sábado, julho 22, 2023

'The Artifice Girl': o marketing quer nos fazer acreditar que a IA é "inteligente"


Nesse momento está sendo colocado em ação a mais gigantesca estratégia de marketing e propaganda para nos fazer acreditar que a Inteligência Artificial é, de fato, “inteligente” – seja por virtude ou ameaça de supostamente ameaçar a existência humana. “The Artifice Girl” (2022) é mais um filme dentro desse esforço de agendamento da opinião pública de que há algo de sobrenatural em torno da IA, assim como na imaginação mitológica e literária de narrativas como Pigmaleão ou Frankenstein. Agentes especiais desenvolveram um programa inovador como chamariz de predadores online. Mas, a IA evoluiu muito além do propósito original e começa a trazer problemas. Marketing que procura rebaixar a noção de inteligência ao não distinguir duas coisas completamente diferentes: enquanto as máquinas são apenas “Machine Learnings”, a inteligência humana baseia-se numa “Sintaxe Gerativa”. 

Por toda história humana a imaginação mitológica e literária nos descreve relatos de criaturas feitas pelo homem que acabaram ganhando vida e fascinando ou aterrorizando seus criadores – Pigmaleão e a sua estátua pela qual se apaixonou; o terror de Frankenstein de Mary Shelley; o mito do ser artificial que ganhou vida, Golem, da tradição mística judaica; o mito da fabricação do homúnculo pela Alquimia na Idade Média etc.

Toda essa recorrência mitológica e literária sempre esteve associada à hegemonia religiosa, metafísica ou esotérica na cultura humana. Principalmente, um impulso gnóstico da “teurgia” - a Teurgia (theoi, “deuses” + ergon, “obra”), surgida no mundo helenístico como a primeira forma de alcançar Deus através da manipulação da matéria onde, assim como o Demiurgo, podemos dar vida e alma a uma forma material e inferior. Se temos dentro de nós uma parte da fagulha divina, podemos retornar a ele exercendo as mesmas habilidades reservada aos deuses: imitatio dei por generatio animae, imitar Deus criando vida. 

Os filmes de ficção científica transformaram em imagens essa tradição mítico-estotérica, dessa vez através de novos personagens inspirados pela imaginação tecnocientífica: robôs, replicantes e computadores assassinos como o Hal 9000 de 2001 Uma Odisseia no Espaço.

Nesse momento, o marketing massivo quer popularizar a Inteligência Artificial, tornando-a aceitável, plausível, útil e até divertida, como um aplicativo, chatbot ou ferramenta para aumentar a produtividade e aumentar os lucros. 

Paradoxalmente, o marketing da IA (um dos mais sofisticados produtos atuais tecnocientíficos) quer oportunisticamente se apropriar de toda aquela imaginação mitológica e literária do passado para fascinar os usuários. Só que dessa vez não mais através de robôs e replicantes que ganham senciência. Mas através da ideia messiânica da Singularidade.

Singularidade: a crença de que em um dado momento a curva de evolução ficaria tão vertical que ultrapassaria o limite do próprio gráfico – as máquinas ficariam tão inteligentes pelo acúmulo de dados que superariam as capacidades humanas, levando a uma inteligência tão sobre-humana que seria incompreensível para os nossos pobres cérebros dependentes de sinapses bioquímicas.



Frankenstein? HAL 9000? Será que através do momento da Singularidade, em que a IA alcançaria autonomia e senciência, estaríamos realizando a imaginação literária e mitológica? De Pigmalião ao Golem, todas essas mitologias foram nada mais do que advertências para as futuras pretensões humanas? 

The Artifice Girl (2022) parece ser mais uma produção que faz parte dessa gigantesca ação de marketing e propaganda para promover o fetichismo da IA. Isto é, a ideia de que os algoritmos e linhas de comando pudessem em dado momento surpreender seus criadores ao ganhar vida própria – e de repente passar a dar lições éticas, ou tornar-se um maquiavélico vilão que se volta contra seus criadores. E esquecêssemos que, afinal, a IA é uma máquina como tantas na história do capitalismo: transformar trabalho complexo em simples, rotinizar, quantificar e controlar. Como já fizeram as velhas linhas de montagem do taylorismo e fordismo. Só que agora, voltado ao trabalho intelectual e criativo.

No filme, como sempre, a IA é uma ferramenta benéfica para investigadores da polícia criarem uma isca em sala de bate-papos na Internet para prender pedófilos, predadores e haters que operam on-line – uma garota de nove anos criada digitalmente operada por uma linguagem em machine learning que aparece em chats e fóruns, registrando seus espectadores mais persistentes e todos aqueles que enviam mensagens para ela.

É o chamariz perfeito. Mas ela também criou um nível meta, aprimorando sua própria programação original, para além dos parâmetros que o seu criador imaginou.



O Filme

Dividido em três seções, cada uma com cerca de meia hora de duração, The Artifice Girl começa em uma sala muito pequena, escura e sem janelas, onde um homem chamado Gareth (Franklin Ritch) foi trazido para interrogatório. Os dois agentes encarregados (Sinda Nichols e David Girard) adotam uma abordagem muito áspera, intimidando Gareth (que não é tão ingênuo quanto parece inicialmente). 

