Ridley Scott desdenha as críticas feitas ao seu último filme “Napoleão” (2023), de historiadores e, principalmente, dos franceses: “eles nem gostam de si mesmos...”, respondeu. A precisão histórica não é o objetivo do diretor, mas principalmente fazer um “estudo do personagem” e transformar em protagonistas as cartas trocadas entre Napoleão e a amante Josephine, que se tornaram a espinha dorsal do filme. Além de Scott voltar a dois temas que são recorrentes na sua carreira: o Demiurgo e o “outsider” que desafia a tudo e a todos ao seu redor, para tentar resgatar algo de precioso dentro de si. Se a natureza da guerra revela o zeitgeist de uma civilização, então para Scott Napoleão foi o divisor de águas: o último herói da guerra clássica na qual o objetivo final é o domínio do território. Derrotado pelo futuro – a tecno-indústria inglesa com a logística do controle da velocidade e do tempo. A avant-première do que seria a guerra do século XX, das blitzkrieg nazistas e da velocidade dos mísseis.
Críticas não estão faltando contra o novo filme de Ridley Scott, Napoleão (2023). Para começar, as dos próprios franceses que consideraram o épico sobre um importante personagem da história do país como “profundamente desajeitado” e “involuntariamente engraçado”. A que Scott respondeu direto: “os franceses nem gostam de si mesmos”.
Depois, as críticas de historiadores que sugerem que o filme tem muitas imprecisões históricas. Mais uma vez, Scott foi direto: “Sério, cara!... Você estava lá? Não? Bem, então cala a boca!”.
Qualquer estudante de História sabe como termina a trajetória de Napoleão Bonaparte: Waterloo, 1815. Depois de mais de mais de duas décadas dominando os campos de batalha e a história europeias, Napoleão foi finalmente confrontado por um inimigo diante do qual suas estratégias como brilhante general não mais funcionaram.
Napoleão, aquele outrora obscuro outsider da Córsega, o oficial de artilharia que - através da crueldade e astúcia - se levantou para governar a França e conquistar grande parte da Europa, morreu derrotado, no exílio e sozinho.
Mas para Hollywood e Ridley Scott a História não acabou com ele. Através da costumeira performance física do ator Joaquim Phoenix, o filme mostra que Napoleão teria sido menos uma lição de história e muito mais um bom estudo de personagem.
Para Scott, há mais de dez mil livros publicados sobre Napoleão: “desde que morreu se publica um livro sobre ele toda semana... Eu não acho que seja uma aula de história. Eu acho que é um estudo de caráter com violência, com ação, com tudo o que você tem”, afirmou o diretor – clique aqui.
O diretor Ridley Scott tem um inegável talento para lidar com narrativas em diferentes épocas históricas: da Roma antiga (Gladiador, 2000) para a época das Cruzadas (Cruzada, 2005; Robin Hood, 2010); da era do Renascimento (1492 – A conquista do paraíso, 1992) para o século XIX (Os Duelistas, 1977); e no futuro com Alien (1979), Blade Runner (1982) e Prometheus (2012).
Confirmando uma velha crença de que um artista conta uma única história em toda a sua vida, em Ridley Scott percebe-se que ele volta sempre ao mesmo tema do estranho que desafia a tudo e a todos ao seu redor para, no final, resgatar algo que é exclusivamente precioso para si mesmo.
Foi assim com Deckard em Blade Runner (o simbolismo do unicórnio que o protagonista resgata para saber se ele é humano ou mais um replicante) e também com a Dra. Elizabeth Shaw em Prometheus (desafiando a tudo para manter a fé em um sentido para a criação humana perpetrada pelos “Engenheiros”).
Dessa vez, Scott vai combinar esse tema com outro personagem também recorrente na sua obra: o Demiurgo – em Alien, era a Corporação proprietária da nave Nostromo; em Blade Runner, o criador de replicantes Tyrrel; em Prometheus, os “Engenheiros”; em Êxodo, o confronto titânico entre Deus e o Faraó etc.
