Parece haver alguma inteligência semiótica no governo Lula. O presidente recusou o convite para participar da Marcha para Jesus 2023, em São Paulo. O ardil era evidente: se Lula fosse à Marcha, daria a deixa para a narrativa da “polarização” do jornalismo corporativo: “Lula repete Bolsonaro e politiza evento religioso”. Nunca a polarização foi uma questão para a grande mídia. Passou a ser quando Lula saiu dos cárceres de Curitiba, gerando uma mais-valia semiótica midiática: Bolsonaro e Lula são iguais, polarizam, mas apenas têm sinais trocados. É a retórica “nem-nem”, colocada em ação desde as últimas eleições. Nesse momento, o jornalismo hegemônico mobiliza seu arsenal retórico do “Lula repete Bolsonaro”, estratégia subliminar para substituir a política pelo “bom-senso” neoliberal. Enquanto isso, a “Folha” tenta lucrar mercadologicamente com tudo isso, com a “campanha para incentivar furo de bolhas e diversidade de ideias”.
Até Lula ser solto dos cárceres da Polícia Federal de Curitiba, o jornalismo corporativo não falava em “polarização”. Ela já existia no cenário político, mas ainda não era uma questão para os analistas.
A grande mídia ficou perplexa, não só por ver Lula ser solto, mas, principalmente, ao vê-lo dar uma contundente resposta simbólica: fez o caminho contrário da rota que o levou a Curitiba - saiu caminhando do prédio da PF, fez um discurso na Vigília Lula Livre e voltou para São Paulo para um discurso em frente ao Sindicato dos Metalúrgicos, em São Bernardo, onde se entregara mais de um ano antes.
Diante dessa revanche simbólica, “colonistas” e sabujos midiáticos rapidamente criaram uma narrativa da qual tirassem alguma mais-valia semiótica do revés. Uma narrativa mais ou menos assim: “Lula livre representa um risco, porque o País não precisa de radicalizações e polarizações, justamente nesse momento em que as reformas farão a economia crescer e o emprego voltar e blá-blá-blá...”.
A figura de Lula seria inoportuna para o momento político. Por quê? Porque seria mais do mesmo. Apenas com sinais trocados: Bolsonaro já era o extremismo de direita... agora, teríamos sua contraparte, o extremismo de esquerda.
Vimos essa narrativa a todo vapor nas eleições do ano passado quando o jornalismo corporativo tentou dar pernas à “terceira via”, ao querer demonstrar para o distinto público o quanto Lula e Bolsonaro eram “bolhas” idênticas. E que deveriam ser furadas por “propostas”. E só na “terceira via” isso seria possível.
Ambos seriam como se fossem gêmeos espelho: tanto Bolsonaro quanto Lula já fizeram ataques à Globo e ao jornalismo (corporativo); ambos estiveram imersos em escândalos de corrupção; os dois tem uma predileção geopolítica por governos autocráticos: de um lado, Venezuela e Nicarágua, e do outro Hungria, Emirados Árabes, Rússia; de lado algum há propostas, apenas trocas de acusações e assim por diante.
A escalada da narrativa midiática da polarização chegou à lógica ad absurdum: vítimas da violência política (como o assassinato do tesoureiro do PT em Foz do Iguaçu por fazer uma festa de aniversário temática sobre Lula e o PT) se tornaram “culpadas” por “polarizarem”... quem mandou fazer uma festa “polarizada”...
Nem a posse do governo Lula 3 enfraqueceu essa narrativa: assim como Bolsonaro o fez, Lula indica amigos ao STF, como o “seu advogado” Cristiano Zanin (marotamente a mídia destaca que a oposição no Senado está elogiando Zanin como um “cara de família” – o “extremista” Malafaia parece aceitá-lo como um dos seus...); Lula repetiria Bolsonaro ao eleger nomes rejeitados pela área de governança da Petrobrás; assim como Bolsonaro quis “despetizar” o governo na largada, também Lula busca “restrição partidária”, sem “análises técnicas”, ameaçando paralisar a gestão; Lula repetiria Bolsonaro no caso da Guerra na Ucrânia; até a ONG Transparência Internacional (um dos braços armados na guerra híbrida brasileira) diz que Lula repetiria Bolsonaro ao querer transformar o STF num “anexo do governo de ocasião” – clique aqui.
Mais-valia semiótica
Qual a mais-valia semiótica buscado por essa narrativa:
(a) Mostrar que a polarização é um ruído político intolerável que só atrapalha o combate “técnico” contra a inflação e os esforços também sempre “técnicos” para fazer o país crescer;
(b) Salvar o legado da Lava Jato, para evitar que a grande mídia seja obrigada a fazer uma mea culpa: a polarização seria uma reação da classe política contra Dallagnol perdeu o mandato e Moro está emparedado pelas mudanças da “maré política”.
