A única certeza que nos acompanha por toda vida é que um dia vamos morrer. É aquilo que nos separa (nossos amores e amigos vão morrendo, deixando buracos em nossas vidas), mas ao mesmo tempo nos une: diante da morte somos todos iguais. Nessa trajetória em direção do fim, duas questões emergem: por que uma coisa tão boa como o amor, de repente não funciona mais? E por que, a certa altura, tudo de bom que a vida nos deu começa a ser retirado? Esses são alguns temas que ecoam na série original Globoplay “Fim” (2023). Tudo começa no velório com um grupo de amigos de longa data. Suas vivências, memórias, desilusões e, principalmente, a fugacidade do amor, da felicidade e a incomunicabilidade das relações humanas marcam a série. Fazendo lembrar a interpretação de Albert Camus ao Mito de Sísifo.
O final do ano se aproxima. Portanto, nada melhor do que maratonar a série Globoplay Fim (2023), uma adaptação do livro homônimo escrito pela atriz Fernanda Torres e lançado em 2013.
Dirigido por Andrucha Waddington (Eu, Tu, Eles e Casa de Areia) e roteiro supervisionado pela própria autora do livro, a série gira em torno de cinco amigos de longa data, da típica classe média de Copacabana ao longo das décadas, desde os anos 1970 – suas vivências, farras, desilusões, amores e arrependimentos, encarando a fugacidade da vida, o envelhecimento e a iminência da morte.
A maior diferença da série em relação ao livro e o espaço dado às mulheres – os respectivos amores e flertes desse grupo de amigos. Principalmente a crise da masculinidade não só pela incomunicabilidade com suas companheiras, mas, principalmente, pela absoluta alienação em relações às transformações políticas, sociais e culturais do Brasil ao longo das décadas. E como as personagens femininas refletem essas mudanças.
A chave de compreensão da série está na música tema escolhida: “Divino, maravilhoso” de Caetano Veloso e Gilberto Gil, cantado por Gal Costa. A música de 1969, em plena noite da ditadura militar, nos fala dos perigos de viver sob um regime repressivo. Principalmente naquele momento da escalada da censura e tortura de presos políticos.
No primeiro episódio acompanhamos os protagonistas numa festa em um apartamento, todos cantando “Divino, maravilhoso” ao violão. Mas o estranhamento é que todos ali espelham a típica alienação da então classe média brasileira – todos jovens, apenas preocupados com festas, paqueras, praia e carnaval.
“É preciso estar atento e forte/Não temos tempo de temer a morte”, refrão da música e com forte conotação política, na série é tomada literalmente – uma reflexão sobre a fugacidade da existência e o absurdo de vivermos intensamente para, ao final, morrermos.
Embora os momentos mais agudos da série ocorram justamente na época da efervescência política da resistência e luta dos jovens contra a ditadura, os protagonistas vivem numa bolha dourada de praia e festas na Zona Sul carioca. Totalmente alheios ao cenário.
Portanto, a morte e o fim discutidos na série ganham uma dimensão, por assim dizer, filosófica, ecoando as ideias do escritor Albert Camus sobre o absurdo de uma existência na qual, de início, já estamos condenados à morte:
Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, aparece em seguida. São jogos. É preciso, antes de tudo, responder. E se é verdade, como pretende Nietzsche, que um filósofo, para ser confiável, deve pregar com o exemplo, percebe-se a importância dessa resposta, já que ela vai preceder o gesto definitivo – CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo.
A existência se desenvolveria como o mito de Sísifo? Aquele que foi condenado por toda eternidade ter que carregar a mesma pedra para o topo da montanha. Para vê-la rolando abaixo e recomeçar tudo de novo.
Para Camus a condição humana aproxima-se muito ao mito de Sísifo: nossa vida é construída a partir da esperança do amanhã que apenas nos aproxima da morte. As pessoas vivem dentro de uma ilusão romântica, como se não tivessem a certeza da morte. Uma vez despojado das ilusões, o mundo se torna desumano e estranho. O mundo é um absurdo pela impossibilidade de reduzi-lo a um princípio racional razoável.