Ao transformar Napoleão em um personagem mais intimista do que histórico a ser estudado. Para além dos triunfos nos campos de batalha, estava Josephine, a viúva aristocrática que se tornou sua esposa e imperatriz. As cartas de Bonaparte a Josephine se tornou a peça central da história – o calcanhar de Aquiles de Napoleão, alguém que conseguiu levá-lo aos salões mais nobres da França.
Sem ela, Napoleão não passava de uma força bruta que precisava ser lapidada.
Mas uma força de uma época que estava chegando ao fim – a época das batalhas de infantaria na qual o decisivo era a conquista do espaço. Talvez, o último grande nome de uma época superada pelo poder de dominar o tempo. Como Waterloo e o seu algoz, Duque de Wellington (Rupert Everett), provaram.
O Filme
Naturalmente, o filme começa durante a Revolução Francesa, enquanto Bonaparte sobe a escada política da França com sua perspicácia de guerra acima de tudo – ele assiste à decapitação de Maria Antonieta em Paris, cena que, para os historiadores, jamais aconteceu.
Uma sequência inicial mostra o Cerco de Toulon, em 1793, com impressionantes detalhes gráficos. Nessa batalha que Napoleão cimentou sua reputação como um mestre estratégico, além do lendário ódio contra os ingleses.
Enquanto Bonaparte de Phoenix lidera um ataque noturno a um forte no porto, o ator expressa todo o medo de uma maneira que sugere um retrato mais humano de um personagem histórico. Toda a sequência é filmada com detalhes fascinantes, desde a bala de canhão que rasga o peito de um cavalo até as figuras em chamas que fogem dos navios no porto.
O Cerco de Toulon torna Bonaparte heroico o suficiente para exigir a atenção de Josephine (Vanessa Kirby), uma aristocrata prisioneira durante o Reino do Terror que conheceu Napoleão em 1795. As cartas de Napoleão a Josephine são a espinha dorsal do filme de Scott, uma escolha que deve dar calor e paixão ao projeto. Pouco depois do encontro, o verdadeiro Napoleão escreveu para Josephine: “Eu acordei cheio de você. Sua imagem e a memória dos prazeres inebriantes de ontem à noite não deixaram descanso para meus sentidos.”
Em todo filme há uma inegável admiração de Scott pelo “Pequeno Cabo”, um homem que veio de meios modestos; que sabia que estava destinado a coisas maiores, depois quis criar o seu destino quando surgiram oportunidades; e que transformou uma mistura de inteligência estratégica, habilidades de liderança de segunda natureza, rancor e um instinto de grandes gestos em uma receita para a vitória, principalmente contra seus descrentes.
Napoleão Bonaparte tinha objetivos diferentes em vários estágios de sua vida, mas seu principal durante o auge de seu poder como imperador da França e governo militar foi conquistar os países poderosos que se opunham a ele. Ou seja, a Rússia, mas Napoleão também queria controlar outros. Esse objetivo também se estendeu a áreas do Império Otomano, embora Napoleão não tenha chegado lá depois de ter perdido milhares e milhares de tropas durante suas várias campanhas militares – a estatística final do filme é terrível: no final, somando todas as campanhas, Napoleão levou à morte três milhões de soldados.
Embora Napoleão fosse um defensor inicial da Revolução Francesa e da remoção da monarquia, Scott faz questão de mostrar a ansiedade dele não só em se coroar como imperador, mas as suas tentativas de criar sua própria linhagem para continuar governando a França mesmo depois da sua morte – Josephine era estéril. O que levou ao divórcio forçado (mesmo continuando a se encontrar furtivamente com ela) para casar-se com a arquiduquesa da Áustria, Maria Luísa.
Essa ansiedade e o ódio contra os ingleses demonstra algo a mais que está latente em uma linha de diálogo no qual Napoleão conversa com o embaixador da Grã-Bretanha e desdenha o poder marítimo do país inimigo: “Se você se acha tão ótimo, porque precisa de navios?”, desafia. E que termina numa cena totalmente imaginada por Napoleão (antes de ser levado prisioneiro pelos ingleses para a Ilha de Santa Helena, no Atlântico), numa conversa despreocupada com Wellington, a bordo do navio do HMS Bollerophon (foi o navio no qual Bonaparte se rendeu), parabenizando-o pela qualidade do café da manhã – cena que nos faz lembrar do famoso negacionismo psíquico da “síndrome de Napoleão”.
