O jornalismo corporativo bate bumbo sobre o relatório “Índice da Percepção da Corrupção” da pouco transparente ONG Transparência Internacional – de relações promíscuas passadas com a Operação Lava Jato. Segundo a pesquisa, o Brasil caiu dois pontos no primeiro ano do governo Lula. É a grande mídia de volta ao modo alarme com a pauta da corrupção. Enquanto Moro é sacrificado como um anti-herói que, em seu último ato, deve morrer para salvar o seu legado: o lavajatismo. Por enquanto, corrupção ainda é vista como ameaça futura. A pedra angular da pesquisa é o conceito de “percepção”, confundida com “opinião”. A questão é que a percepção não é um juízo pessoal, mas uma “ignorância pluralista” moldada pela consonância, acumulação e onipresença da pauta midiática. Por isso, o índice da pesquisa é “tautista” (tautologia + autismo midiático): reflete apenas o ecossistema midiático - espelha o modus operandi da grande mídia na guerra híbrida.
Em um texto clássico chamado “A Opinião Pública Não Existe”, o sociólogo francês Pierre Bourdieu desconstruía os três pressupostos das pesquisas de opinião: todos têm opinião; todas as opiniões têm valor; há um consenso em torno do problema formulado pela questão - leia o texto, clique aqui.
Mas Bourdieu poderia acrescentar um quarto pressuposto a ser desconstruído: que toda opinião é um parecer pessoal formado sobre qualquer assunto.
Nessa semana a grande mídia bateu o bumbo do último relatório da ONG Transparência Internacional, sediada em Berlin, que anunciou a queda de dez posições do Brasil no chamado “Índice de Percepção da Corrupção 2023”.
O índice classifica as nações de acordo com pontuação que vai de 0 (“altamente corrupto”) a 100 (“muito íntegro”), considerando “100” o melhor cenário. Enquanto a média mundial ficou em 43 pontos, a pontuação brasileira caiu de 38 para 36 pontos em 2023. Isto é, para a ONG, o fenômeno da corrupção piorou no primeiro ano do governo Lula 3.
“Pior queda do Brasil desde 2017”, “Brasil piora”, “Brasil cai”, “Brasil perde” etc. foram algumas das manchetes na mídia em seu modo alarme, anunciando, para quem for bom entendedor, que: (a) o jornalismo de guerra voltou; (b) o lavajatismo não morreu – está sendo revivido com a necessária imolação do outrora herói anti-corrupção, o ex-juiz Sérgio Moro, em praça pública.
É o sacrifício necessário do herói em seu último ato, para salvar o seu próprio legado: o recall junto à patuleia da corrupção intrínseca ao lulismo-petismo.
Enquanto Moro é sacrificado, a grande mídia revive esse legado do lavajatismo através de uma pesquisa com uma metodologia nada transparente, efetuada por uma organização que teve ligações promíscuas com a Operação Lava Jato – a Transparência Internacional, em conluio com o procurador Deltan Dallagnol, seria a gestora da fracassada Fundação Lava Jato que receberia os bilhões de reais resultantes dos pagamentos dos acordos da Petrobrás e Odebrecht com a Justiça – clique aqui.
Moro: o herói que precisa ser sacrificado no último ato |
Metodologia sem transparência
De início, tanto a metodologia quanto o conceito de “percepção” do qual parte a pesquisa são nada transparentes. Primeiro, a Transparência Internacional descreve a fonte de seus dados provenientes de treze diferentes fontes de dados de doze diferentes instituições como Banco Mundial, World Economic Forum Executive, Freedom House Nations entre outros nomes pomposos e “inspiradores” com palavras como “Liberdade”, “Sustentabilidade”, “Democracia” ou “Justiça Mundial”.
Entre essas fontes dos dados estão servidores públicos, “especialistas” e todos aqueles próximos ao setor público e, portanto, "mais sensíveis” à experiência da corrupção em um país.
