Imagine combinar o clássico “A Hora do Pesadelo” com o filme “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças”, de Michel Gondry. Tudo numa atmosfera com referências a “O Iluminado” de Kubrick e plot twist ao estilo dos filmes de M. Shyamalan. E para completar, alusões aos conceitos junguianos de Persona, Anima e Animus, Sombra e Self. Teremos como resultado o ambicioso filme do cineasta canadense Anthony Scott Burns “Come True” (2020): uma jovem está imersa em um sonho ativo, no qual as fronteiras entre o onírico e o real estão desaparecendo até se transformar em cobaia de uma pesquisa de ponta em um laboratório do sono de uma universidade. Os sonhos são dotados de complexos mecanismos para nos manter inconscientes no interior de um fluxo onírico, sem conseguirmos nos auto observar e alcançar as camadas mais profundas do nosso Self – a iluminação interior. “Come True” é uma jornada de gnose junguiana: superar a Sombra ao alcançarmos um nível meta na tela mental que sempre criamos para nós mesmos.
Todas as noites, quando dormimos, assumimos o personagem do sonhador. Incapazes de se auto observar ou de ter consciência de si mesmo, vagamos por lugares e situações nas quais a visão parece ser de uma câmera em um constante travelling ou em inúmeros deslocamentos em planos sequências. Tudo em contínuo plano subjetivo. Sabemos é que essa “câmera” somos nós mesmos porque sentimos angústia, medo, prazer ou ansiedade nessas situações imersivas. Mas quase nunca a câmera vira para nós mesmos, como se a narrativa quisesse evitar qualquer tipo de quebra no fluxo onírico.
Muito mais do que os intrincados simbolismos, Freud apontava para o principal mecanismo de defesa dos sonhos, que ele denominou como “teoria das sentinelas” na abertura de “A Interpretação dos Sonhos” – elaborados mecanismos de proteção de fatores perturbadores internos (dores de cabeça ou preocupações) ou externos (barulhos de trovões o som de um relógio tocando para despertar): se ouvimos o alarme do relógio, o som é de alguma forma incorporado na narrativa onírica, adiando o despertar.
No ponto de vista dos filmes gnósticos, esses mecanismos de defesa se tornam muito mais do que uma dinâmica psíquica: tornam-se os grilhões que aprisionam o protagonista em um estado em que as fronteiras entre o onírico e o real se confundem.
Um exemplo já discutido por este Cinegnose é o filme Ink (2009) no qual uma organização no Plano Astral, os “Incubus”, instigam pesadelos explorando sentimentos de ressentimento e humilhação dos encarnados, perpetuando o confinamento nos sonhos – clique aqui. Ou até mesmo o clássico A Hora do Pesadelo (1984) em que Freddy Krueger explora o medo e a humilhação para aprisionar suas vítimas nos sonhos para matá-las.
Agora, imagine alguns toques desses dois filmes, somado a influências de Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004), de Michel Gondry, O Iluminado (1980), de Kubrick e ainda insights do escritor gnóstico de ficção científica Philip K. Dick. O resultado é o ambicioso filme Come True (2020), do canadense Anthony Scott Burns que dirigiu, escreveu, filmou, editou e foi o responsável pelos efeitos visuais. Além de usar o pseudônimo “Pilotpriest” para assinar a trilha sonora ao estilo synthpop dos anos 1980.
O alto conceito do filme é o de fazer uma narrativa episódica onde cada capítulo representa alguns dos principais conceitos da psicologia analítica de Carl Jung: Persona, Anima e Animus, Sombra e Self. A narrativa acompanha uma jovem de 18 anos chamada Sarah Dunn (Julia Sarah Stone) desconectada de sua família e de si mesma – a perfeita personagem do Estrangeiro nos filmes gnósticos, aquele personagem definido pela sensação de estranhamento e alienação, mesmo no ambiente familiar em que vive.
Perseguida por estranhos sonhos que acompanham um cotidiano quase sonambúlico, sem conseguir conciliar uma noite completa de descanso e sempre pegando no sono na escola – com as recorrentes imagens nos sonhos de passagens escuras, enevoadas, com portas e corpos sombrios dependurados ou parados olhando fixamente para ela.