Essas duas cenas mostram que a ansiedade de Napoleão em vencer os ingleses e criar a sua linhagem que domine o continente era, talvez, do pressentimento histórico de um fim de uma era, representada por ele: a da guerra clássica como conquista do espaço e territórios.
A Inglaterra passa a priorizar inovações técnicas, tecnológicas, no campo dos transportes, máquinas a vapor, engenhos rápidos, daí tira sua superioridade econômica, torna-se a primeira grande nação industrial. E revolucionar a sua estratégia-logística das batalhas: a estratégia do “fleet in being” que, segundo o pensador Paul Virilio, é a a “logística realizando plenamente a estratégia como arte do movimento dos corpos não vistos”.
Por isso, segundo ele, os ingleses permaneceram por muito tempo como os melhores relojoeiros do mundo, o domínio do mar, exige o poder do Tempo, exige “visar a lua”, tem-se aí a Guerra do Tempo – Leia VIRILIO, Paul. Velocidade e Política, Estação Liberdade, 1996.
Napoleão desdenhava a frota invencível da Grã-Bretanha, estando ainda organicamente ligado à velha guerra física, geográfica, envolvendo o controle das tropas, do relevo (engenharia militar) e da resiliência ao clima.
Enquanto a tecnologia industrial inglesa já apontava para o novo mundo que as blitzkriegs nazistas do século XX confirmariam: guerra é o domínio da velocidade, do tempo e do desaparecimento – não é à toa a preferência inglesa pelos oceanos: o espaço plano, veloz, como um corpo sem órgãos, no qual os navios poderão até desaparecer, como na pintura dos futuros encouraçados.
Napoleão ainda era o remanescente da era da infantaria como peões em um jogo de xadrez no tabuleiro militar (não é por menos o assustador número de mortos na soma das campanhas de Bonaparte) no qual o general planeja e os marechais executam – o que lembra a resposta dada por Napoleão ao seu general que objetou que as circunstâncias eram desfavoráveis diante da campanha proposta. “Bah! Eu faço as circunstâncias!”.
Velocidade, Tempo e Desaparecimento. Elementos presentes na derrota final na Batalha de Waterloo. Seu exército não era páreo para eles: o início da batalha foi adiado, permitindo a Wellington esperar a chegada do exército prussiano que se camuflou na floresta, no flanco direito de Napoleão, para enfrentar a lendária divisão da Guarda Imperial de Napoleão – os veteranos, até então invencíveis.
Enquanto Napoleão privilegiava os clássicos conceitos de batalha como fricção, ponto culminante da ofensiva, centro de gravidade etc., os ingleses praticavam o diversionismo, extensão deliberada do tempo de batalha e formações rápidas da infantaria em quadrado para fuzilar os cavaleiros franceses e assim por diante.
Suas palavras finais na no exílio em Santa Helena foram: “França, Exército, Josephine”. Napoleão estava no passado, enquanto a revolução tecno industrial inglesa era o futuro.
Mesmo assim, tornou-se um símbolo e um ícone ao mesmo tempo sedutor e nostálgico. Desde Tolstoi, no qual abandono de Moscou e a subsequente retirada das tropas de Napoleão foram tomados como símbolos da libertação milagrosa da Mãe Rússia, análoga à própria ressurreição. Hitler ficou fascinado por ele.
Mas o culto pós-guerra de Napoleão continua vivo para aqueles que querem anular os horrores do século XX e reviver o que eles tomam como a aventura romântica da guerra.
Ficha Técnica |
Título: Napoleão |
Diretor: Ridley Scott |
Roteiro: David Scarpa |
Elenco: Joaquim Phoenix, Vanessa Kirby, Tahar Rahim, Rupert Everett |
Produção: Apple Studios, Scott Free Productions |
Distribuição: Columbia Pictures |
Ano: 2023 |
País: EUA |