sexta-feira, fevereiro 23, 2024

Tautismo e viralatismo: como dar pernas à não-notícia do "Holocausto"



A última vez foi quando o então presidente Obama humilhou a repórter Globo News, Sandra Coutinho, em uma coletiva para imprensa, em 2015, na Casa Branca ao desmenti-la quando tentou colocar uma opinião da Globo na boca dele. E agora, o drible humilhante que o secretário de Estado Antony Blinken deu na correspondente em Washington, Raquel Krähenbühl, tentando dar pernas à não-notícia da palavra que Lula jamais disse: “Holocausto”. Mais uma vez a emissora submete jornalistas ao vexame, revelando o seu tautismo (tautologia + autismo midiático) e viralatismo crônicos. Tautista, não entende que Globo é uma emissora do quintal geopolítico dos EUA. E que sua única função é o de caixa de ressonância da extrema-direita: se limitar a repercutir postagens de Netanyahu e Israel Katz para tentar das pernas à não notícia, pelos menos até à manifestação convocada pelo inelegível e sem cargo Bolsonaro.

Tautismo (tautologia + autismo midiático) é, segundo o francês Lucien Sfez, a doença de todos os sistemas de comunicação que se hipertrofiam: tornam-se autorreferenciais, tautológicos e prisioneiros de uma autodescrição que os torna fechado ao mundo exterior – ou melhor, o lado de fora do sistema é filtrado por essa autodescrição que o sistema faz de si mesmo. Cria um mundo próprio com pouco ou nenhum contato com o mundo exterior.

Esse fechamento operacional (auto-organização) seria um destino fatal para todo e qualquer sistema – e no caso da comunicação, começam a gerar fenômenos como os não-acontecimentos, pseudo-eventos e eventos encenação.         

Porém, em nossas plagas, quando combinado com o viralatismo, esse destino fatal dos sistemas complexos se transforma numa caricatura picaresca. E todos esses fenômenos gerados pelo tautismo acabam se tornando ainda mais evidentes, grotescos, canastrões.

Uma síntese dessa tragédia do maior sistema de comunicação brasileiro, o sistema Globo, é o triste papel que a jovem repórter Raquel Krähenbühl foi obrigada a cumprir: colar no secretário de estado americano Antony Blinken para forçar alguma declaração que resultasse num ataque contundente contra a fala de Lula na Cúpula de Chefes de Estado e Governos da União Africana – com a grande mídia brasileira insistindo com a palavra “holocausto” que o presidente não disse.

Por que colar em Blinken? Para salvar uma pauta que estava desmoronando diante da total ausência de repercussão junto aos líderes ocidentais sobre a fala indignada de Lula sobre o genocídio na Faixa de Gaza. Só restaram, isolados, Netanyahu (que viu na polêmica semântica e na fabricação de uma crise diplomática uma cortina de fumaça para o massacre em Rafah) e a Globo, que limitou a “repercussão mundial negativa” da fala de Lula às manchetes dos grandes veículos de imprensa atlanticistas.

Esse foi o elemento tautista da história: Globo gera uma crise diplomática autorreferencial, limitando-se às manchetes midiáticas do jornalismo corporativo internacional (que, assim como a Globo, reage pavlovianamente a qualquer ruído que ponha em dúvida seu script) e os arroubos “fanfarrões” (o modus operandi alt-right de não respeitar qualquer liturgia ou regras de etiqueta política ou diplomática) da “diplomacia” israelense no Museu do Holocausto em Jerusalém.

E as provocações do embaixador judeu Israel Katz nas suas próprias redes sociais.

Manter a pauta até domingo

Só isso não segura uma pauta – ainda mais de amplitude internacional. Principalmente porque o cálculo midiático da Globo é o de manter as “repercussões” aquecidas, para se juntar ao ato de extrema-direita de Bolsonaro na Avenida Paulista, nesse domingo, 25/02. Então, como dar pernas a uma não-notícia, um não-acontecimento, por uma semana inteira, até o domingo? Para encher a Avenida Paulista com bandeiras de Israel – o país-fetiche da extrema-direita.



Claro, aproveitando a presença de Anthony Blinken na reunião do G20 no Rio de Janeiro – aliás, evento que a Globo News e rádio CBN tentara torná-la natimorta com a “repercussão internacional e diplomática”: em entrevista com o ex-embaixador do Brasil em Israel, Sérgio Eduardo Moreira Lima, tentaram arrancar qualquer tipo de declaração que comprovasse que a reunião do G20 estava “flopando”.  