A questão é um projeto em andamento para combater a propagação de pedófilos e predadores que operam on-line, criando maneiras tecnológicas de atrair esses pervertidos. 

Sua mais nova tática é “Cherry” (Tatum Matthews), uma garota de nove anos criada digitalmente para atuar como chamariz em salas de bate-papo online. A questão aqui é que ela também se desenvolveu muito além da programação original, para além daquilo que os humanos a projetaram.

O filme é extremamente claustrofóbico. Os personagens sentam-se ou ficam de pé, ou andam em salas sem janelas, batalhando contra assuntos complexos que envolvem referências ao Teste de Turing (testa a capacidade de um computador exibir comportamento inteligente equivalente ao de um ser humano, ou indistinguível deste) teoria dos jogos, platôs da evolução de uma programação, neurociência etc. 

Tudo isso enquanto tentam lidar com as complicações que envolvem a senciência de "Cherry" ou a própria percepção da sua senciência. Em uma cena, Gareth e os dois agentes discutem se Cherry, a criança digitalizada, pode ou não consentir em algo. Mas ela parece tão real! É quase como se os "adultos" encarregados de Cherry tivessem que continuar se lembrando: "Ela não é real, ela não é real, ela não é real".



As questões são tanto intelectuais e cerebrais tanto quanto emocionais. Há um ótimo momento em que Cherry está sendo questionada sobre o que ela “sente” sobre algo. Cherry responde, em voz plana: "A natureza humana não é algo que eu aspire", sugerindo o tema do pós-humanismo.

Porém, tema central em The Artifice Girl é a Singularidade: no quê Cherry se transformou? 

Cherry é apenas uma “machine learning”

Cherry é uma machine learningPor muito tempo (desde a década de 1950) os cientistas computacionais tentaram emular o cérebro humano em uma máquina: habilidades como raciocínio, solução de problemas, aprender tarefas novas e comunicar-se usando uma linguagem natural. Sem sucesso.

 Até que nesse século, a ideia de “rede neural” revolucionou a pesquisa. A rede neural é um sistema matemático capaz de identificar padrões estatísticos em dados para aprender habilidades. É composto de camadas de neurônios artificiais: a primeira camada recebe os dados de entrada e a última camada emite os resultados. 



Parece ser um cérebro computadorizado. Mas não é. Na realidade, é um sistema matemático para detectar rotinas estatísticas em big data, isto é, em um volume expressivo de dados - empresas como Google, Microsoft e OpenAI começaram a construir modelos neurais de linguagem com quantidades vastas de texto da internet, incluindo artigos da Wikipedia, livros digitais, papers acadêmicos etc. 

O que temos, portanto, é uma IA generativa: sistemas que aprendem a “conversar” e escrever textos em prosa e códigos de computador diferenciados. A LLM (sigla de Large Language Model ou Grande Modelo de Linguagem) é um tipo de rede neural capaz de aprender habilidades ao analisar quantidades vastas de textos obtidos na internet. Prevê a palavra seguinte dedutivamente em uma sequência rotineira do lugar comum sobre o assunto. Identifica padrões em grandes volumes de dados de treinamento e cria material novo e original com características semelhantes. 

A Internet oferece esse Big Data para os algoritmos da IA encontrarem padrões e recorrências para simular conversas ou textos a partir do lugar comum de qualquer assunto. Faz parte do marketing atual criar essa imagem de que a IA é “inteligente”, “conversa” e até seria dotada de “personalidade”. 

Enquanto a IA depende de uma gigantesca quantidade de dados, ao contrário, a inteligência humana possui uma surpreendente capacidade gerativa de fazer uso infinito de recursos finitos. Como descobriu o linguista Noam Chomsky que criou uma das mais influentes abordagens sobre a gramática das línguas humanas – a “Sintaxe Gerativa”. Em rápidas palavras, consiste na descoberta de que todas as línguas humanas são capazes de criar um número infinito de expressões linguísticas (frases, sintagmas etc.) a partir de um conjunto limitado de fonemas, morfemas, palavras e regras computacionais. 

Uma IA será incapaz disso.

Filmes como The Artifice Girl fazem parte dessa imensa estratégia de agenda setting (agendar a opinião pública) para os usuários acharem que a IA é realmente “inteligente” – e até mesmo agendando a opinião pública através do medo: as supostas ameaças de que a IA poderá “extinguir” a civilização através de um mundo dominado pelas máquinas sencientes.

Se a humanidade for realmente extinta, não será pelas máquinas, mas pela elite tecnológica que a constrói e programa. E pelos interesses do Capital e da elite econômica que financia todas essas pesquisas.

 Cabe aqui lembrar a fala mais lucida até aqui de todos os insiders desse campo de pesquisa, a do cientista brasileiro Miguel Nicolelis: “a Inteligência Artificial é só marketing para explorar o trabalho humano”.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: The Artifice Girl

Diretor: Franklin Ritch

Roteiro: Franklin Ritch

Elenco:  Tatum Malthews, Lance Heriksen, Sinda Nichols, David Girard, Franklin Ritch

Produção: Paper Street Pictures, Blood Oath

Distribuição: Jackrabbit Media

Ano: 2022

País: EUA

   

 

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