A produção Netflix “O Mundo Depois de Nós” (Leave the World Behind, 2023) parece mais um filme sobre apocalipse: o que está acontecendo? Um ataque cibernético? Um apocalipse geomagnético? Um ataque terrorista? Pouco importa. Estamos diante de um curioso filme “alt-apocalipse – o fim do mundo como o conhecemos é um mero pretexto para discutir outra questão: como cada vez mais nos isolamos, nos dividimos e polarizamos num ecossistema midiático que nos deixa cada vez mais vulneráveis. Ninguém precisa empurrar as pessoas para um penhasco. Apenas as empurre na direção do penhasco que elas farão o resto por conta própria. Se “Não Olhe para Cima” discutia como as bolhas das redes sociais nos tornam cegos e solipsistas, “O Mundo Depois de Nós” vai além: como o atual ecossistema midiático (ou mesmo a ausência dele no fim do mundo) cria cismogêneses e caos administrado.
Sessenta anos depois do quadro “O Grito” de Edward Munch, o sociólogo norte-americano publicava o clássico da sociologia “A Multidão Solitária”, em 1950. O que Munch pressentiu na arte, Riesman comprovou empiricamente em um estudo sociológico: a solidão em meio à multidão e a ascensão de um novo indivíduo com um “giroscópio psicológico” voltado para o exterior, às tendências e climas de opinião. Para não se sentirem tão isoladas e ter a sensação de fazer parte de uma comunidade.
Graças a esse novo tipo de pessoa “alter-dirigida”, apesar da fragmentação e isolamento da sociedade de massas do século XX, através das mídias foi criado algum tipo de consenso ou esfera pública – claro, um consenso construído através de uma interesseira engenharia de opinião pública: relações públicas, propaganda, publicidade etc.
Consenso no qual se sustentou a democracia liberal e o sistema político representativo.
Mas essa engenharia de consenso foi implodida no século XXI através das tecnologias de convergência e as redes sociais com o seu principal efeito colateral: o efeito bolha através dos algoritmos dos mecanismos de busca e dos perfis nas mídias sociais – motores de busca e algoritmos se transformam em curadorias de conteúdo, gerando bolhas solipsistas.
Criando comunidades virtuais, mas que na realidade apenas aprofundam aquela explosiva expressão da solidão em “O Grito”, mitigada pela engenharia do consenso do século XX.
Acompanhamos as consequências políticas recentes dessa nova mudança estrutural na esfera pública: polarização política, impossibilidade em criar consensos políticos, crise da democracia representativa e a ascensão global da extrema direita e desestabilizações de países por meio de guerra híbridas.
Filmes recentes como The Seed (2021) ou Não Olhe para Cima (2021) ou séries como Years and Years (2019) ou alguns episódios de Black Mirror vêm construindo narrativas dramáticas e tragicômicas de como bolhas solipsistas pulverizam noções como “fato”, “verdade” ou “realidade” para incitar divisões pessoais e políticas.
O Mundo Depois de Nós (Leave the World Behind, 2023), dirigido por Sam Esmail (Mr. Robot), baseado no livro de Rumaan Alam “Leave the World Behind”, é mais uma contribuição a essa lista de produções do cinema e audiovisual que refletem essa crise não só daquilo que outrora se chamou de “esfera pública”, mas de como a própria sociabilidade está sendo colocada em xeque.
O filme engana: à primeira vista, parece mais um filme sobre apocalipse com todos os seus tropos – uma família presa em circunstâncias que estão destruindo o mundo como conhecemos; a progressiva incomunicabilidade com celulares sem serviço e a Internet que cai; animais se portando de maneira estranha como se prenunciassem algo terrível que está por vir etc.
Mas, por assim dizer, o filme é uma espécie de “alt-apocalipse”: o prenúncio de algum tipo de catástrofe em andamento é apenas um cenário para algo mais importante que tanto o livro quanto o filme querem discutir – algo está errado na América, um país que se tornou dividido e passou a entrar em guerra consigo mesmo. E tudo começa nas relações interpessoais, irremediavelmente trincadas.
O Filme
Julia Roberts e Ethan Hawke estrelam Amanda e Clay Sandford, uma executiva de publicidade e seu marido professor de estudos de inglês e mídia (as profissões dos protagonistas são significativas para o propósito da narrativa), que vivem uma vida confortável, mas não extravagante, em sua casa no Brooklyn.
Motivada por um profundo aborrecimento com a humanidade (“eu odeio as pessoas”), Amanda, uma misantropa com tendências racistas, impulsivamente aluga através do Airbnb uma casa de temporada afastada, sem o marido e os filhos adolescentes saberem. A ideia, transmitida para seu marido Clay, é “deixar o mundo para trás”.
De qualquer forma a casa alugada é linda e eles até ficam felizes por algumas horas. Tudo começa com um bizarro incidente - na praia eles testemunham um gigantesco navio petroleiro que se projeta diretamente na areia, encalhando e assustando todos os banhistas.