Então, a correspondente Globo News em Washington, Raquel Krähenbühl, foi destacada para colar no secretário de Estado: embarcar junto com ele para o Brasil... e, quem sabe, arrancar durante a viagem alguma declaração contundente para dopar as pernas da não-notícia.

O que começou a render flagrantes constrangedores de viralatismo (sentimento que se consolida pelo liberalismo vira-lata brasileiro do udenismo dos anos 1950 que enxergava no Estado os defeitos e no Mercado as virtudes, pois a corrupção seria a “própria” essência do brasileiro: somos todos corruptos), desde a transmissão ao vivo da solerte repórter na pista do aeroporto nos EUA.



“Temos ainda o sinal da Raquel Krähenbühl!... que chique, ela vai embarcar com Anthony Bliken", babava de inveja a apresentadora Daniela Lima na Globo News – revelando uma “inveja do bem”. 

Chegando ao Brasil, diante do fracasso da repórter em pousar com alguma declaração bombástica, teve que se limitar a comentar o cardápio do avião: “o melhor que eu já vi!”, diante de nova “inveja do bem”, desta vez da “colonista” Andréia Sadi.

Sem nada a dizer, teve que recorrer ao jornalismo declaratório em off após o encontro entre Blinken e Lula em Brasília: “segundo fonte [da embaixada dos EUA], Blinken falou da sua família, vítima do Holocausto...”. E sobre as “eleições na Venezuela”... sim, Venezuela, a recorrente casca de banana jogada a todo momento no caminho de Lula.

O que foi logo depois desmentido pelo comunicado da embaixada norte-americana: agradecimentos sobre a participação do Brasil nas negociações de paz na Ucrânia, no empenho em relação ao conflito em Gaza e na escalada das tensões entre Guianas e Venezuela. Além de questões gerais da “parceria Brasil-EUA”.

Pièce de résistance: uma entrevista exclusiva da repórter com Antony Blinken para o Jornal Nacional. E, quem sabe, torcer por um tropeço do secretário em rede nacional. Algum tipo de declaração, ilação, acusação... quem sabe um sincericídio ou ataque frontal contra Lula, dentro do Brasil e em pleno G20! 

Certamente para a jovem Raquel Krähenbühl, embora já correspondente em Washington, seria a oportunidade para se consagrar pelos serviços prestados... assim como muitos que ganharam espaço na Globo pelos bons serviços de cão sabujo à época do jornalismo de guerra pré-impeachment – Rodrigo Bocardi, Andreia Sadi, Demétrio Magnoli, Fernando Gabeira (que até subiu em trio elétrico pró-impeachment), Vera Magalhães et caterva.



Derrubando a pauta

Antony Blinken pode ser tudo. Mas, como secretario de Estado, definitivamente não quer ser escada para pauta de repórter de uma emissora do quintal geopolítico dos EUA. E deu um drible constrangedor no Jornal Nacional e na correspondente de Washington.

A entrevista começa com uma provocação, uma arapuca primária ao dizer ao secretário que ele era descendente de judeus sobreviventes ao Holocausto:

Raquel Krähenbühl: Alguns dias antes do seu encontro com o presidente Lula, ele fez um comentário que vou citar aqui: ‘O que está acontecendo com o povo palestino não aconteceu em nenhum outro momento na história’. E depois ele disse: ‘Na verdade aconteceu… Quando o Hitler decidiu matar os judeus’. O senhor é judeu. O seu padrasto era sobrevivente do Holocausto e eu ouvi falar que o senhor mencionou esse episódio com o presidente Lula. O que o senhor acha sobre esse comentário, já que seu padrasto era tão envolvido nessa causa de tentar preservar a memória do Holocausto?

Antony Blinken: Veja bem, temos uma discordância real sobre isso. E amigos podem ter discordâncias reais e profundas em questões específicas e continuar a trabalhar em muitas outras coisas que nos unem. Para nós, como eu disse, está muito claro que não há comparação alguma. Também sei que o presidente Lula é motivado pelo sofrimento das pessoas e quer ver isso acabar. Assim como nós. Também temos isso em comum.

