segunda-feira, setembro 27, 2021

Édipo, culpa e fantasia-clichê no terror do filme 'We Need to Do Something'


Tudo começa promissor em “We Need to Do Something” (2021): um tornado aproxima-se de um bairro de subúrbio e a família abriga-se no banheiro, para ficar prisioneira depois que uma árvore caiu e bloqueou a porta. Mas parece que há algo de mais terrível lá fora. Um terror indie sintonizado com as ansiedades da atual pandemia e que minuciosamente constrói um horror psicológico baseado na linguagem extracampo com a câmera e montagem. Porém, acaba caindo na velha armadilha da matriz edipiana da psicanálise dos cânones do gênero terror hollywoodiano: desejo e culpa que alimentam a velha fantasia-clichê da “quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem” – o Mal como remédio amargo para redimir a ordem do núcleo familiar, mesmo que seus membros estejam despedaçados em ressentimentos uns com os outros. 

Em postagem anterior (clique aqui) este Cinegnose discutia como o gênero terror no cinema baseia-se numa matriz essencialmente edipiana: narrativas que simbolicamente envolvem culpa, incesto, sexo culpado (sadomasoquista) etc. 

E, principalmente, o Mal e o Estranho como os nossos próprios impulsos aos quais deveremos renunciar na resolução do Édipo e na entrada ao mundo da Cultura. Os filmes de terror dramatizariam a nossa própria luta interna em ter que renunciar a Natureza (prazer, impulso, gratificação imediata) em nome da Cultura (renúncia e sublimação).

É a matriz psicanalítica que pode ser explorada tanto de forma progressiva (na qual sexo, desejo e culpa deixam de ser objeto do vouyerismo e fetiche para o espectador) ou regressiva (submetido às fantasias-clichê de manutenção da ordem edipiana representada simbolicamente pela família).

Curiosamente, We Need to Do Something (2021) é um terror indie que tenta se equilibrar entre essas duas formas, colocando-as em termos de forma (linguagem fílmica) e conteúdo – o argumento narrativo.

Baseado em livro homônimo de Max Booth III (2020), a princípio o filme apresenta um argumento altamente alegórico, sintonizado com o espírito de época da pandemia: Substitua o “vírus” pela ameaça externa inicial de um tornado e encaixe em “isolamento obrigatório” ou “quarentena” por “árvore caída que torna a fuga impossível” e parece que We Need to Do Something, de Sean King O'Grady, está diretamente associado com o drama da pandemia global. 



Não é necessário muito conhecimento de semiótica para perceber como o filme busca a identificação das almas castigadas pela pandemia com a situação de uma família arquetipicamente infeliz presa em seu banheiro enquanto, Deus sabe o que, está enfurecido do lado de fora.

De início, o filme trabalha com dois tropos bem conhecidos no cinema hollywoodiano: o drama de uma família ameaçada pelo Mal que tenta explorar as fraquezas morais internas do núcleo familiar e o terror que ameaça um verdadeiro símbolo do sonho americano - as casas de subúrbios de classe média. 

Como um filme independente, procura uma linguagem diferenciada que entra no campo da construção do terror psicológico: o recurso do extracampo como elemento central da narrativa – continuamente o filme remete a algo que está presenta, mas não se vê. Ele não está presente no campo (a tela), mas complementa aquilo que vemos. Existe algo ameaçador do lado de fora do enquadramento (a família presa num banheiro), mas nunca o vemos. Imaginamos o objeto do horror a partir das reações e fisionomias dos protagonistas olhando para fora do plano.

Embora no plano formal We Need to Do Something seja desafiador (o horror psicológico construído praticamente em uma única locação – um banheiro), a narrativa acaba rendendo-se à fantasia-clichê mais hollywoodiana: a quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem – culpa e desejo como fatores desencadeadores do Mal.




O Filme

Tudo começa com uma família se abrigando em seu banheiro durante uma violenta tempestade que abate um típico bairro americano de subúrbio. Enquanto seus celulares emitem avisos de tornado, eles se protegem e esperam para ver o que acontece a seguir

A filha Melissa (Sierra McCormick) não desvia o olhar para seu telefone, tentando entrar em contato com alguém importante em sua vida e saber se ele está seguro. O filho Bobby (John James Cronin) tenta amenizar o medo no abraço reconfortante de sua mãe Diane (Vinessa Shaw). Tenta amenizar os medos de Bobby enquanto desvia as farpas passivo-agressivas do marido Robert (Pat Healy). É evidente que há rixa entre os pais. E tudo vai piorar, porque é disso que o Mal necessita para destruir a família. 

Depois de uma luz forte e ofuscante e um barulho intenso do lado de fora, Robert tenta abrir a porta do banheiro apenas para descobrir que ela foi bloqueada por uma árvore que caiu em sua casa. Eles agora estão presos e não é possível identificar alguém do lado de fora para pedir ajuda.