Seguindo a interpretação de Jung, há algo que impede Sarah de superar tanto a atmosfera de sombras como as Sombras, entidades que parecem ter um interesse particular em mantê-la num estado confuso entre os sonhos (ou pesadelos) e a realidade. Assim como em Jung (o encontro dos limites mais profundos da mente só ocorre com a integração da Sombra com Anima e Animus), Sarah também tenta se encontrar nesses labirintos oníricos.
Então surge um Laboratório do Sono cujos cientistas, envolvidos em um projeto inovador, tentarão ajudá-la. Ela torna-se a principal “cobaia” desse projeto neurocientífico, com consequências éticas, morais e existenciais que poderão ser nada positivas.
Podendo tudo ser revertido em um final ao estilo M. Shyamalan em O Sexto Sentido.
O Filme
Na primeira sequência conhecemos Sarah, uma jovem de 18 anos, acordando pela manhã em um escorregador de um playground público. Devido a problemas domésticos não especificados, ela vive afastada da sua família - apenas aparece sorrateiramente na sua casa para pegar café e algum alimento.
Sarah passa seu tempo vagando pela escola, se afogando no café e perdendo uma batalha contra um cansaço extremo pelas noites mal dormidas devido aos pesadelos recorrentes de portas, labirintos, sombras e estranhas entidades em contraluz como se a observassem.
Fora de casa, Sarah precisa de um lugar regular para passar a noite. Sua solução engenhosa é se inscrever em um projeto de pesquisa do laboratório do sono de uma universidade local. Nada mais conveniente: encontrar um local para dormir e ainda ganhar algum dinheiro sendo cobaia de um experimento, coordenado por um soturno cientista chamado Dr. Meyer (Christopher Heatherington).
Logo após o início do estudo, Sarah fica paranoica com a possibilidade de alguém a estar perseguindo. Esse alguém é Jeremy, (Landon Liboiron), que todos chamam de Riff. Ele é um estudante de pós-graduação que trabalha no estudo do sono e não tem absolutamente nenhum limite ético. Riff explica a ela o propósito do experimento e mostra os sonhos dos outros participantes do estudo para Sarah. Esta revelação, juntamente com ataques adicionais de pesadelos, culmina em um terceiro ato brutal e várias reviravoltas bizarras.
Mas os personagens são apenas o começo do que é sombrio em Come True. A atmosfera é a principal virtude do filme: Burns tem um olhar especial para os espaços médicos e tecnologia que parecem sombrios e desatualizados e para arquitetura que evoca cantos anônimos e esquecidos dos espaços acadêmicos de uma universidade.
Em monitores analógicos, cujas imagens são estabilizadas em painéis de controle retros, as imagens dos sonhos são capturadas e gravadas. E o que revela algo ainda mais assustador: as entidades Sombras têm o poder de se materializar no próprio quarto do sonhador criando a assustadora situação da paralisia do sonho, o momento em que o pesadelo invade a realidade.
A gnose junguiana – Alerta de Spoilers à frente
A sequência final dá ao espectador um violento plot twist daqueles como em O Sexto Sentido: o estado de sonho ativo de Sarah e a dificuldade da protagonista conciliar os limites entre as imagens oníricas e a realidade (além das pistas espalhadas ao longo do filme como os não explicados problemas de Sarah com sua mãe que justificaria sua saída de casa; o porquê de as ruas sempre estarem vazias etc.) seriam evidências de que a protagonista está em um estado de coma desde o início do filme. O que assistimos desde o início é a prisão interior da protagonista, mantida pelos mecanismos de sentinela descritos por Freud.
As sentinelas dos sonhos incorporam à narrativa onírica a interferência externa provavelmente da equipe médica que tenta despertar Sarah – no sonho em estado de coma, essa interferência é ressignificada como os cientistas do laboratório do sono, e incorporada ao fluxo do sonho.
Porém a principal referência é a psicologia analítica Jung, para explicar tudo aquilo que impede Sarah de encontrar a iluminação interior e seu verdadeiro Self. E, assim, sair do estado de coma e reencontrar a realidade.
