sábado, março 17, 2018
Wilson Roberto Vieira Ferreira
À primeira vista, o filme húngaro “Corpo e Alma” (Teströl és Lélekröl,
2017), indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, é um conto bizarro e
brutal sobre amantes em um matadouro de gado: um casal de funcionários que
consegue se encontrar apenas quando dormem, no mundo dos sonhos. Mais
exatamente, em um sonho recorrente: um veado e uma corça procurando folhas
verdes em uma paisagem de inverno coberta pela neve. A diretora Ildikó Enyedi
faz uma incursão no dualismo gnóstico Corpo/Alma: a matéria como uma prisão do
espírito. E o sonho como o meio para superar essa divisão. Sem incorrer
nos clichês hollywoodianos e motivacionais do tipo “todos os sonhos são
possíveis!”. Mas através da imersão em um tipo especial de sonho: o sonho
lúcido. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.
Desde
a “Interpretação dos Sonhos” de Freud, o simbolismo dos sonhos foram
considerados pessoais e intransferíveis. Duas pessoas até poderiam sonhar com
objetos ou situações parecidas. Mas os significados seriam necessariamente
diferentes.
Isso
até Karl G. Jung entrar em cena na Psicanálise com o seu conceito de Arquétipo:
nossos sonhos se conectariam com outros sonhos ou simbolismos já sonhados pela
espécie humana – as narrativas oníricas individuais teriam uma motivação mais
profunda, vinda diretamente dos símbolos do inconsciente coletivo no qual a
humanidade está imersa.
Se em
Freud o sonho é a re-encenação da interdição do desejo ou a sua realização
simbólica, em Jung o sonho teria a ver com as aspirações da própria espécie.
Porém, ficariam algumas questões: os sonhos seriam uma mera questão de
escapismoda realidade? Apenas uma
válvula que libera a pressão do inconsciente sobre o Ego? Ou os sonhos teriam
um potencial para transformar a própria realidade que impede os nossos desejos?
Indicado
ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, o filme húngaro Corpo e Alma (On Body and Soul, 2017) escrito e dirigido por Ildikó
Enyedi, faz uma incursão por essas questões dos sonhos da alma através de um
conto estranho e brutal sobre amantes. É uma história de amor que se desenrola
através de uma paisagem secreta e interior dos sonhos de dois amantes, em um
mundo exterior brutal e sangrento: um abatedouro de gado.
A
premissa do filme já é apresentada logo nas primeiras cenas: imagens magníficas
de uma veado e uma corça, sozinhos, em uma impressionante paisagem de inverno
com árvores desfolhadas e o chão coberto pela neve. Juntos procuram folhas
verdes sob a espessa camada. Percebemos a força e virilidade do macho que tenta
se aproximar de uma corça que, em resposta, procura se manter distante.
Corta!
Em seguida o espectador cair em um brutal mundo real do qual o diretor não nos
poupa: vemos vacas, cujo fim brutal estamos prestes a testemunhar (as cenas são
propositalmente sangrentas e apenas para estômagos fortes...). Parecem olhar
para nós com olhares cautelosos e suplicantes, como se suspeitassem o que está
por vir. O que acompanhamos é uma carnificina organizada, metodológica e
científica de uma indústria de carnes.
Nesse
ambiente duro no qual trabalham açougueiros com espíritos embrutecidos, surgirá
uma improvável história de amor entre dois funcionários. E os sonhos serão os
protagonistas dessas estranha narrativa: dois amantes que descobrem estar
sonhando o mesmo sonho figurado na sequência de abertura do filme.
Mas
descobrirão que há muito mais: eles poderão deliberadamente se encontrar
naquele mundo onírico, personificando um casal de cervos.
O que
Enyedi nos propõe nessa dualidade corpo e alma, realidade e sonho é ir muito mais
além da visão dos sonhos como uma realização postiça dos nossos desejos mais
secretos. E muito menos, entrar no senso comum hollywoodiano e motivacional de
que todos os sonhos podem se tornar verdade se formos persistentes.
Surpreendentemente,
Enyedi vai mais além de tudo isso: primeiro, ao incursionar na clássica
dualidade gnóstica entre corpo e alma (o corpo como a prisão da luz
espiritual); e segundo, a ideia de que os sonhos nada valem para a realidade se
não forem lúcidos – o verdadeiro sonho autoconsciente no qual conseguimos
superar a mera satisfação alucinatória dos desejos para permitirmos que a força
onírica entre na nossa realidade.
Será
que Corpo e Alma propõe uma gnose nos
sonhos?
O Filme
Olhando
para todas aquelas cenas do abate dos animais, do alto do seu escritório o
diretor financeiro da empresa Endre (Géza Morcsányi), um sujeito de meia-idade
magro, entediado e com um braço atrofiado, observa os funcionários no pátio.
Ele é o homem encarregado daquela carnificina comercial organizada.
Até
que um dia, ele observa um novo rosto entre os funcionários: uma mulher tímida
e insegura chamada Maria (Alexandra Borbély). Ela não é uma funcionária comum.
É a nova inspetora de qualidade enviada pelo governo. Uma mulher
extraordinariamente precisa, com uma memória fotográfica, capaz de perceber
milímetros de diferença na camada de gordura em uma peça de carne. Milímetros
que são capazes de determinar o rótulo de qualidade de todo um lote de
produção.