Ficar confinado em um banheiro com sua família, sem comida ou suprimentos já seria ruim, mas as coisas ficam muito piores quando é revelado que algo além do mau tempo está se movimentando fora deste espaço confinado. Começa com um cachorro, que na verdade revela-se como um demônio falante dublado por Ozzy Osbourne. A voz perfeita para reforçar a ideia da situação completamente satânica que está atacando a família. E o terror é agravado não apenas por sua compreensão limitada do que está acontecendo fora de sua casa - que parece muito 2020 - mas pelo fato de que o marido Robert está cada vez mais perdendo o controle e ficando imprevisível – muito por conta do seu alcoolismo, que o faz procurar no banheiro qualquer coisa que tenha álcool na composição. 




Tudo começa a adquirir um aspecto simbólico com a entrada inesperada de uma cascavel no banheiro que acaba atacando mortalmente o pequeno Bobby – o simbolismo bíblico do pecado que ataca uma família que não é a imagem mais perfeita do Jardim do Éden.

O Mal e a culpa – Alerta de Spoilers à frente

Flashbacks da adolescente Melissa acrescenta o elemento de desejo e culpa que acaba configurando todo o quadro geral de uma ameaça demoníaca àquela família: uma relação homoafetiva com uma amiga de escola chamada Amy (Lisette Alexis), uma gótica meticulosamente estilizada com brincos de lâmina de barbear e cicatrizes de automutilação nos braços. E praticante de magia Wica, disposta a se vingar, através de um feitiço, de um valentão que as assedia e difama na escola e redes sociais.

Mas as coisas parecem ter saído do controle e o feitiço acabou despertando alguma entidade satânica que acabou se voltando contra a família da namorada.

Apesar do início promissor de We Need to Do Something com a minuciosa construção do terror psicológico, no final acaba se rendendo ao clichê do desejo culpado que necessita ser punido – e a fantasia-clichê da quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem.

Esse conceito remete a um duplo movimento no entretenimento cinematográfico: fascinação e tédio, quebra da ordem que produz fascinação, e o necessário retorno à ordem no final para o espectador retornar ao tédio da vida cotidiana. 

Como afirmava o pensador alemão Theodor Adorno, a indústria cultural lidaria com um problema insolúvel: ao mesmo tempo oferecer produtos novos e estimulantes que façam o receptor escapar da rotina e, simultaneamente, tornar essa novidade padronizada e familiar para relaxar e poupar esforços. Nesta corda bamba equilibra-se a indústria cultural ao ter que criar um entretenimento que mantenha a ordem institucional e, ao mesmo tempo, ofereça a esperança de rompê-la. 




Para Adorno, isso significaria que a noção de entretenimento como mera distração, escapismo ou alienação deve ser questionada. Há uma dimensão muito mais complexa que deve ser entendida à luz das mudanças estruturais da esfera de lazer proporcionadas pela forma-mercadoria. 

Para além do entretenimento, na verdade o espectador procuraria conciliar o inconciliável: ficar fascinado pela ordem ser quebrada (o banco roubado, carros explodindo, terroristas assumindo o controle) e, ao mesmo tempo, esperar que a própria fantasia seja abatida para que voltemos à rotina como se nada tivesse acontecido, resignados.

Melissa e sua relação homoafetiva com uma gótica é o elemento de quebra da ordem que se opõe a sua família. Imperfeita e à beira da ruptura, é verdade, mas ainda representando a Família – hoje, uma entidade neo-arcaica abstrata, que ainda paira platonicamente no sentimento de culpa.

O Mal chega para punir e a cobra foi apenas uma pequena introdução, para lembrar a todos que tudo está acontecendo devido ao pecado. E a adolescente aterrorizada Melissa passa a ser atormentada pela culpa: ela seria a única responsável por tudo o que ocorre.

O tom realista é dado por núcleo familiar formado por um pai alcoólatra e negligente com os filhos e uma mãe que acumula ressentimentos depois de anos da relação conjugal. Realismo que torna verossímil uma fantasia-clichê quase tão antiga quanto Hollywood: embora a família de We Need to Do Something não seja a ideal, ainda paira a instituição Família, abstrata, que deve ser redimida. 

E o Mal é o instrumento amargo, porém necessário, para que a ordem geral seja reestabelecida na mente do espectador. 


 


 

Ficha Técnica 

Título: We Need to Do Something

Diretor: Sean King O’Grady

Roteiro: Max Booth III

Elenco: Sierra McCormick, Vinessa Shaw, Pat Healy, Lissete Alexis, John James Cronin

Produção: Atlas Industries, Spin a Black Yarn

Distribuição:  IFC Midnight

Ano: 2021

País: EUA

 

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