A pergunta quilométrica, maior que a própria resposta, é a evidência do tautismo e viralatismo: a entrevista exclusiva encomendada para dar pernas a uma não-notícia e trazer o tema da família de um entrevistado poderoso para conseguir produzir o efeito de realidade da intimidade confessional.

Mas Blinken derrubou a pauta na qual a não-notícia ganharia pernas e teria força suficiente para mais alguns dias, o suficiente para conectar-se à manifestação convocada para esse domingo pelo inelegível e sem cargo Bolsonaro.

Sem Blinken, é o embaixador de Netanyahu, Israel Katz, que assume o papel de dar sobrevida à não-notícia: postagens provocativas contra Lula nas redes sociais, para a caixa de ressonância da Globo pautar e esticar o não-acontecimento, pelo menos até domingo onde certamente bandeiras de Israel serão agitadas na Avenida Paulista.

 A Globo não consegue entender que, apesar de tudo, ela continua sendo uma rede de comunicações de um país no quintal geopolítico dos EUA. E suas autoridades se recusam a assinar recibo, isto é, dar corda para as pautas da emissora.



Obama versus Sandra Coutinho

Esta humilhante derrubada de pauta protagonizada pela Raquel Krähenbühl somente se compara a de outra correspondente nos EUA, Sandra Coutinho.

Dessa vez, humilhada em público, em uma coletiva para a imprensa na Casa Branca, pelo então presidente dos EUA Brack Obama, em 2015, ao lado da presidenta Dilma Rousseff.

Naquele momento o jornalismo de guerra vivia o ápice de um processo de desgaste de Dilma Rousseff que, um ano depois, sofreria o impeachment. Dilma estava nos EUA para se reunir com Obama e fechar acordos bilaterais entre os países. 

Depois de cumprimentar os dois líderes, a repórter da Globo News perguntou para Dilma: "O Brasil se vê como um ator global e liderança no cenário mundial, mas os EUA nos veem como uma potência regional. Como você concilia essas duas visões?".


Restou à Globo o papel de caixa de ressonância da extrema-direita

Antes de Dilma responder, Obama interveio: "Vou responder em parte a questão que você acaba de fazer para a presidente. Nós não vemos o Brasil como uma potência regional e sim como uma potência global." O presidente dos EUA continuou dizendo que há coisas que não são possíveis de serem feitas sem o Brasil e cita temas como saúde global, mudanças climáticas e redução da extrema pobreza no mundo.

Depois de atribuir a Obama uma opinião que na verdade é da própria Globo, Obama se recusou a ser o fiador do script da emissora, pré-formatada para Sandra Coutinho.

Claro que enquanto Obama dizia que Lula era “o cara” e passava um sabão na repórter da Globo, seu vice, Joe Biden, comandava as guerras híbridas pelo planeta. Que tornaria Dilma Rousseff em mais uma vítima.

A questão é que o fenômeno do tautismo transforma a Globo num sistema de comunicação cego. Ou melhor, os acontecimentos do mundo exterior são traduzidos pela autodescrição:

(a) após décadas interferindo no sistema político brasileiro como uma espécie de quarto poder, tornou-se incapaz de situar a si mesma como um grupo de comunicação pertencente a um quintal geopolítico. E que ela ajuda bastante este quintal a ser como é;

(b) portanto, vê a si mesma como um player no jogo geopolítico. Mas, como demonstrado no humilhante drible de Blinken e na passada de sabão de Obama, o papel da Globo nada mais é do que servir de caixa de ressonância das pautas da extrema-direita. Como facilmente pode ser verificado nessa semana que antecede a manifestação do extremista inelegível Bolsonaro;

(c) e, finalmente, de tanto acreditar que é um “player” geopolítico, traduz na literalidade os discursos retóricos maniqueístas da luta do bem ocidental contra o mal das ditaduras obscurantistas e terroristas. Em seu claustrofóbico tautismo, simplesmente reage como cão sabujo às relações diplomáticas do governo Lula com “ditaduras” como Venezuela, Cuba e China. 

E silencia quando, por exemplo, vê os EUA buscando urgentemente ajuda mundial para cortar as receitas do petróleo russo, recorrendo até a regimes que já quis isolar ou evitar – em 2020, autoridades do governo Biden viajando para a Venezuela e Arábia Saudita, a ditadura que vez ou outra manda matar jornalistas críticos ao governo. 

 

 

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