'O Homem dos Sonhos': quando as redes sociais se transformam no inconsciente coletivo

Quando o psicanalista suíço Jung formulou a teoria dos arquétipos e do inconsciente coletivo, não pensava que um dia haveria uma tradução eletrônica desse campo onírico coletivo: a Internet e as redes sociais. Uma tradução tão irônica que o diretor e escritor norueguês Kristoffer Borgli (“Sick of Myself”) imaginou uma curiosa metáfora: sem fazer o menor esforço, um homem torna-se viral ao aparecer recorrentemente nos sonhos de um número crescente de pessoas, um estranho fenômeno análogo ao déjà vu ou uma espécie de “Efeito Mandela”. Transforma-se numa celebridade involuntária sem o menor controle sobre sua imagem. Até o momento em que os sonhos começam a se transformar em pesadelos. Este é o filme “O Homem dos Sonhos" (Dream Scenario, 2023), no qual mais uma vez Nicolas Cage cria meta camadas de si mesmo. As coisas se complicam quando agências de marketing digital e uma startup tecnológica começam a se interessar pelo fenômeno, criando cenários bizarros de uma comercialização selvagem.

O diretor e escritor norueguês Kristoffer Borgli já havia discutido a cultura influencer das mídias sociais na comédia dramática Sick of Myself (2022) sob o tema da cultura do narcisismo contemporâneo como uma reversibilidade irônica (clique aqui): ao invés do excesso de ego, quanto mais procuramos o centro das atenções e a aprovação dos outros, mais somos ameaçados pela desintegração e o vazio interior.

O gosto de Borgli em satirizar os cenários absurdos criados pelo comercialismo selvagem retorna com O Homem dos Sonhos (Dream Scenario, 2023) que faz o caminho inverso do filme anterior Sick of Myself: se lá acompanhávamos uma mulher que faz o impensável utilizando medicamentos perigosos para se tornar famosa, em O Homem dos Sonhos acompanhamos um protagonista que não consegue controlar sua imagem, tornando-se involuntariamente viral através de um estranho fenômeno análogo ao déjà vu de uma espécie de “Efeito Mandela”.

  Dessa vez nos EUA, com os produtores Nicolas Cage (que também protagoniza o filme) e Ari Aster, Borgli discute a cultura das redes sociais de forma metafórica, ao fazer conexões entre sonhos, o inconsciente coletivo junguiano e como tudo isso pode resultar numa surreal exploração comercial.

Nicolas Cage interpreta um professor universitário que inexplicavelmente começa a vaguear pelos sonhos dos outros, dos próprios alunos, conhecidos e estranhos, resultando numa comédia sombria e maravilhosamente estranha. 

Careca, introvertido e curvado pelo peso de mil decepções na vida, Paul Matthews (Nicolas Cage) é um compenetrado professor de biologia evolucionista. Com sua voz monótona e aborrecida, leva os alunos ao sono. Um personagem que é a própria antítese de um influenciador viral e conhecido. Até tornar-se famoso por um evento onírico coletivo – os sonhos, a metáfora do diretor para as redes sociais.

A tese de que a Internet (e principalmente a viralidade das redes sociais) poderia ser uma projeção eletrônica do éter psíquico do Plano Astral vem sendo desenvolvida nos últimos anos. Principalmente pelo trabalho com memes na política alt-right, como analisado por Gary Lachman no livro “Dark Star Rising – Magick and Power in the Age of Trump”. As redes sociais se aproximariam da tradição esotérica que concebe as relações sociais como que imersas em um oceano de pensamentos que, em determinadas condições, sedimentam-se em egrégoras e arquétipos capazes de provocar “conexões significativas” – clique aqui.

O que se aproxima da noção junguiana de inconsciente coletivo – um inconsciente compartilhado por todos os seres humanos, capaz de criar conexões inconscientes que na nossa vida consciente parecem sempre ser apenas “coincidências”.

Conexões que ficam evidentes no mundo onírico dos sonhos. Mas, se política e marketing se interessam tanto pela dinâmica da viralizações e a linguagem dos memes, os sonhos acabam se tornando a fronteira final, um campo ainda inexplorado pela comercialização e controle político.

Diversos filmes nesse século já refletiram essa agenda, pela qual neurocientistas e engenheiros computacionais do Vale do Silício estão vivamente interessados. Vanilla Sky, A Origem, Sonhando Acordado, Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, Strawberry Mansion, Super Me, Corpo e Alma etc. são algumas produções que ressoam essa agenda tecnocientífica e comercial.

Que no mundo real se materializa em projetos como o do neurogadget “ Aurora” que promete “sonhos lúcidos” por meio de um aplicativo de smartphone, tornando o mundo onírico produtivo e eficaz, um novo local para desenvolver habilidades para aplica-las no mundo consciente – clique aqui.

O Homem dos Sonhos transforma tudo isso numa comédia estranha e sombria. Com um Nicholas Cage que nos últimos anos vem dando preferência para projetos cinematográficos cada vez mais estranhos e bizarros.