Os letterings que dão os títulos aos episódios dos dois primeiros atos de Come True são dicas de que o que estávamos vendo é uma luta interior de Sarah contra os simbolismos da dinâmica psíquica que a aprisiona.
O primeiro, a Persona, é a pessoa que projetamos para o mundo exterior. Esta é a pessoa que queremos que o mundo veja. Muitas vezes é a versão polida de nós mesmos. O trabalho da Persona é reprimir todas as emoções e instintos que não são socialmente aceitáveis. Podem surgir problemas quando a Persona domina o eu real e a pessoa não consegue distinguir seu eu autêntico da imagem que retrata. Sarah pode estar tendo problemas para conciliar algum abuso sexual da qual foi vítima anteriormente ao coma – os abusos éticos da equipe de cientistas do laboratório do sono (e principalmente de Riff) pode ser o simbolismo disso, incorporado à narrativa onírica. Portanto, a Persona de Sarah é a de uma adolescente inocente.
Os próximos componentes da personalidade junguiana é a Sombra ou o Eu Sombra. Esta é a parte escura e moralmente cinza do psiquismo. Inclui todas as coisas que negamos em nós mesmos e ridicularizamos nos outros. Coisas como sexualidade, ganância, covardia e comportamentos egoístas entrariam nesse campo. Para Sarah, as entidades sombrias de olhos brilhantes são a Sombra - aquelas partes de si mesma que ela não está disposta a reconhecer. Também explica por que todos os assuntos de teste veem a mesma imagem. O olho que sangra e é remendado tem a íris escurecida. Isso pode ser um símbolo da Sombra ultrapassando a Persona.
Jung argumenta que o modelo ideal do parceiro sexual residiria no simbolismo de Anima e Animus. Jung apresenta os conceitos não como estereótipos arbitrários, mas como os deuses míticos Eros e Logos. Eros, o feminino, é a criatividade, a subjetividade, os relacionamentos e a totalidade; enquanto Logos, o masculino, o poder, o pensamento e ação. Se um homem rejeita sua Anima (sensibilidade e amor) se torna mal humorado e possessivo. Se uma mulher nega seu Animus em vez de ser assertiva e ambiciosa, ela se torna agressiva e implacável.
Quando Sarah, diante do espelho, descobre presas, isso pode ser um símbolo de ela rejeitar seu Animus e se tornar um monstro violento.
Uma vez que o indivíduo superou a Persona e integrou a Sombra e a Anima e o Animus, ele pode acessar os limites mais profundos da mente, o Self - tudo que somos agora ou no passado, e tudo que nos tornaremos. É a semente da qual cresce o autoconhecimento e o desenvolvimento interior. É o nível mais alto da iluminação e só pode ocorrer depois de forçarmos a Sombra a sair para a luz. E a aceitamos.
Dessa forma Come True alinha-se a filmes gnósticos que tematizam a gnose como a saída do protagonista de labirintos de origem lisérgica ou onírica quando compreende (ou pelo menos luta para compreender) a verdadeira natureza dessa dinâmica psíquica – filmes como O Terceiro Olho, A Passagem, Ink, Enter The Voidentre outros.
A gnose como a superação da tela mental que a mente cria diante de nós, alimentada por todos os nossos medos, angústias, desejos ou fantasias, representadas pela Sombra – as entidades que vigiam Sarah e a mantém em constante medo e paranoia.
Sem conseguirmos estabelecer um nível meta nessa tela mental (ou seja, virar a “câmera”, que filma o sonho, para nós para que nos auto observemos) sempre nos manteremos imersos inconscientes nessa tela mental, mesmo depois da morte. Assim como Sarah.
Ficha Técnica |
Título: Come True |
Diretor: Anthony Scott Burns |
Roteiro: Anthony Scott Burns |
Elenco: Julia Sarah Stone, Landon Liboiron, Carlee Ryski, Christopher Heatherington |
Produção: Cooperheart Entertainment |
Distribuição: IFC Midnight |
Ano: 2020 |
País: Canadá |