O filme “Ficção Americana” (American Fiction, 2023), com cinco indicações ao Oscar, é uma incisiva sátira racial sobre os estereótipos afro-americanos criados pela indústria literária e de entretenimento norte-americano para, como diz o protagonista a certa altura no filme, “absolver o sentimento de culpa dos brancos”. Um professor universitário e romancista negro está com dificuldades para encontrar uma editora que publique seu novo livro. “Escreva algo mais negro”, é o que sempre ouve de publishers brancos e liberais. Misturando raiva, frustração e copos de bourbon, ele escreve uma paródia exagerando todos os estereótipos negros dos guetos. Para sua surpresa, vira o acontecimento literário do ano. Ninguém entendeu a piada. “Ficção Americana” é uma reflexão sobre a impossibilidade encontrar uma exterioridade para fazer uma crítica. A não ser que o diretor quebre a quarta parede do cinema.
O jazz Bebop foi mais do que uma reação a era do Swing e das grandes orquestras que podavam as intenções criativas e o improviso. Nomes como Thelonius Monk, Charlie Parker, Dizzy Gillespie e Miles Davis estavam politicamente reagindo ao estereótipo do negro no jazz, como um mero “entertainer”, um “animador”, criado pela indústria fonográfica entorno do seu mais emblemático representante: Louis Armstrong (que mais tarde reagiria contra isso quando começa a apoiar a luta pelos direitos civis dos negros). Recusar o estereótipo do negro como uma figura sensual, alegre e espontânea que faz música para os brancos dançarem tocando em orquestras.
Ao contrário, esses músicos que se reuniram entorno do “bebop” queriam fazer uma música mais “cerebral”, tão intrincada e metodicamente improvisada que seria impossível os brancos compreenderem e imitarem, como fizeram com swing das big bands.
E mais: alcançar o status universal para sua música, escapando dos rótulos e estereótipos “negros” ou “afro-americanos”.
Por que estamos falando de jazz bebop? Porque o filme indicado ao Oscar (Filme, Ator, Ator Coadjuvante, Roteiro Adaptado e Trilha Sonora Original) Ficção Americana apresenta como protagonista um escritor chamado Thelonius “Monk” Ellison (Jeffrey Wright). Uma irônica referência a esse espírito do jazz bebop que o personagem revive, dessa vez no campo acadêmico e literário.
Ficção Americana é uma incisiva sátira racial sobre os estereótipos afro-americanos criados pela indústria do entretenimento norte-americano para, como diz o personagem a certa altura no filme, “absolver o sentimento de culpa dos brancos”.
“Monk” Ellison é um romancista e professor universitário afro-americano ressentido contra uma indústria editorial que limita a narrativa negra a narrativas sobre traumas e pobreza dos guetos étnicos dos EUA.
Acompanhando Ficção Americana, fica claro contra o que o diretor Cord Jefferson (adaptando o romance de Percival Everett “Erasure”) está se voltando: a safra recente de produções sobre dramas de direitos civis e escravidão da última década após o surgimento de movimentos sociais como #BlackLivesMatters e #OscarsSoWhite ou filmes de gênero como Queen & Slim – Os Perseguidos ou a série de terror da Amazon Them sobre violência racial traumática e que dão aos liberais brancos um caminho para se sentirem absolvidos por terem ao longo da história imposto tais sofrimentos.
Ficção Americana está repleto de ironias: como professor universitário “Monk” Ellison deixa seus alunos liberais brancos desconfortáveis nas aulas ao se contrapor às expressões politicamente corretas sobre raça e identidade – o que torna mais desconfortável é que a crítica parte de um negro...
Como escritor, ele luta para vender seu último trabalho para uma editora. Mas ele não é páreo para os best-sellers de contos do gueto sobre raça, gênero, preconceito e violência. Tentando chamar a atenção em uma feira literária, vê toda a atenção que a mídia dá para o lançamento de “We’s Lives in Da Ghetto” no painel da escritora negra Sintara Golden (Issa Rae), um livro que é uma verdadeira colcha de retalhos dos estereótipos negros, inteligentemente costurados para entreter principalmente o seu público branco.