Porém, o mais problemático é o conceito de “percepção”, pedra angular da suposta pesquisa. Por que “percepção”? Segundo a organização, “é difícil avaliar os níveis de corrupção em diferentes países com base em dados empíricos rígidos, por exemplo, comparando o número de processos ou processos judiciais.”. Para a ONG esses dados não refletiriam os “níveis reais de corrupção”, mas apenas o trabalho de promotores, tribunais etc. E destaca: “o único método de compilar dados comparativos é, portanto, basear-se na experiência e nas percepções daqueles que são mais diretamente confrontados com as realidades da corrupção em um país”.
Com isso voltamos à nossa contribuição à crítica de Pierre Bourdieu ao conceito de Opinião Pública. “Opinião” e “percepção” não só se misturam nessa pesquisa da Transparência Internacional como também, ao fazer essa fusão, apenas confirma a natureza midiática dos dados provenientes dessas fontes: numa sociedade mediatizada, a percepção deixa de ser um juízo ou um parecer pessoal diante de uma realidade empírica – aquilo que forma um clima de opinião ou a percepção a cerca de uma suposta realidade dada é o ecossistema midiático. Capaz de criar consensos, climas, atmosferas difusas que substitui a realidade empírica.
A tese desse humilde blogueiro é que o Índice da Percepção da Corrupção erra no que viu e acerta naquilo que não viu – a “percepção” que o índice representa não são resultantes de pareceres individuais, mas de consensos baseados em “credibilidade” ou na verossimilhança midiática.
Em outras palavras, a pesquisa tem uma natureza tautista (tautologia + autismo midiático): ela apenas é um sismógrafo de como o ecossistema midiático repercute mais ou menos a pauta da corrupção. Ou mesmo, quando o termo “corrupção” é substituído por eufemismos que acabam alterando a percepção de que a corrupção caiu – como veremos adiante - sobre o conceito de "tautismo", clique aqui.
Se a percepção é moldada pela acumulação, consonância e onipresença da pauta do momento nos meios de comunicação, então o índice quantifica nada mais do que o alcance e repercussão de uma determinada pauta ou agenda. Portanto, é tautológica e autista midiática.
Dois nomes relevantes podem nos ajudar a esclarecer essa tese: o pensador francês Jean Baudrillard e a cientista política alemã Elizabeth Noelle-Neumann.
Verossimilhança e espiral do silêncio
Em um texto chamado “A Informação no Estágio Meteorológico”, o pensador francês Jean Baudrillard refletiu como ambiente midiático privilegia a credibilidade e a verossimilhança (percepção) no lugar da verdade: lançada a informação ou notícia, enquanto não for desmentida será verossímil. Nunca a informação poderá ser desmentida em tempo real. Portanto, será apenas credível. Mesmo depois de desmentida, nunca mais será falsa, porque foi antes credível.
Para Baudrillard, o problema da credibilidade é que ela não tem limites. Diferente da Verdade, é impossível de ser refutada por ser virtual - leia BAUDRILLARD, Jean, “A Informação no Estágio Meteorológico” In: Idem, Tela Total, Sulina, 1997.
Em si mesma, uma notícia repercutida em acumulação, consonância e onipresença (CAO) torna-se crível (e não verdadeira). Pelo fato de todos os veículos entrarem em consonância ao longo do tempo, qualquer notícia se torna verossímil – no ponto de vista da percepção, “verdadeira”.
Essa descrição de Baudrillard é complementada com o conceito de “espiral do silêncio de Noelle-Neumann. Para a cientista política os indivíduos parecem ter um “órgão quase estatístico”, uma espécie de sexto sentido sobre o que a sociedade em geral está pensando ou sentindo. Para a pesquisadora, a mídia, e em particular a TV, acelerariam esse processo de silenciamento de uma suposta minoria ao criar um clima de opinião através das CAOs.