Nesse contexto de guerra semiótica, a recusa de Lula ao convite para comparecer à Marcha de Jesus (realizada nesta quinta-feira em São Paulo) foi a melhor estratégia do presidente. Era óbvio que o convite tinha um ardil: reforçar a narrativa da polarização – assim como Bolsonaro, Lula também queria politizar um evento evangélico.
Receberam a vaia por Lula... |
Além disso, era uma armadilha óbvia para o presidente ser recebido por uma estrondosa vaia num reduto irremediavelmente politizado não só pelo bolsonarismo. Mas também pelos anos de guerra híbrida aliada à Teologia da Prosperidade que transformou Jesus num coaching de empreendedorismo – veja o evento paralelo à Marcha, o “Christ Summit”, em Alphaville, a meca da ascensão social dos empreendedores – clique aqui.
O único erro foi enviar representantes ao evento: os também evangélicos Jorge Messias (Advogado-Geral da União) e a deputada federal Benedita da Silva. Previsivelmente vaiados ao citarem o nome de Lula. Com o também previsível destaque do jornalismo corporativo.
Certamente se o semiólogo francês Roland Barthes ainda estivesse entre nós, veria essa estratégia semiótica da polarização como a retórica da “crítica nem-nem” ou “ninismo” como descrevia no livro clássico “Mitologias”, de 1957.
Como Barthes descrevia, o “ninismo” é um mecanismo de dupla exclusão – reduz a realidade histórica a uma polaridade simples, quantifica o qualitativo em uma dualidade e equilibra um com o outro, de modo a rejeitar os dois. De uma maneira mágica, foge-se de uma realidade intolerável (porque múltipla, contingencial, histórica), reduzindo-a a dois contrários para depois serem pesados e rejeitados.
Seguindo o raciocínio de Barthes, narrativa da polarização esvazia a “realidade intolerável” (a ativa participação da grande mídia no jornalismo de guerra que deu visibilidade à extrema-direita), simplificando o histórico e o contingente num script maniqueísta.
A retórica do “nem-nem” busca no final excluir os contrários para tentar mostrar que ambos são iguais e simétricos na suposta radicalidade, e que a única solução é o “bom senso” – mito burguês no qual se baseia a forma moderna de liberalismo. A Justiça como uma operação de pesagem.
Folha quer furar bolhas
Depois do Projeto Folha dos anos 1980-90, que reduziu o jornalismo a um problema de marketing com o slogan “de rabo preso com o leitor”, agora o jornalão da Barão de Limeira quer também se aproveitar mercadologicamente do “ninismo”.
O jornal lança “campanha para incentivar furo de bolhas e diversidade de ideias”, iniciada no final do mês passado. O objetivo é:
Estimular seus leitores a se abrirem à pluralidade de ideias em vez de se rodear apenas de quem já comunga das mesmas opiniões. São as panelinhas sociais. Fure a bolha. Assine a Folha. Sob esse mote, o jornal convida todos a consumir fontes diversas e posições divergentes para evitar a armadilha do viés de confirmação. Ele ocorre quando ficamos predispostos a procurar conteúdos que corroborem nossas crenças pessoais.
Como romper com esse “viés de confirmação”? Com a ajuda da suposta pluralidade de ideias dos colunistas, do filósofo politicamente incorreto Luiz Felipe Pondé à “colunista que arrebenta a bolha de achismos”, a também filósofa Djamila Ribeiro.
E para Folha, quais são as distorções geradas pelo “viés de confirmação” da polarização das bolhas? Achismo, intolerância, desinformação, estereótipo, dogmatismo etc.
O ardil do processo de significação desse discurso é óbvio: todas essas distorções estão nos extremos, da direita à esquerda do espectro político. Enquanto os articulistas da Folha estão no meio, no “bem senso”, no qual a política deve existir. Política não é confronto, mas busca de consenso.
A questão é que esse consenso não deve ser buscado na esfera pública, mas nos limites da ideologia editorial do jornal. Por exemplo, estampada de forma histérica em um editorial que ocupou quase uma coluna inteira na primeira página: “Democracia e Economia” (04/06) numa resposta desesperada e raivosa ao suposto “pibão” do governo Lula, argumentando que mais vale a “estabilidade institucional”. Ameaçada, claro, por Lula, um dos extremos da polarização que ameaça a tranquila gestão dos fundamentos do neoliberalismo econômico – a ÚNICA alternativa possível.
Esse é o limite da “diversidade de ideias” oferecida aos incautos assinantes: o viés de confirmação da própria ideologia editorial do veículo.
Certa vez, a filósofa Marilena Chauí foi convidada a fazer parte da “diversidade de ideias” da Folha. Foi prontamente recusada. Chauí disparou: “não quero ser a folha de parreira que esconde a nudez ideológica do jornal”.
Está faltando intelectuais tão “polarizados” como ela.
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