Endre começa a perceber que a precisão de
Maria está custando o rebaixamento da nota de qualidade da empresa. Ele tenta
se aproximar dela para pedir explicações e acaba conhecendo-a melhor: uma “anal
retentiva”, metódica e robótica. Aparentemente sem sentimentos e avessa a
qualquer tipo de relacionamento mais íntimo.
Até que um belo dia investigadores da
polícia chegam no abatedouro: alguém roubou uma espécie de “viagra bovino”, um
“pó de acasalamento” para fazer animais de 400 quilos se predisporem à
reprodução. Uma psicóloga forense é destacada para entrevistar cada funcionário
para tentar encontrar pistas.
Tudo começa com uma pergunta de rotina
sobre os sonhos de cada entrevistado, até a psicóloga descobrir que Endre e Maria
estão tendo o mesmo sonho no qual uma corça e um veado procuram folhas verdes
sob uma paisagem gelada. Será o começo de um romance improvável.
A partir desse ponto, a relação amorosa
do casal passa a ser estranha e platônica: ela, não suporta a ideia de um
contato mais íntimo. E Endre é emocionalmente e fisicamente desajeitado e
introvertido. Os momentos de intimidade e carinho passam a ser então somente
possível através daquele sonho.
Em cada cena fica evidente o confronto
corpo e alma: de um lado a realidade brutal de um matadouro e protagonistas
travados como se estivessem prisioneiros em seus corpos. E do outro a
libertação nos sonhos. Mas mesmo assim, não como eles são, mas através da
representação de animais selvagens.
Símbolo e interdição do desejo
Freud observava que mesmo quando o desejo
é realizado no sonho, há um mecanismo repressivo atuando: o desejo sempre será
realizado por uma via oblíqua, através do símbolo (no filme, o veado e a corça),
criando uma satisfação alucinatória e desconectada da realidade.
Por isso, Corpo e Alma faz uma incursão gnóstica no universo onírico ao
mostrar como o sonho partilhado por Endre e Maria começa a ficar cada vez mais
lúcido: juntos, tentam marcar o encontro no sonho, dormir ao mesmo tempo, após
acordarem dividem as impressões etc.
Dessa
maneira Enyedi abandona o clichê “inspirador” ou “motivacional” dos sonhos (o
sonho como motivação para atingirmos metas na realidade – “todos os seus sonhos
são possíveis!”), para ingressar no tema do sonho lúcido. Parece que a diretora
discute uma possibilidade de uma gnose nos próprios sonhos, até torna-los tão
auto conscientes que dissolva a satisfação simbólica (ou alucinatória) dos
desejos. Para, então, realiza-los na vida real.
No seu
conjunto, Corpo e Alma parece um conto bizarro e brutal de uma estória de amor
em um matadouro. Enyedi carrega nas cores desse estranho cenário para marcar
bem a distinção entre alma e matéria, sonhos e realidade.
Mas
principalmente como essa dualidade pode ser suspensa através dos sonhos que se
tornam lúcidos: diluir os simbolismos para fazer o desejo finalmente conquistar
a realidade.
Ficha
Técnica
Título: Corpo e Alma
Diretor:Ildikó Enyedi
Roteiro: Ildikó
Enyedi
Elenco:Géza
Morcsányi, Alexandra Borbély, Zoltán Schneider, Ervin Nagy
Cinegnose participa do programa Poros da Comunicação na FAPCOM
Este humilde blogueiro participou da edição de número seis do programa “Poros da Comunicação” no canal do YouTube TV FAPCOM, cujo tema foi “Tecnologia e o Sagrado: um novo obscurantismo?
Esse humilde blogueiro participou da 9a. Fatecnologia na Faculdade de Tecnologia de São Caetano do Sul (SP) em 11/05 onde discutiu os seguintes temas: cinema gnóstico; Gnosticismo nas ciências e nos jogos digitais; As mito-narrativas gnósticas e as transformações da Jornada do Herói nas HQs e no Cinema; As semióticas das narrativas como ferramentas de produção de roteiros.
Publicidade
Coleção Curtas da Semana
Lista semanalmente atualizada com curtas que celebram o Gnóstico, o Estranho e o Surreal
Após cinco temporadas, a premiada série televisiva de dramas, crimes e thriller “Breaking Bad” (2008-2013) ingressou na lista de filmes d...
Domingo, 30 de Março
Bem Vindo
"Cinema Secreto: Cinegnose" é um Blog dedicado à divulgação e discussões sobre pesquisas e insights em torno das relações entre Gnosticismo, Sincromisticismo, Semiótica e Psicanálise com Cinema e cultura pop.
A lista atualizada dos filmes gnósticos do Blog
No Oitavo Aniversário o Cinegnose atualiza lista com 101 filmes: CosmoGnósticos, PsicoGnósticos, TecnoGnósticos, AstroGnósticos e CronoGnósticos.
Esse humilde blogueiro participou do Hangout Gnóstico da Sociedade Gnóstica Internacional de Curitiba (PR) em 03/03 desse ano onde pude descrever a trajetória do blog "Cinema Secreto: Cinegnose" e a sua contribuição no campo da pesquisa das conexões entre Cinema e Gnosticismo.
Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
Neste trabalho analiso a produção cinematográfica norte-americana (1995 a 2005) onde é marcante a recorrência de elementos temáticos inspirados nas narrativas míticas do Gnosticismo.>>> Leia mais>>>
"O Caos Semiótico"
Composto por seis capítulos, o livro é estruturado em duas partes distintas: a primeira parte a “Psicanálise da Comunicação” e, a segunda, “Da Semiótica ao Pós-Moderno >>>>> Leia mais>>>