A espiral do silêncio partiria de uma percepção equivocada do indivíduo (a “ignorância pluralista”) do que ele acredita ser um clima de opinião - podemos ter uma opinião que pode ser modificada frente a uma posição que achamos ser majoritária. Algo assim: se todos veem a coisa de uma maneira diferente do que penso, deve ser porque estou errado.
Portanto, conceito de “percepção” usado pela pesquisa da Transparência Internacional é tautista: não reflete um suposto índice de corrupção, mas apenas o índice reflete a repercussão das CAOs ao longo dos anos.
No governo Bolsonaro, a palavra "corrupção" desaparece na mídia... Bolsonaro é acusado de tudo. Menos de corrupção. |
Tautismo
Em outras palavras, o índice apenas aufere como a percepção da corrupção se tornou uma profecia autorrealizável.
Se não, vejamos.
Se observamos o gráfico, veremos que o índice brasileiro da percepção da corrupção despenca a partir de 2013 – o ano do acirramento da guerra híbrida com as Jornadas de Junho e o jornalismo de guerra que batia diariamente na pauta sobre um país à beira do abismo e imerso na corrupção.
Recupera-se um pouco em 2016 com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e a esperança do bate bumbo do jornalismo corporativo de que o país estava sendo passado a limpo e tudo seria melhor com a agenda da flexibilização das leis trabalhistas e privatizações.
Mas não foi exatamente isso que aconteceu e o presidente desinterino Temer, ao final e ao cabo, não conseguiu entregar totalmente aquilo que a ávida Faria Lima exigia.
Por isso, o tema da corrupção volta ao modo alarme da grande mídia com dois objetivos bem claros: (a) fazer o recall da suposta corrupção inerente ao lulopetismo, com a proximidade das eleições presidenciais de 2018; (b) dar pernas ao discurso da antipolítica da extrema-direita, através da figura de Bolsonaro, representante do Partido Militar Golpista – o PMiG.
É exatamente nesse período 2017-2018 que despenca ainda mais o índice de percepção da corrupção.
Bolsonaro vence a eleição. Mas estranhamente, desde o início de seu governo, há uma sensível melhora no índice, mantendo-se até o final do seu mandato. Estranhamente, porque o presidente, sua família e ministros passaram a ser alvo de denúncias, repercutidas até pelo próprio jornalismo corporativo.
Mas aqui temos o “pulo do gato” dessa pesquisa de percepção: a questão é que a palavra “corrupção” praticamente desapareceu do noticiário da grande mídia nesse período. Bolsonaro era o “meu-malvado-favorito” (e sabemos que, em termos de guerra híbrida, era essa a sua função, a de “fusível para ser queimado”), porém, o que era colado no seu governo e familiares podia ser qualquer coisa, menos o estrito termo “corrupção” – o lulopetismo parece ter o “name right” da palavra...).
Falava-se em “rachadinha”, “sigilo de 100 anos” de documentos sensíveis, “má versação de recursos públicos”, “negacionismo”, “autoritarismo”, “atos antidemocráticos”, “sexismo”, “orçamento secreto” etc. Mas jamais falava-se em “corrupção”.
Com a volta de Lula ao governo, volta a indefectível pauta da corrupção. Por enquanto, com viés do “perigo”, do “potencial” ou da “ameaça” num horizonte desenvolvimentista: flexibilização da Lei das Estatais, o retorno do BNDES com indutor do desenvolvimento econômico, as indicações “sem transparência” de Lula supostamente indicando “ingerência” na autonomia das instituições. Por exemplo, com a nomeação de Cristiano Zanin, ex-advogado particular de Lula, e de Flávio Dino, seu ministro da Justiça e Segurança Pública e aliado, para o Supremo Tribunal Federal (STF).
Recorrentemente, quando a pauta da corrupção é repercutida em modo alarme (CAOs), como no anos passado, cai o índice da percepção da corrupção.
Portanto, é uma pesquisa sem qualquer metodologia científica, no sentido de querer quantificar uma dada realidade empírica. Sua única virtude é espelhar o modus operandi da grande mídia na guerra híbrida.