“Monk” Ellison não se conforma quando vê seu único romance publicado exposto numa livraria na sessão de “Estudos Afro-americanos”. Indignado, ele recolhe os exemplares para levá-los à sessão “Literatura” diante de um incrédulo funcionário... branco. “A única coisa negra nesse livro é a tinta!”, protesta.
Por isso o próprio Ellison se apresenta sempre insimesmado, ostentando um rosto de pedra, sistematicamente contrariando, com tiradas secas e irônicas, aquilo que se espera de um intelectual negro em uma universidade liberal. Ele acredita em uma literatura universal, intelectualmente rigorosa, mais ligada à tradição dramatúrgica de Ésquilo do que a visão unidimensional da experiência negra partilhada pela mídia e mercado editorial.
“Escreva algo mais negro”, é o que ele sempre ouve. Mas Ellison tem uma estratégia irônica para enfrentar todos esses simulacros literários.
O Filme
Conhecemos Thelonius “Monk” Ellison no ponto de ruptura da sua vida.
Na cena inicial do filme acompanhamos como os alunos de sua turma em uma prestigiada universidade em que ele ensina são como flocos de neve supersensíveis – ofendem-se facilmente ao serem confrontados com uma crítica a uma expressão politicamente correta colocada em discussão no quadro negro.
Seus superiores acham que ele está estressado demais e precisa de uma pausa da academia. Os romances de Monk podem até estar publicados, mas são ignorados; todos eles foram relegados para a prateleira inferior da seção “Estudos Afro-Americanos” das cadeias de livrarias, simplesmente porque ele é um autor negro.
Mas uma doença e uma tragédia em sua família já disfuncional o obrigam a se afastar para uma reviravolta. Os futuros pesados gastos de saúde com sua mãe e os relacionamentos familiares complicados acabam tornando-o no arrimo de família.
Seu agente não consegue vender seu mais recente romance, porque nenhuma editora está interessada em reflexões intelectuais multi-camadas. Principalmente vindas de um autor negro
O que é popular agora são histórias “autênticas” de guetos negros: pais caloteiros, cafetões, rappers, crack, a violência de policiais brancos racistas etc. Como “We's Lives in Da Ghetto” - um conto ultrajante para Ellison, repleto de estereótipos escritos pela sensação do momento, Sintara Golden, que nada mais faz do que “pornografia da pobreza”.
Seu agente Arthur (John Ortiz) dá um conselho para “Monk”: Escreva algo “mais negro”. E Ellison dobra a aposta. Depois de alguns bourbons a mais em uma noite e num acesso de raiva, frustração e tristeza, “Monk” decide aceitar o desafio proposto por Arthur, se coloca na ponta dos dedos do teclado do seu laptop e começa a digitar uma paródia a mais ofensiva possível que consegue imaginar sobre medo, aversão, racismo e preconceito em um gueto negro dos EUA.
Ele assume o pseudônimo Stagg R. Leigh e chama sua obra irônica de magna opus “Minha Pafologia”. Tem pais caloteiros, crack e um negro é morto por um policial no final. “Isso é preto, certo?”, desafia “Monk” ao seu agente, que envia o manuscrito para uma editora.
Na verdade, para Ellison tudo deveria ser uma grande piada, um desabafo que, acredita, não teria a menor consequência. Mas tem: nosso herói é elevado por uma publisher branca, liberal e sofisticada à categoria de gênio. O livro não é apenas um sucesso. Se torna o evento literário do ano.
Para completar, “Monk” cria uma biografia ainda mais sedutora para seu pseudônimo: Stagg R. Leigh é um negro fugitivo da polícia, recluso, paranoico e que foge de qualquer lugar quando ouve o som de uma sirene se aproximando.
Ellison queria apenas ofender e menosprezar a indústria editorial norte-americana. Mas não entenderam a piada e levaram a ironia ao pé-da-letra como um autêntico retrato de um gueto de verdade.
