sexta-feira, junho 07, 2024

Realismo capitalista e capitalismo distópico de Musk na série 'Fallout'


Seja no cinema como no audiovisual, o fim do mundo está ficando cada vez mais estranho. O fascínio de sabermos o que aconteceria após o apocalipse permanece. Porém, não temos mais o tom épico do apocalipse do século XX. Hoje impõem-se uma leitura mais introspectiva: como o que que restou da humanidade se comportaria sob pressão. O resultado é passagem do tom épico para o propagandístico: o fim do mundo sob olhar capitalista distópico do tipo Elon Musk e o realismo capitalista. É o exemplo da série Amazon Prime adaptada do videogame “Fallout” (2024-). Esteticamente é um mush-up dos arquétipos pop do século XX, de David Lynch ao western spaghetti de Sergio Leoni. Mas, dois séculos no futuro, mesmo depois do fim, o que restou mantém a viciosidade capitalista: guerras por fontes de energias não renováveis. Paz e fontes de energia livre não estão nos planos. Porque não geram lucros.

 

O fim do mundo está se tornando um produto fílmico e audiovisual cada vez mais estranho. 

No século passado, o fim do mundo tinha dimensões apocalípticas, épicas. Que pode ser sintetizado naquela linha de diálogo quando Charlston Heston descobre a verdade, na cena final de Planeta dos Macacos(1968), ao ver da Estatátua da Liberdade afundada pela metade na costa litorânea: “Nós finalmente conseguimos... seus maníacos, vocês acabaram com tudo... malditos sejam!”.

Continuamos com o fascínio ininterrupto pelo que acontece após o apocalipse – o fascínio religioso pela escatologia, secularizado pelo cinema (sobre isso, clique aqui). A questão é que no século XXI não se trata tanto sobre o fim do mundo, mas sobre o que acontece com a humanidade quando sob pressão. “Caos!” , poderia ser a resposta. 

Mas a filmografia atual de filmes como O Livro de Eli ou Furiosa: Uma Saga Mad Max ou ainda séries como The Last of Us nos mostra o contrário: sob pressão criamos uma nova ordem obcecada em capitalismo e controle – quem sempre lucra com o medo? Quem determina o significado da liberdade? Quem terá o controle sobre a vida e morte.

Dois fantasmas parece rondar o fim do mundo nesse século: o capitalismo distópico ao estilo Elon Musk e o realismo capitalista.

Enquanto Elon Musk cria uma distopia de como o capitalismo está destruindo o planeta e oferece como única solução o... Capitalismo (sua SpaceX, para nos mandar para Marte), o crítico cultural Mark Fisher descreve um zeitgeist invisivel e expansivo: a construção propagandística de uma percepção fluida, desesperançosa e impotente de que a realidade é incontornável. Uma coisificação da vida como uma ordem natural das coisas – as coisas se sucedem porque essa é sua ordem, seu fluir natural, como se nada tivesse sido feito para as coisas serem assim - leia FISHER, Mark. Realismo Capitalista, Autonomia Literária, 2020.

A série da Amazon Prime Video Fallout (2024-) é uma amostra do espírito do tempo desse século. De início seus criadores Geneva Robertson-Dworet e Graham Wagner enfrentam o desafio de levar para a telona uma adaptação de um game tão bem-sucedido. Um game de estrutura aberta e com um pequeno esqueleto narrativo que se torna um desafio para adaptar a uma série com estrutura minimamente linear, com começo, meio e fim.

Por isso, os episódios são preenchidos com um show de arquétipos contemporâneos pop com ecos imagéticos dos pesadelos oníricos de David Lynch, das distopia desérticas de George Miller e a atmosfera do western spaghetti de Sergio Leone.



O resultado é uma combinação dos tropos tradicionais de pós-apocalipse nuclear com tomadas semi-irônicas da cultura pop dos anos 50, convenções de filmes B e sangue,muito sangue em nível de terror - além de muitos “ovos de Páscoa” e alusões pop ocultas para o prazer dos cinéfilos). É uma história perfeitamente ritmada, engraçada e autoconsciente sem piscar para a câmera, mas sem em nenhum momento fazer alguma metalinguagem para a câmera.

O universo Fallout, tanto no videogame quanto na série, é desafiadoramente estranho: as coisas mais incomuns que podem acontecer com as espécies da Terra após a radiação nuclear ter ocupado tudo. E o que supostamente restou da humanidade, escondida sob o solo em vários “Vaults” ou “Cofres” – essencialmente comunidades que pararam na década de 1950, com toda música, cultura e hierarquização política que marcou aquela época. Mas que agora, dois séculos depois, terão que sobreviver em um mundo violento.

Imagine um mundo que o o cruzamento da cidade idílica de Blue Velvet de David Lynch com Mad Max. Um verdadeiro mash-up de cultura pop é tudo o que restou da antiga civilização.

Mas uma coisa permaneceu: o realismo capitalista – o domínio pelo medo e a busca do monopólio eda eliminação da concorrência pelo controle daquilo que marcaram todas as guerras: a luta pelo domínio e controle das fontes de energia.

A Série

O universo Fallout abre na América da década de 1950, no auge da guerra fria e do “perigo vermelho”, com a ex-estrela de TV Cooper Howard (Walton Goggins) decadente e reduzido a aparecer em uma festa de aniversário infantil de uma rica família de Hollywood. Uma nuvem de cogumelos aparece no horizonte, a onda de explosão atinge a todos, e o apocalipse chega.



Os mais endinheirados já têm lugares garantidos em “Cofres” seguros debaixo da terra, criados por uma empresa chamada Vault-tech. 