O Filme

Na universidade, Paul Matthews leciona sonolentas aulas sobre biologia evolucionista – campo de conhecimento ironicamente escolhido para o personagem. Afinal, da biologia evolucionista surgiu o conceito de “memética” (Richard Dawkins), campo disciplinar no qual os atuais memes são estudados como fossem entidades biológicas evolutivas que se disseminam como vírus.

 Um professor frustrado por nunca ter se firmado como pesquisador ou publicado um livro. Sua frustração só aumenta quando, num almoço com uma ex-colega de pós-graduação, descobre que ela publicou recentemente um livro sobre formigas que ele próprio tentou publicar por anos sem sucesso. E a acusa de ter roubado suas ideias.

Mas esses dias de anonimato estão contados. Quando está saindo de um teatro com sua esposa Janet (Julianne Nicholson), é abordado por uma ex-namorada do passado que diz tido um estranho sonho com ele: Paul apenas observava ela tentando socorrer de uma pessoa acidentada, sem prestar ajuda.

Então ele começa a descobrir que outras pessoas também sonharam com ele – familiares, alunos, conhecidos e, mais tarde, o mundo! Sempre numa situação recorrente: o sonhador está passando por alguma emergência – um aluno é perseguido por um monstro, sua filha está sendo vítima de objetos que caem sobre ela etc. Enquanto Paul calmamente apenas observa a tudo, com uma feição pateticamente tranquila.

Sem fazer absolutamente nada, Paul transformou-se numa personalidade viral. Ele conseguiu algum tipo de reconhecimento, mas por nada. Por que não tirar alguma vantagem? Sua inocência de um “nerd” completamente alheio ao mundo da comunicação e marketing, faz ele aceitar o convite de millenials de uma agência de marketing digital. Tudo que Paul quer é a oportunidade de publicar o seu livro sobre a sua tese evolucionista sobre as formigas. Mas agência tem outros planos para ele: comerciais da Sprite. E, quem sabe, Paul aparecer com o próprio refrigerante nos sonhos das pessoas.

“Você tem sonhado comigo?”, é o mote que Paul tem para parecer engraçado e sociável. Mas as coisas repentinamente mudam de rumo. A nova celebridade descobre que agora os sonhos estão se transformando em pesadelos. Começam a surgir relatos traumatizados de que Paul não mais fica parado observando nos sonhos. Ele agora ataca os sonhadores: assédios, assassinatos, estupros. 

É quando a metáfora sobre as redes sociais fica ainda mais evidente: Paul começa a ser “cancelado” - perde o seu emprego (traumatizados, os alunos não querem mais assistir a suas aulas) enquanto em público as pessoas se tornam cada vez mais hostis. Paul até tenta fazer um vídeo desajeitado, dizendo ser ele a maior vítima. O resultado é ainda pior.

E pensar que tudo o que Paul Matthews queria era a oportunidade para publicar seu livro sobre formigas, aproveitando a notoriedade. Mas outros encontram uma oportunidade ainda melhor: uma startup tecnológica cria um aplicativo que permite aos usuários viagens nos sonhos de outras pessoas – claro, tudo monetizado com a permissão de empresas inserirem anúncios dentro dos sonhos.

O Homem dos Sonhos é um comentário ácido sobre o destino do último local de resistência que restou contra as investidas de um sistema regido pela lógica da eficácia, produtividade, eficiência e sua fachada pop: a celebridade. 

O mundo dos sonhos é a pièce de resistance do indivíduo, o último lugar de privacidade no mundo onírico. Até ser descoberta suas conexões com o inconsciente coletivo e ser criada a sua expressão eletrônica: a Internet e as mídias sociais.

A ideia do filme de Kristoffer Borgli foi inspirada no evento real do “Já Sonhou com esse Homem?” - em janeiro de 2006, em Nova York, a paciente de um conhecido psiquiatra desenha o rosto de um homem que tem aparecido repetidamente em seus sonhos. Em mais de uma ocasião, esse homem teria dado a ela conselhos sobre sua vida privada. A mulher jura que nunca conheceu o homem em sua vida.

Esse retrato ficou esquecido na mesa do psiquiatra até que um dia outro paciente reconhece esse rosto e diz que o homem o visitou com frequência em seus sonhos. Ele também afirma que nunca viu aquele homem em sua vida de vigília.

O psiquiatra decidiu então enviar o retrato para alguns de seus colegas que têm pacientes com sonhos recorrentes. Dentro de alguns meses, quatro pacientes reconheceram o homem como uma presença frequente em seus próprios sonhos. Todos os pacientes se referem a ele como “este homem”.

De janeiro de 2006 até hoje, pelo menos 8.000 pessoas afirmaram ter visto esse homem em seus sonhos, em muitas cidades ao redor do mundo: Los Angeles, Berlim, São Paulo, Teerã, Pequim, Roma, Barcelona, Estocolmo, Paris, Nova Dehli, Moscou etc.

 

Ficha Técnica

Título: O Homem dos Sonhos

Diretor: Kristoffer Borgli

Roteiro:  Kristoffer Borgli

Elenco: Lily Bird, Nicolas Cage, Julianne Nicholson

Produção: A24, Square Peg

Distribuição: California Filmes (Brasil)

Ano: 2023

País: EUA

 

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