Num último ato de desespero para melar tudo, Ellison, incorporando Stagg Leigh em uma conversa ao viva-voz pelo telefone, decide mudar o título para “Fuck!”. Para surpresa dele, aceitam, comemorando com champanhe estourando... Mesmo de ser lançado, o livro já se transformou em roteiro para uma próxima produção hollywoodiana.
Uma benção financeira. Os milhões de dólares adiantados pela editora e Hollywood veem numa boa hora para Ellison que vê sua mãe Lorraine (Myra Lucretia Taylor) num acelerado processo de degeneração neurológica.
O próprio filme Ficção Americana partilha de uma ironia, só que inversa: no filme a família de Ellison, além dele próprio, não seguem nenhum estereótipo negro da narrativa mainstream – são de uma classe média intelectualizada, às voltas com a necessidade de vender uma casa de praia para poder custear os cuidados médicos da mãe. Além dos tradicionais abismos relacionais entre irmãos. Propositalmente o filme quer figurar a vida de negros, mas sem a signalidade clichê negra.
Como o próprio protagonista opina a certa altura, o propósito do filme não pretende ser um revisionismo sobre racismo e preconceito. Eles existem. Porém, a experiência negra não se reduz a isso. É mais multifacetada, para além da necessidade de os brancos buscarem algum tipo de absolvição.
É claro que o filme vai até esse ponto: a necessidade psicológica do alívio da culpa histórica. Não chega à fabricação política desses estereótipos negros, dentro do identitarismo na perspectiva do chamado “neoliberalismo progressista” – a ideologia dos Novos Democratas, um novo “New Deal” com empresários, classe média dos subúrbios e novos movimentos sociais. Todos emprestando um carisma jovem com a boa fé moderna e progressista – a aceitação da diversidade, empoderamento, multiculturalismo e os direitos das mulheres. Enquanto mantém ilesa a estrutura segregacionista de classe.
O centro do filme, a piada sobre um romance que faz uma paródia de todos os clichês sobre a vida dos negros e que é celebrado pela sua “autenticidade” pelo mercado editorial e vira best-seller literário, é o mais emblemático: por que, com a exceção do autor e seu agente, todos interpretaram literalmente a ironia?
Há um fenômeno linguístico na cismogênese social e nas redes criada pela discussão identitária ou guerra cultural: a progressiva perda da capacidade de entender metáforas, ironias para no lugar se impor a literalidade na linguagem.
Uma sensibilidade pós-moderna que certa vez o pesquisador Frederic Jameason chamou de pastiche.
Na paródia há uma simulação das idiossincrasias e singularidades do original através do exagero e do senso de humor. Reside na paródia uma norma cultural que se quer romper ou criticar. Essa foi a essência da paródia do romance “Fuck” de “Monk” Ellison.
Porém, a canastrice, o exagero nos gestos, o overacting, o emocionalmente copioso, tornam-se tão hegemônicos na guerra cultural como forma de propaganda que até mesmo a paródia e a ironia passam a serem compreendidas na literalidade. Porque a própria realidade se tornou hiper-real: emula os próprios estereótipos feitos dela mesma.
Esse é o desespero que toma conta do protagonista: a ausência de uma externalidade para se fazer uma crítica. Ele mesmo é tragado pelo seu próprio pseudônimo que vira uma espécie de alter-ego – aquilo que ele queria negar de si mesmo.
O desafio de Ficção Americana é fazer entretenimento que critique o próprio entretenimento – o final aberto e metalinguístico como uma espécie de brainstorming para escolher o melhor final atesta isso. Mas o diretor Cord Jefferson encontra caminhos inteligentes culminando com a quebra da quarta parede.
É nesses momentos que os personagens negros se afastam de como o mundo os vê e, em vez disso, podem se concentrar em como se veem.
Ficha Técnica |
Título: Ficção Americana |
Diretor: Cord Jefferson |
Roteiro: Cord Jefferson, Percival Everett |
Elenco: Jeffrey Wright, Tracee Ellis Ross, Issa Rae, Erika Alexander, John Ortiz |
Produção: 3 Arts Entertainment, MRC Films |
Distribuição: MGM |
Ano: 2023 |
País: EUA |