As religiões e ideologias políticas nos oferecem falsa racionalizações, mas tudo o que conseguem é fragmentação e ininteligibilidade. A solução para Camus não seria o suicídio, mas a revolta.
Mas para os protagonistas de Fim, isso está bem longe dos seus horizontes existenciais, que não vão além das fronteiras de Copacabana.
A Série
Tudo começa com a morte de Ciro (Fábio Assunção), quando o grupo volta a se reunir depois de muito tempo. Ciro era casado com Ruth (Marjorie Estiano), que não comparece ao velório – eles estavam separados. Ambos representavam um exemplo de amor perfeito para os outros casais: Célia (Heloísa Helena) casada com Neto (David Junior); Norma, que foi casada com Silvio (Bruno Mazzeo); Álvaro (Thelmo Fernandes) que se divorciou de Irene (Débora Falabella) e o solteirão Riberio (Emílio Dantas).
Ciro era belo, romântico e seu casamento com Ruth acabou servindo de exemplo para todos que acabam se casando. Deixando para trás a vida tão somente de festas, praias e paqueras. Mas, por outro lado, marca uma espécie de crepúsculo para o grupo que acabará se confrontando com o cotidiano da vida conjugal – mentiras, impasses, hipocrisias e traições.
A morte de Ciro é o ponto de partida para que conheçamos a vida de cada personagem desde o início. E a separação de Ciro e Ruth, o casal modelo para todos, a amarga confirmação da fugacidade da vida.
Porém, o elemento de tensão para o grupo: o hedonista, libertino e autodestrutivo Sílvio. Até casou-se com Norma numa espécie de alívio cômico dentro daquilo que ele sempre esteve mais fortemente orientado na sua vida como, a certa altura, afirma: “faze o que tu queres há de ser tudo da lei”, citando a filosofia do telemismo do mago libertino Aleister Crowley.
Sílvio é o único que percebe as mudanças comportamentais na sociedade brasileira. Apenas porque volta-se a seu favor: a ascensão da cultura hippie e a liberalidade de costumes. Sílvio acredita que o mundo está moldando-se à sua filosofia da libertinagem – festas e mais festas com muitas orgias regadas a álcool e longas carreiras de cocaína. O seu caminho de hedonismo e autodestruição deixa ainda mais outro testemunho do curto brilho antes do fim.
São amores, prazeres eróticos e casamentos que, de uma hora para outra, parecem não mais funcionar: por que algo tão bom de repente não mais funciona?
Também Fim descreve a amarga condição humana de que, a certa altura, tudo aquilo que a vida nos deu começa a ser tirada – é a pedra de Sísifo rolando montanha abaixo. Para começar, a perda de amigos e amores que morrem, deixando buracos na vida que nunca mais serão fechados.
O padre recorrente nos velórios que se sucedem no grupo, Padre Graça (Javier Drolas), é o personagem mais colocado em xeque pelos questionamentos contra a fé e a existência de Deus feitas pela viúva Ruth, além de confrontar abertamente o padre, assediando-o.
Sem falar de Sílvio que, em pleno velório, convida a todos para uma festa de orgias em homenagem ao defunto...
Talvez Ruth seja aquela que mais coloca em prática a agenda da revolta de Albert Camus – ela desafia a racionalização consoladora da religião, expondo de forma visceral o desespero diante da absoluta falta de sentido pela fugacidade da existência.
Como diz Jim Morrison na música “The End” da banda The Doors: “This is The End/My only friend, The End”.
Ficha Técnica |
Título: Fim (série) |
Diretor: Andrucha Waddington |
Roteiro: Fernanda Torres, Andrucha Waddington |
Elenco: Fábio Assunção, Marjorie Estiano, Débora Falabella, Bruno Mazzeo, Emílio Dantas, Heloísa Jorge, Laila Garin, Javier Drolas |
Produção: Conspiração Filmes |
Distribuição: Globoplay |
Ano: 2023 |
País: Brasil |