Com a proximidade das festas de final de ano, a grande mídia é tomada matérias jornalísticas, filmes e séries repletas de contos motivacionais e morais com histórias de reformas íntimas e promessas de Ano Novo em se tornar uma pessoa melhor, mais empática e otimista. Nessa onda de final de ano certamente se destacam as indefectíveis reprises do clássico “Esqueceram de Mim” (Home Alone, 1990), mostrando que o filme resiste ao tempo e a cada exibição parece se tornar melhor. O que fez “Esqueceram de Mim” virar um clássico de Natal? Desde o seu lançamento, o filme mostrou que era muito mais do que um filme infantil de Natal – além de revisitar os arquétipos do abandono e separação ainda vivos na infância, a narrativa da negligência dos pais de Kevin reflete o drama da quebra do elo geracional das famílias modernas. O clássico oferece o alívio cômico em humor negro para o mal-estar das famílias no final de ano: rir de si mesma.
Tão indefectível no final do ano na TV quanto o show “Roberto Carlos Especial”, são as reprises do filme de 1990 Esqueceram de Mim (Home Alone), o clássico recorrente na programação tanto de canais abertos ou fechados. Época de ano repleto de produções do cinema e audiovisual com estórias sobre contos morais, motivacionais, narrativas sobre reformas íntimas e resoluções de mudanças para o Ano Novo.
Desde o seu lançamento naquele ano Esqueceram de Mim já era um sucesso. Lançado no Dia de Ação de Graças, e produzido com um orçamento baixo para os padrões hollywoodianos (US$ 15 milhões), o filme passou 12 semanas no primeiro lugar das bilheterias e arrecadou mais de 470 milhões de dólares em todo o mundo. Superando rivais naquele ano como também novos clássicos como Ghost, Uma Linda Mulher, Edward Mãos de Tesoura, Total Recall, Dick Tracy e Tartarugas Ninja. Mostrando que Esqueceram de Mim era muito mais do que um filme infantil de Natal.
Filmes natalinos tradicionalmente são marcados pelo sentimentalismo açucarado. Afinal, a TV, ao lado da árvore de Natal cercada de caixas de presentes (reais ou apenas caixas vazias decorativas), constituem-se numa espécie de altar da sagração da família.
Mas não é o caso de Esqueceram de Mim. E aqui começam as nossas teses do porquê da longevidade desse filme.
Há subjacente à narrativa uma espécie de humor negro natalino, uma corrente perturbadora que fica cada vez mais aparente à medida em que o espectador deixou a sua infância – a narrativa do filme parece acompanhar esse progressivo desencantamento do mundo, uma rememoração do nosso processo de abandono do mundo da infância na direção dos fantasmas da vida adulta.
Basta acompanhar a sequência das armadilhas ativadas pelo herói Kevin (Macaulay Culkin), desencadeando toda a força da sua fúria sobre os assaltantes que tentam invadir sua casa – os bandidos são submetidos literalmente a uma bateria de torturas talvez só vistas em masmorras medievais. Como, por exemplo, a cena em que Marv (Daniel Stern) é atingido no rosto por um ferro em brasa.
Mas Esqueceram de Mim também é mais uma produção que explora o drama arquetípico da separação e do abandono – desde a animação Bambi (1942), de Walt Disney, personagens arquetípicos em torno do drama do abandono (o Inocente, o órfão, o aventureiro etc.) são recorrentemente explorados no cinema e audiovisual. Principalmente para o público infantil, no qual as memórias do drama edípico (a renúncia à Mãe para ingressar no mundo do Pai – o trabalho, a Lei, a renúncia ao prazer) ainda estão vivas.
Mas também cada vez mais também para o público adulto, criando produções polissêmicas infantil/adulto, como as animações da Pixar.
A questão é que Esqueceram de Mim não só ecoa esse arquétipo subjacente como também o atualiza – desde o pós-guerra, as sociedades de massas vivem o fenômeno chamado de “quebra do elo geracional”, isto é, a ausência tanto simbólica quanto física da ausência dos pais. Tanto pelo esvaziamento simbólico da autoridade e relevância paternas (gerada pela “cultura jovem” promovida pela sociedade de consumo), quanto pela diminuição dos rendimentos que leva aos pais aumentarem cada vez mais a jornada de trabalho, alienando-se da formação e educação dos filhos – que acaba sendo terceirizada pelo complexo terapêutico-midiático.
