as calamidades fílmicas teriam a função de “criar um objeto
fóbico que permitiria ao público localizar, circunscrever e fixar a formidável
angústia ou estado de aflição real suscitado pela situação traumática da crise”
(Veja RAMONET, Ignácio. Propagandas
Silenciosas. Petrópolis: Vozes, 2002, p.86).
Se
acompanharmos a produção dos filmes desse gênero veremos que os picos de
produção localizam-se exatamente em contextos históricos de crise econômica.
Trabalhando com uma amostragem de 200 filmes do banco de dados do IMDB
(Internet Movie Data Base) referente à produção de disaster movies entre 1970-2013 em torno de 1.500 no total
percebe-se nitidamente isso - veja tabela abaixo.
Após as crises dos anos 1970,
segue-se a era de ouro das políticas neoliberais da era Reagan e Thatcher nos
anos 1980 e a estabilidade econômica mediante a socialização dos prejuízos pela
dilapidação do Estado. Em uma década triunfante coroada com a queda do Muro de
Berlin e o início da ordem global, despenca a produção de filmes desse gênero.
O gênero será retomado na segunda metade dos anos 1990, época das primeiras
grandes crises financeiras sistêmicas e globais: a crise do México em 1995, a
crise das bolsas asiáticas em 1997-98 e o calote russo em 1998.
A retomada dos
filmes-catástrofes vem com filmes como “Independence Day” (1996), “Daylight” (1996),
“Twister” (1996), “Titanic” (1997), “Volcano” (1997), “O Inferno de Dante”
(1997), “Impacto Profundo” (1998) entre outros.
E na segunda metade dos anos
2000 com uma nova onda de instabilidade pela explosão da bolha especulativa
imobiliária dos EUA em 2008 e o derretimento da Zona do Euro a partir de 2009,
experimentamos um novo pico de filmes catástrofes: “Cloverfield – Monstro”
(2008), “Fim dos Tempos” (2008), “A Estrada” (2009), “2012” (2009), “A Epidemia”
(2010) etc. E a onda de filmes continua na década de 2010 como reflexo da
demora da retomada da economia mundial: “Invasão do Mundo: a batalha de Los
Angeles” (2011), “Ataque ao Prédio” (2011) ou “O Impossível” (2012).
A ambiguidade das crises
Seguindo o conceito freudiano de
objeto fóbico, podemos concluir que há uma dupla necessidade imaginária para o
cinema expiar a ansiedade coletiva pelas crises por meio dos filmes-catástrofe:
(a) Como Ignácio Ramonet bem
observou, com o efeito de deslocamento, circunscrever e fixar o vetor da crise
como uma calamidade de ordem natural para, dessa maneira, despolitizar os
acontecimento;
(b) Retirar uma perigosa
ambiguidade imaginária das crises: assim como Freud observou que o objeto de
uma fobia foi fonte de prazer no passado, crises e instabilidades vislumbram a
inesperada possibilidade de libertação com a destruição de uma ordem. Crises e
desordens podem produzir desobediências civis e, no âmbito político,
possibilidade de novos discursos críticos emergirem. Por isso a necessidade do
cinema transformar a crise em um objeto fóbico, para afastar do horizonte
qualquer esperança de mudanças.