Os fãs dos jogos Fallout sabem que cada Vault criado pela Vault-Tec não é apenas um abrigo da guerra nuclear, mas também um local de testes onde a corporação poderia executar vários experimentos em seus residentes. Inicialmente, sugere-se que o Vault 33, que abre a série, foi projetado para simular uma “meritocracia perfeita”, seguindo os ditames da déecada de 1950.

Toda a ingênuidade dos anos 50 e as melhores partes de seus costumes - educação, consideração, cooperação, modéstia e contenção - foram preservadas, embora com algumas reviravoltas ocasionais: treinamento diário com armas o cuidado para evitar se casar com um de seus muitos primos.

O idílio subterrâneo é despedaçado quando eles são brutalmente invadidos por moradores de superfície liderados por uma mulher chamada Moldaver (Sarita Choudhury). 

O prefeito do Vault 33, Hank MacLean (Kyle MacLachlan) , é sequestrado elevado para a superfície. Sua filha Lucy (Ella Purnell) desafia as ordens do Conselho que restou da matança e deixa o Vault para encontrá-lo. 

Ele tem tudo para nãosobreviver em um mundo devastado, radioativo, com baratas mutantes e outros seres asquerosos. Além da violência de gangues ao melhor estilo Mad Max. Lucy é uma crente de olhos doces, com rígida orientação moral pela “Regra de Ouro” (faça aos outros como você gostaria que eles fizessem a você). Ela está totalmente despreparada para a variedade de “delícias” que habitam a superfície. 

As ameaças de superfície incluem baratas gigantes (afinal,não dizem que elas serão as únicas a sobreviverem a um holocausto nuclear?), monstros marinhos horríveis, envenenamento por radiação, sobreviventes amarrados, fanáticos de vários tipos, incineradores de filhotes e Demônios canibais. 



Há também a “Irmandade do Aço” que tenta controlar o Wasteland, que caça relíquias tecnológicas antigas para evitar que não repita a destruição . A Irmandade é dividida em Lordes (em trajes do Homem de Ferro), Escudeiros que participam e esperam se tornar comoeles e Aspirantes treinando como Escudeiros. O aspirante Maximus (Aaron Moten) é outro protagonista e nós o seguimos enquanto ele inesperadamente é promovido a Lorde. A missão dele? Adquirir uma cabeça decepada que Lucy também precisa encontrar, contendo um chip que Moldaver quer (e que Lucy espera trocar por Daddy MacLean).

A maior ameaça de todas, no entanto, são os Ghouls, e um em particular - um remanescente sem nariz e mutante de Cooper Howard que também está caçando a cabeça.

É a energia, estúpido! Alerta de Spoilers à frente

A cabeça decepada é de um cientista que escapou de um complexo com um chip azul implantado em seu pescoço – na verdade um reator de fusão a frio, projetado para produzir energia ilimitada.

Foi originalmente desenvolvido no ano de 2077 pela Moldaver antes da Vault-Tec adquirir a tecnologia, apenas para arquivar, pois ameaçava trazer paz a um mundo que luta continuamente pelo controle de recursos finitos. 

E, como sabemos, a paz é ruim para os negócios da Vault-Tec. A propósito, a própria explosão nuclear que levou ao fim do mundo foi um inside job da corporação. Quando as fortunas de Vault-Tec foram ameaçadas com um potencial tratado de paz que tornaria suas centenas de abrigos nucleares obsoletas, a corporação foi em frente e lançou suas próprias armas nucleares, dando assim o pontapé inicial na guerra apocalíptica. Fizeram isso para garantir que o produto da empresa, os Cofres, não acabassem virando relíquias extintas e não utilizadas.



O reator dá início a uma corrida entre Lucy, a Irmandade do Aço, e o caçador de recompensas Ghoul (é o momento western spaghetti) para adquirir o reator por suas próprias razões pessoais.

É a “propaganda fluida” do realismo capitalista que dá o tom da narrativa: mesmo após o fim do mundo, continuam não só as guerras pelo controle de fontes energéticas como também o cálculo capitalista: para a elite (principalmente aquela meritocrática do Vault 33) uma fonte de energia infinita não seria bem-vinda – seria energia livre e gratuita para todos. Não só a energia limitada, mas principalmente as guerras por essas fontes limitadas geram lucros.

Até aqui as fonte de energia foram escassas, não renováveis, poluidoras e que ocasionam terríveis guerras. A mais recente, a da Faixa de Gaza na qual Israel de Netanyahu quer passar com um rolo compressor sobre palestinos para por as mãos em jazidas de gás natural da região – fontes necessárias também para a Europa, que boicota as fontes energéticas da Rússia,  dentro dos embargos econômicos impostos pelos EUA na guerra da Ucrânia.

Certamente, no mundo atual, uma fonte de energia infinita e livre seria muito mal recebida e ocultada sob uma intrincada conspiração: as guerras não podem acabar, são lucrativas, mantém a hierarquia e põem as massas populacionais sob o jugo do medo e da disciplina militar.

Dessa maneira, é nos episódios finais que a série mergulha em águas temáticas profundas, desempacotando comentários sobre luta de classes e até mesmo sobre o complexo militar-industrial de maneiras que às vezes excedem o escopo dos episódios. 

No entanto, a temporada termina com confiança e reviravoltas suficientes para o que será semeado na próxima temporada. Afinal, o mercado do fim do mundo só está aumentando.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Fallout (série)

Diretor:  Wayne Yip

Roteiro:  Geneva Robertson-Dworet, Graham Wagner, Gursimran Sandhu

Elenco: Ella Purnell, Aaron Moten, Kyle MacLachlan

Produção: Amazon Studios, Kilter Films

Distribuição: Amazon Prime Video

Ano: 2024

País: EUA

 

 

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