Para desespero da filha Rose (Farrah MacKenzie), fã da série Friends, ela descobre que a Internet caiu. Justamente quando assistiria ao último episódio da série. O que significa também ficar sem mídia social, sem e-mail ou qualquer contato com o mundo exterior. Celulares ficam sem serviço e a TV saiu do ar.
Co se nada disso fosse o suficiente, a campainha toca, para descobrirem que quem apareceu à porta é o proprietário da casa em busca de refúgio. Um homem chamado G.H. Scott (Mahershala Ali) e sua filha Ruth Scott (Myha’la), uma família negra que faz levantar as sombrancelhas de Amanda.
Um apagão atingiu Nova York e, sem alternativa, Scott decidiu se refugiar na sua casa de campo, mesmo sabendo que foi alugada. Levantando suspeitas entre si numa inegável situação de tensão racial, terão que pelo menos dividir a casa naquela noite.
Mas fica claro que há mais do que um simples apagão: satélites ficaram sem serviço, derrubando todo o sistema GPS de navegação, os animais parecem que estão enlouquecendo (cervos se reúnem no quintal da casa como se quisessem observar os humanos), do nada flamingos ocupam a piscina, panfletos de propaganda caem do céu jogados por drones, com textos em árabe (alguém traduz como “Morte à América”). E finalmente, um som ultrassônico alto e penetrante quase ensurdece a todos.
Depois disso reina o caos. Como, por exemplo, carros autônomos enlouquecidos que se empilham em um gigantesco engavetamento numa estrada, impedindo a fuga dos protagonistas. O que está acontecendo? Algum ataque cibernético? Algum tipo de bomba inteligente? Sabotagem? Atentado terrorista?
E para completar, a família Sandford tem como vizinho um ativista QAnon de extrema direita – um ameaçado Kevin Bacon brandindo uma espingarda, ameaçando qualquer um que se aproxime da sua casa transformada em bunker.
O Mundo Depois de Nós não deixa claro o que está causando tudo: um apocalipse geomagnético ou um golpe de Estado perpetrado por terroristas? Isso porque estamos num “alt-apocalipse”. O fim do mundo é um mero pretexto para discutir outra questão: ninguém precisa empurrar a América de um penhasco. Apenas empurre as pessoas na direção do penhasco que elas farão o resto por conta própria.
As sementes da destruição já foram plantadas nas pessoas – elas apenas precisam de um pouco de água e luz solar para crescerem. Basta o empurrãozinho de alguma sugestão de apocalipse.
A linha de diálogo chave do filme é a de G. H. Scott, quando, junto com Clay, fogem da mira da espingarda do vizinho QAnon:
Não achei que deixaríamos isso acontecer, pensei que fossemos mais espertos... uma simples manobra de três fases que poderia derrubar o governo de um país por dentro... a primeira fase é o isolamento, desativar sua comunicação e transporte; preparando pra a segunda fase, caos sincronizado... aterrorizar com ataques secretos e desinformação, sem um inimigo ou motivo claro, jogando umas contra as outras... e a terceira fase aconteceria por conta própria: Golpe de Estado, guerra civil, colapso...
O Mundo Depois de Nós trata de solidão, cismogênese e desinformação. Todos os elementos do roteiro daquilo que chamamos de guerra híbrida – como criar uma guerra por procuração, incutindo divisões e isolamento. O que é favorecido pelas bolhas solipsistas criadas pelas mídias sociais e “curadorias de conteúdo” dos algoritmos. Tudo dentro daquilo que o jornalista Andre Korybko, autor do livro “Guerra Híbridas: das revoluções coloridas aos golpes”, o conceito de caos administrado:
O estudo detalhado da sociedade de um estado-alvo e das tendências gerais da natureza humana (auxiliado por pesquisas antropológicas, sociológicas, psicológicas e outras) permite construir um quadro de como é o funcionamento “natural” daquela sociedade. Armados com esse conhecimento, os praticantes da Guerra Híbrida podem prever com precisão quais “botões apertar” por meio de provocações para obter respostas esperadas de seus alvos, tudo com a intenção de perturbar o status quo por processos locais de desestabilização manipulados por forças externas. Podem ser conflitos étnicos, movimentos de protesto (“Revoluções Coloridas”) ou a exacerbação de rivalidades regionais. O ponto principal é produzir o maior efeito com o mínimo de esforço e, então, explorar a evolução dos acontecimentos e a incerteza crescente a fim de realizar os planos políticos.
A alusão à série Friends é irônica. Tudo que Rose quer é que a plataforma de streaming retorne para assistir ao episódio final. Uma série sobre amizades, num ecossistema midiático que estimula o isolamento. A vulnerabilidade necessária para cismogêneses e desinformação.
A América conseguiu dividir a si mesma. Agora exporta o know how como guerra híbrida para desestabilizar seus opositores geopolíticos.
Ficha Técnica |
Título: O Mundo Depois de Nós |
Diretor: Sam Esmail |
Roteiro: Rumaan Alam e Sam Esmail |
Elenco: Julia Roberts, Mahershala Ali, Ethan Hawke, Myha’la, Kevin Bacon |
Produção: Esmail Corp, Netflix Studios |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2023 |
País: EUA |