Esqueceram de Mim parece ser sempre atual porque todas essas questões ressoam nas festas de final do ano, quando de repente a rotina cotidiana é suspensa e a família se reencontra, explodindo todas essas contradições. Esqueceram de Mim oferece o alívio cômico a esse drama familiar natalino.
O Filme
Tudo começa nos subúrbios de Chicago com uma casa de uma família hiperativa, cheia de pessoas na véspera de uma viagem de férias de Natal em Paris. Há parentes e crianças em todos os lugares, e quando a família dorme demais e tem que correr para o aeroporto, Kevin é de alguma forma deixado para atrás na confusão. Quando ele acorda mais tarde naquela manhã, a casa está vazia.
Kevin, um menino de oito anos, é encrenqueiro, arrumando discussões com seus primos enquanto todos estão correndo com os preparativos da viagem da família. Ele é colocado de castigo no sótão, dorme e é esquecido pelos familiares que, de tão atrasados para chegar ao aeroporto, erram na contagem das crianças.
No dia seguinte, ao se ver sozinho em casa, Kevin acha que realizou o seu desejo mais secreto: “Eu fiz minha família desaparecer!”, revivendo a mitologização da realidade da primeira infância. Pronto! Ele está liberto da repressão familiar: assistir a vídeos proibidos, comer à vontade sundaes e outras “porcarias”, passeios de trenó arriscados e comprar o que quiser no supermercado etc.
Infelizmente, os assaltantes (Joe Pesci e Daniel Stern) estão determinados a tirar uma vantagem das casas vazias do subúrbio de classe alta e roubar o que quiserem até abarrotar sua van. Acham que um menino de oito anos só e assustado não é páreo para suas habilidades criminais.
Mas Kevin, depois de superado o medo infantil (o filme revisita todos os temores infantis como o porão, os lugares escuros e assustadores de uma casa e o vizinho idealizado como uma espécie de “bicho papão”), imbuído da missão de defender a família, inventa uma bateria de armadilhas que transformam a sua casa numa câmara de tortura para os ladrões: a mão queimada em uma maçaneta de porta em brasa, o couro cabeludo de Joe Pesci queimado, pés sendo empalados em enfeites de Natal quebrados espalhados estrategicamente pelo chão, eletrocuções, batidas violentas na cabeça, escorregões mortais etc., transformam as sequências finais numa hilária progressão exponencial de desgraças que fazem lembrar aquele desenho animado do coite que tentava capturar o papa-léguas no deserto – e sempre acabava esmagado, queimado ou encontrando o fundo de abismos.
O tema de por trás de Esqueceram de Mim é sério: o desaparecimento dos pais. No filme, a metáfora do drama real da quebra do elo geracional na modernidade, com o surgimento do fosso simbólico e físico entre pais e filhos. Ecoando o drama psíquico mais profundo: o da dissolução de Édipo, o abandono do seio materno para entrar no inseguro mundo adulto que o aguarda no futuro.
Por isso, a negligência dos pais (Cathlen O’Hara e John Heard) por esquecerem Kevin é muito simbólica. Principalmente a luta para ultrapassar obstáculos quase intransponíveis como os funcionário das companhias aéreas e a língua francesa, no desespero em retornar para resgatar Kevin em pleno rush natalino. É a luta para transpor a própria quebra do elo geracional, do tamanho do oceano atlântico que separa a América da Europa.
A recorrência de Esqueceram de Mim a cada final de ano tornou-se um alívio cômico dessa família moderna de abandonos e elos quebrados. Repentinamente colocada junta após o ano inteiro, o filme parece agora funcionar como um alívio cômico das “saias justas” familiares: a oportunidade para rir de si mesmo.
Ficha Técnica |
Título: Esqueceram de Mim |
Diretor: Chris Columbus |
Roteiro: John Hughes |
Elenco: Macaulay Culkin, Joe Pesci, Daniel Stern, John Heard, Catherine O’Hara |
Produção: Hughes Entertainment |
Distribuição: 20th Century Fox |
Ano: 1990 |
País: EUA |